Rússia para quê?

Meus amigos – ensinava-nos – a nossa nacionalidade, se é que ela realmente “nasceu”, como eles agora asseguram nos jornais, ainda está na escola, em alguma Peterschule alemã, atrás de livro alemão e afirmando sua eterna lição alemã, enquanto o mestre alemão a põe de joelhos quando precisa. […] a Rússia é um mal-entendido grande demais para que nós o resolvamos sozinhos, sem os alemães e sem o trabalho.

Trecho da fala do personagem Stiepan Trofímovitch do romance “Os Demônios “ de Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

Andrew Napolitano: Qual é a atitude do povo russo, na medida em que você conseguiu percebê-la, sejam eles sindicalistas, autoridades governamentais, jovens profissionais, sobre o desejo dos Estados Unidos de fazer uso da violência contra a Rússia e a raiva das autoridades governamentais americanas contra suas contrapartes russas?

Alistair Cooke: Bem, essa reunião foi muito diferente, porque havia todo tipo de pessoa, era para os sindicalistas, mas estava cheia de acadêmicos, cientistas, professores de filosofia e pessoas do parlamento e do governo. Devo dizer que o sentimento geralmente expresso de maneira poderosa, não era somente de desapontamento, realmente era de desprezo, particularmente em relação à Europa. Essa fala era típica: “Nós acreditávamos no Ocidente, nós acreditamos por 25 anos. E agora nós desprezamos o Ocidente, o que eles estão fazendo conosco agora é como o cerco a Leningrado, eles estão nos assediando, fazendo tudo o que podem para nos prejudicar.” Mas no final das contas devo dizer que o que foi mais impactante foi que eles se orgulham dos seus valores, eles se orgulham do que a Rússia significa. Eles se orgulham do fato de que conseguiram passar por tudo isso de maneira a conseguir os valores deles de volta. Eles acreditam que os seus valores são verdadeiros e bons.

Trecho do podcast entre o juiz aposentado americano Andrew Napolitano e o ex-embaixador do Reino Unido Alistair Cooke

Atualmente Dostoiévski é um dos romancistas do século 19 mais lidos talvez porque ele dramatizou de maneira eficaz os problemas morais, religiosos e políticos que perturbaram as gerações entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e depois.

Trecho do verbete sobre o escritor russo na edição de 1974 da Enciclopédia Britânica.

 

    Prezados leitores, permitam-me apresentar-lhes um personagem tirado do livro Os Demônios, Stiepan Trofimovitch. Ele é enquadrado na categoria de liberal sem nenhum objetivo, que só era possível na Rússia. Meu objetivo será traçar um paralelo entre o estado de coisas que este personagem representava no século XIX, e o estado de coisas em pleno século XXI, conforme percebido por Alistair Cooke em sua recente visita a Sâo Petersburgo, onde participou de discussões sobre o futuro do mundo.

    O que era um liberal sem objetivo na Rússia do século XIX? Era um homem espirituoso, que se achava diferenciado por gostar de propagar ideias e por sentir-se no direito de fazê-lo, como ocorria no Ocidente, herdeiro da tradição racional e libertária do Iluminismo do século XVIII. Como ser especial que era, o liberal russo olhava seu país com condescendência e o criticava sempre, por não se enquadrar nos cânones ocidentais de liberdade de consciência e de expressão, afinal havia a censura imposta pelo governo tzarista, e de liberdade de trabalho, pois havia ainda servos na Rússia.

    Stiepan Trofímovitch mostra suas credenciais de liberal no trecho que abre este artigo. Quando falavam de nacionalismo e de nacionalidade russos ele mofava dessa ideia. Não havia como a Rússia ter identidade própria, porque esta só podia ser construída sob o crivo das civilizações europeias superiores. Afinal, muita coisa que se encontrava no país, a servidão, a repressão governamental, a censura, a falta de educação em geral e de educação científica em particular, não poderia ser aceita no Ocidente, porque seria uma violação do projeto Iluminista que então estava sendo implementado na Europa há quase um século, desde meados do século XVIII. Dessa forma, o que pudesse ser visto como tipicamente russo, fruto da sua experiência histórica de encontro e embate com mongóis, tártaros e outros povos asiáticos, deveria ser extirpado e não restaria muita coisa dessa tal identidade.

    Para fazer jus ao seu papel de homem ilustrado, Stiepan Trofímovitch entremeava seu discurso com frases inteiras em francês, mostrando sua cultura, e falava longamente. E qual era o efeito prático dessa profusão de pensamentos transmitidos a quem quer que estivesse disposto a ouvi-lo? Por acaso ele aplicava sua razão para resolver os problemas concretos dos russos? Para diminuir-lhes o sofrimento físico causado pelas doenças?  Para achar formas de atuação política em benefício dos servos? Para organizar empreendimentos econômicos que criassem empregos e prosperidade?

    Nada disso. Trofímovitch apesar de seu olhar distanciado sobre a Rússia, de um europeu que vê quão bárbara e atrasada ela era, agia como um homem típico da sua classe. Não tinha ocupação nenhuma, além de conversar, era um rentista que vivia da mesada dada por uma amiga, Varvara Petrovna, e não perdia a oportunidade de beber enquanto divulgava suas ideias moderníssimas. Não conseguia nem colocá-las no papel, para melhor organizá-las. Pedir a um liberal sem objetivo que se dedicasse a uma atividade que tivesse alguma utilidade prática seria pedir muito.

    Nesse sentido, Stiepan Trofímovitch, o homem que brincava com as ideias para ter uma boa imagem de si mesmo e iludir-se que era algo mais do que um beberrão vagabundo, dramatiza uma corrente em voga na Rússia no século XIX, a daqueles que consideravam que o padrão ouro de civilização era o europeu e que o que deveria ser feito era depurar o país de suas características não europeias para que ele pudesse progredir. O problema, conforme mostra Dostoiévski por meio das peripécias desses liberais sem objetivo é que eles eram inconsistentes: professavam valores europeus como o uso da razão para melhorar a vida do homem por meio da educação, da ciência e da tecnologia; na prática nada mais faziam do que aproveitar-se do estado de coisas vigente em que uma minoria vivia do trabalho alheio, em benefício próprio. Estavam todos prontos a criticar a Rússia e sua identidade, mas não eram capazes de criticar-se a si mesmos.

    O que ocorreu com o liberal sem objetivo retratado por Dostoiévski? O que ocorreu com os admiradores do Ocidente na Rússia, que sempre colocaram a Europa como o paradigma a ser imitado, mesmo que fosse de maneira superficial? De acordo com Alistair Cooke, ex-embaixador do Reino Unido, os acontecimentos dos últimos 10 anos fizeram os russos darem uma guinada radical. Para aqueles que têm mais de 50 anos, lembrem-se que na década de 1990, após a queda do regime comunista, a Rússia importou receitas neoliberais para a implantação do capitalismo: privatização em massa de ativos estatais, desregulamentação, terapias de choque. Passados 25 anos, na segunda década do século XXI começam os problemas na Ucrânia, que se arrastam até hoje: a derrubada do governo com a chamada revolução Maidan de 2013-2014, a anexação russa da península da  Crimeia  em 2014, a invasão pela Rússia em fevereiro de 2022 da Ucrânia depois de reconhecer a independência de Lugansk e Donetsk, regiões onde predominam populações etnicamente russas, a anexação em setembro de 2022 pela Rússia de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporija.

    Para os russos, o Ocidente, capitaneado pelos Estados Unidos, está usando a Ucrânia como meio de destruir a Rússia, fornecendo-lhe armamentos, treinamento apoio logístico e de inteligência para que a guerra continue indefinidamente e não haja negociações de paz que permitam que russos e ucranianos cheguem a um acordo sobre como as populações de etnia russa que residem na Ucrânia devem ser tratadas. Daí que toda a vontade de emular o Ocidente que brotara novamente no final do século XX com a queda do comunismo se transformou agora, conforme explica Alistair Cooke no trecho que abre este artigo, em desapontamento.

    Desapontamento com a traição do Ocidente, que em troca da boa vontade mostrada pela Rússia em participar da ordem internacional liberal só lhe pagou com maldades: expandiu a aliança militar do Ocidente até as portas da Rússia, cercando-a de bases e de mísseis; insuflou o povo ucraniano, povo irmão, contra os russos, impôs sanções econômicas e não cessa de acusar a Rússia de ser um país ditatorial, comandado por um chefe de quadrilha, Vladimir Putin, que cometeu crimes de guerra nestes mais de dois anos de conflito.

    Longe de colocar-se de joelhos, como Stiepan Trofímovitch, rezava que a Rússia deveria fazer frente à superioridade alemã, os russos do século XXI dão as costas para o Ocidente, cheios de frustração pelas ilusões perdidas e de desprezo pela ideologia liberal ocidental de culto à homossexualidade, à transssexualidade, à mudança de sexo. Na sua visão o Ocidente está perdido, e só a Rússia transmitirá para as próximas gerações a moralidade cristã abandonada no mundo liberal pós-cristão.

    Prezados leitores, à pergunta colocada como título deste artigo: Rússia para quê? Tipos como Stiepan Trofímovitch vislumbraram que o país deveria vir a reboque do Ocidente, imitar-lhe as qualidades.  Hoje, os russos se veem como herdeiros de uma tradição civilizacional que se perdeu no Ocidente e que eles têm a obrigação de continuar. Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos e enquanto isso, apreciemos Fiódor Dostoiévski, que como poucos soube criar narrativas em que os grandes debates filosóficos do pós-Iluminismo puderam vir à tona nas falas e ações de seus personagens.

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Homem para quê?

A passagem do estado de natureza para o estado civil produz uma mudança notável no homem, substituindo o instinto pela lei em sua conduta e dando às suas ações a moralidade de que elas anteriormente careciam…. Em que pese, nesse estado civil, o homem privar-se de algumas vantagens de que ele gozava na natureza, ele consegue outras em troca tão grandes, suas faculdades são tão estimuladas e desenvolvidas, suas ideias tão expandidas e toda a sua alma fica tão elevada que, se não fosse pelo fato de que o abuso da nova condição normalmente faz o homem aviltar-se a um ponto abaixo daquele que ele deixou, ele abençoaria continuamente o momento feliz que o tirou daquele estado para sempre, e ao invés de um animal estúpido e sem imaginação, fez dele um ser inteligente e um homem.

Trecho retirado do livro O Contrato Social (1762) do filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) tal como citado em “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Hoje, pela primeira vez na história, graças à inteligência artificial, é possível a qualquer um criar pessoas falsificadas que podem passar por reais em muitos dos novos ambientes digitais que criamos. Essas pessoas falsificadas são os artefatos mais perigosos na história humana, capazes de destruir não só economias mas a liberdade humana ela mesma. […] A democracia depende do consentimento informado (e não mal-informado) dos governados. Permitindo às pessoas, às corporações e aos governos mais poderosos politica e economicamente  controlarem nossa atenção, esses sistemas vão nos controlar. As pessoas falsificadas, ao nos distraírem e deixarem-nos confusos e ao explorarem nossos medos e ansiedades mais irresistíveis nos levarão a cair na tentação e a partir dali aceitarmos nossa própria subjugação.

 Trechos retirados do artigo “O Problema com Pessoas Falsificadas”, escrito por Daniel Dennett, professor emérito de filosofia da Universidade Tufts nos Estados Unidos

          Prezados leitores, hoje tive uma experiência frustrante, que será cada vez mais comum para nós, pobres mortais, em nossas interações com empresas: seremos atendidos por robôs, sem nenhuma interação com pessoas reais. Eu até tentei esperar na linha em busca de um atendente que me desse um pouco mais de informação do que havia obtido pressionando todas as teclas que o robô mandou que eu pressionasse. Foi em vão: muito provavelmente as empresas nos deixam esperando infinitamente por um atendente humano para que desistamos e façamos o que ela quer: busquemos responder às nossas próprias perguntas acessando informações no aplicativo, para que custos sejam cortados e o lucro seja aumentado.

    De acordo com essa filosofia de negócios, minha frustração não importa: o que importa é que a empresa cria uma estrutura enxuta cuja interface com o cliente, concretizada na forma de robôs, permite-lhe resolver problemas simplesmente tornando-os inexistentes. Se o seu problema particular não corresponde a nenhuma das opções dadas pelo robô, isso significa que você está errado. Foi você que não soube classificá-lo corretamente e por isso não obteve a resposta que queria. E se ele não é passível de classificação, ele não existe como conceito, pois o robô oferece uma gama certa de tipos nos quais todas as interações do cliente com o produto ou serviço oferecido pela empresa devem se encaixar. Simples assim.

    O que fazer? Resignar-se? Aparentemente esses sistemas de inteligência artificial vieram para tornar os operadores de telemarketing, que faziam o atendimento telefônico ao cliente, criaturas ultrapassadas e superadas. Se a consequência fosse só a de acabar com uma profissão, não há nada de especialmente trágico nisso, pois outras profissões já foram exterminadas pela tecnologia. Mas para o filósofo Daniel Dennett, há outras consequências mais sinistras dessa interação com robôs: pode ser o fim da civilização, tal como ela é conhecida no Ocidente, baseada na liberdade das pessoas.

    Pois o fato é que os robôs podem fazer muito mais do que nos dar ordens para encontrarmos as informações de que precisamos. Conforme o trecho que abre este artigo, eles podem ser pessoas falsificadas com um tal nível de sofisticação que nós pensaremos que elas são reais: elas conversarão conosco, isto é, responderão ao que falarmos, darão conselhos específicos com base naquilo que dissermos a elas, nos guiarão sobre o que comer, como nos relacionarmos com amigos, pais e parentes, que tratamento de saúde adotar, que remédio tomar. E quando nos dermos conta de que não são pessoas reais, mas simulacros criados por alguém que quer ganhar dinheiro manipulando nossos desejos, medos e ansiedades, nós perderemos a confiança nas pessoas em geral, aprenderemos a desconfiar de todos porque assim como aqueles seres do mundo virtual mentem, aqueles do mundo físico provavelmente o farão também.

    Para Dennett esses avatares têm o potencial de destruir a civilização justamente por erodir a confiança mútua que faz a vida em sociedade possível: a confiança de que se seguirmos as regras seremos protegidos de males infligidos a nós por outras pessoas, pois as regras estabelecem os padrões de convivência. Se não posso acreditar em nada do que as pessoas falam, se pressuponho que elas estão sempre prontas a mentir e a enganar para satisfazer seus interesses pessoais, voltamos ao estado hobbesiano do homem lobo do próprio homem: seguir regras quando as regras são violadas sistematicamente pode ser mortal para você, o melhor é agir de maneira a proteger o que é seu, sem se importar com as consequências para a sociedade como um todo.

    O efeito disso é dramático para o regime político: a desconfiança impede o diálogo de boa-fé, em que as partes procuram mutuamente esclarecer-se e chegar a um consenso. Não havendo diálogo não há troca de informações fidedignas, mas apenas tentativas mútuas de manipulação. A manipulação de cidadãos que são chamados a escolher regularmente seus governantes os farão escolher mal, o que para Dennett significa escolher pessoas que ao invés de defenderem nossas liberdades nos subjugarão. Interações com pessoas falsificadas, manipulações, desconfiança, violação de regras de convivência, falta de diálogo, desinformação, privação da liberdade, fim da civilização.

    Essa postulação da liberdade e das leis como pressupostos da vida civilizada e do florescimento do homem já havia sido feita por Jean-Jacques Rousseau em seu famoso livro O Contrato Social, citado na abertura deste artigo. Para o filósofo genebrino, quando o homem passa do estado da natureza para o estado civil ele perde a capacidade de usar da violência para resolver suas disputas, mas ganha muito mais ao ter seu comportamento enquadrado pelas leis: ele ganha a liberdade de viver livre da perseguição, do roubo, do assalto, da calúnia, pois todos os membros da sociedade estarão submetidos às mesmas regras. E livre do medo da morte e da violência, o homem tem a oportunidade de desenvolver suas plenas potencialidades e fazer-se homem.

    À luz das lições de Rousseau e dos alertas dados por Daniel Dennett sobre os perigos da inteligência artificial, uma questão impõe-se: homem para quê neste século XXI? Para obedecer aos ditames dos robôs, o que significa submeter-se aos valores e à moralidade daqueles que os construíram, tornando-se escravos? Ou para construir uma sociedade em que a tecnologia seja um instrumento para fazer a liberdade florescer no âmbito da convivência e do respeito mútuos? No primeiro caso talvez o homem se torne irrelevante e seja exterminado e no segundo caso será um ser livre para usar os robôs para se transformar no homem inteligente, com o pleno uso das suas faculdades mentais, vislumbrado por Rousseau como o homem civilizado por excelência. Aguardemos e enquanto isso lembremos que por trás de todo rosto bonito e sorridente de um personagem de IA está simplesmente um mecanismo automático de atendimento ao cliente.

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Religião para quê?

Você não consegue orientar-se com o conhecimento dos fatos e a razão disso é que há um número infinito de fatos. Você tem que organizar os fatos. Assim que você os organiza você está em uma hierarquia de valor. Então os pós-modernistas descobriram isso, e essa é a razão pela qual – e isso é tão interessante – a maior parte deles era formada de críticos literários, críticos de histórias. Eles sabiam que havia uma chave de interpretação de uma história. O problema com os pós-modernistas – eles acertaram nisso e foi uma grande conquista –, mas eles foram logo presumindo, por causa do seu marxismo, que a história fundamental diz respeito ao poder. […] A história é sobre o sacrifício supremo. Essa é a história. O mito cristão acertou nisso. A razão para isso é a que a própria  comunidade é uma operação de sacrifício. Para tornar-se membro de uma comunidade você se sacrifica. Essa é a definição de comunidade. Você pode sacrificar-se de maneira que seja benéfica a você e a comunidade. Essa é a mais alta forma de sacrifício.

Trecho da fala do autor e psicólogo canadense Jordan Peterson em um podcast com o autor e jornalista Michael Shellenberger

Ele os aconselhava a permanecer na religião da sua juventude ou a voltar a ela, a despeito de todas as dificuldades que a ciência e a filosofia haviam sugerido; aquelas incredibilidades não eram a essência e poderiam ser colocadas de lado silenciosamente; o que importava era a confiança em Deus e na imortalidade; com essa fé e esperança a pessoa poderia superar os desastres ininteligíveis da natureza, todas as dores e desgostos da vida.

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando os conselhos que o filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) dava àqueles que lhe escreviam em busca de aconselhamento espiritual

Minha Pedra Cristalina, que no mar foste achada, entre o Cálice e a Hóstia consagrada. Treme a Terra, mas não treme Nosso Senhor Jesus Cristo no Altar. Assim, tremem os corações dos meus inimigos quando olharem para mim. Eu te benzo em cruz e não tu a mim, entre o sol, a lua e as estrelas, as três Pessoas da Santíssima Trindade. Meu Deus, na travessia, avistei meus inimigos. Meu Deus, que faço com eles? Com o manto da Virgem Maria sou coberto e, com o sangue de Meu Senhor Jesus Cristo, sou valido. Tens vontade de atirar , porém não atiras; se atirar, água do cano da espingarda correrá; se tiveres vontade de me furar, a faca da mão cairá; se me amarrar, os nós desatarão e, se me trancar, as portas se abrirão.

Oferecimento:  salvo fui, salvo sou, salvo serei, com a chave do sacrário eu me fecho. Um Padre Nosso; três Ave Marias; três Glórias ao Padre, e ofereço às Cinco Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo

Oração encontrada com Virgulino Ferreira da Silva, vulgo o Lampião (1898-1938) quando de sua execução pelas forças governamentais na Gruta do Angico

    Prezados leitores, na semana passada explorei a ideia defendida por Jean-Jacques Rousseau de que a consciência precede a inteligência no sentido de a primeira dar a segunda as diretrizes para operar no mundo e com isso fiz uma reflexão sobre o modo como a ciência de hoje é produto de uma inteligência sem consciência, conforme o diálogo entre Bret Weinstein e Jordan Peterson.  Nesta semana enfocarei outro podcast do psicólogo e autor canadense para novamente traçar um paralelo com as ideias de Rousseau, no caso sobre a religião. O objetivo é descobrir alguma função para ela no século XXI, no qual a experiência do Iluminismo no Ocidente completa 300 anos.

    A maior parte dos Iluministas, à exceção de Rousseau, que era a ovelha negra do movimento e foi hostilizado pelo núcleo duro dos philosophes, considerava a religião perniciosa. Ela era um obstáculo ao progresso do conhecimento que permitiria melhorar a vida material das pessoas através da ciência e de suas aplicações práticas, pois insistia em mitos e milagres que não tinham suporte na realidade tal como o homem podia determinar por meio da sua razão. Nesse sentido os dogmas da religião eram os antípodas do esforço racional, porque exigiam a suspensão do julgamento baseado naquilo que o homem experimentava e concluía com base na experimentação.

    Para Jordan Peterson chegou o momento de decretarmos a morte do Iluminismo e sua defesa da ideia de que religião e ciência são coisas irreconciliáveis. Conforme ele explica no seu podcast, os Iluministas estavam errados em supor que aquilo que percebemos da realidade era algo objetivo que poderia ser tratado pela mente humana para produzir conhecimento válido universalmente. Conforme o trecho que abre este artigo, o ser humano, ao interagir com a realidade que o cerca, o faz imbuído de um conjunto de valores que lhe permite estabelecer uma hierarquia do que é importante, que deve ser considerado, e do que não é importante, que deve ser descartado.

    Os filósofos pós-modernistas enxergaram a falha no pensamento Iluminista que descartava os valores e dava à razão humana uma aura de impessoalidade e universalidade que ela não tinha. Por outro lado, para o psicólogo canadense eles cometeram uma falha ao descartar o mito da racionalidade absoluta e substituí-lo pelo mito da irracionalidade absoluta, isto é, a crença de que todas as relações humanas são mediadas pelo poder e portanto tudo aquilo que o homem faz, seja no campo da economia, da sociedade ou da cultura, é manifestação desse poder, que por definição é arbitrário.

    Peterson propõe uma síntese para superar a tese Iluminista e a antítese pós-modernista/marxista.  O empreendimento humano é sempre valorativo, mas tal valor pode ter uma pretensão universalista e escapar da armadilha do poder se esse empreendimento tiver como foco central o sacrifício, tal como exemplificado na história de Jesus Cristo. O valor que dá sentido à vida é o do sacrifício do indivíduo em prol da comunidade, o homem abdica de prazeres e de idiossincrasias subjetivas para adequar-se à vida em sociedade, cumprir suas obrigações e em fazendo isso beneficia a si mesmo, ao produzir algo que lhe traz vantagens – seja o trabalho, seja o conhecimento científico –, e à comunidade, ao conquistar algo que serve aos propósitos de todos.

    Sob esse aspecto, Peterson defende a religião como o meio que cria uma narrativa que motiva o indivíduo a se tornar membro de uma comunidade fazendo os devidos sacrifícios para tornar isso possível.  A religião cria uma grande comunidade, daqueles que já não estão mais aqui, daqueles que ainda estão e daqueles que virão no futuro em torno da ideia do Deus onipresente e atemporal. Sem essas relações estreitas que cobrem diferentes tempos e espaços, as pessoas não têm compromisso com nada do que veio antes e do que virá depois.

    Para nós, no século XXI, que vemos os efeitos da razão sem consciência na degradação do meio ambiente, na corrida armamentista desenfreada entre as grandes potências, na utilização do discurso científico como fachada para a defesa de interesses escusos é relativamente fácil para um autor como Jordan Peterson expor a necessidade de dar um fim ao Iluminismo e de retomar uma visão religiosa. Mas no século XVIII, quando a razão dava seus frutos extraordinários nas descobertas científicas e a religião era representada por uma instituição poderosa e corrupta como a Igreja Católica, não era fácil expor os riscos dos abismos a que a razão poderia levar o ser humano. E mesmo assim Jean-Jacques Rousseau o fez.

    Conforme o trecho que abre este artigo,  Rousseau aconselhava aos que o procuravam para fugir do ateísmo que então espalhava-se pela Europa Ocidental devido ao descrédito da Igreja enquanto instituição, que não fizessem das contradições entre a ciência e as proposições de fé religiosa um motivo suficiente para abandonar a religião. A narrativa religiosa fundada na ideia de imortalidade e de que o bem ao final predomina continuava a ser o melhor instrumento para lidar com as injustiças e as vicissitudes da vida. Voltem à igreja! – conclamava Rousseau – não para acreditar em tudo o que o padre ou o pastor falavam, não para pedir vantagens para si mesmo, mas para ser confortado por uma história que dava sentido a tudo e com isso dava ao indivíduo resiliência para continuar, apesar dos pesares.

    Uma religião racional, poderíamos dizer, esta que pregam Peterson e Rousseau, uma religião que prescinde de milagres e favores especiais para ter um papel na vida espiritual do homem. Nesse sentido, a oração do Rei do Cangaço no Brasil, Lampião, citada na abertura deste artigo, pedindo proteção a Jesus Cristo e à Virgem Maria contra seus inimigos é uma aberração, pois cai no domínio da superstição que os Iluministas combateram: a religião que favorece uns em detrimento dos outros, que justifica assassinatos, crueldades e outras imoralidades, que faz da oração um meio de cooptação dos entes superiores pela força da palavra do suplicante ou pela força das suas armas.

    Prezados leitores, à pergunta – religião para quê no século XXI? – podemos responder, à luz dos diálogos de Jordan Peterson com seus convidados e dos ensinamentos de Rousseau: para carregarmos cada um nossa cruz particular e termos ímpeto para completarmos a maratona.

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Ciência para quê?

Consciência! Consciência! Instinto divino, voz imortal dos céus; guia seguro de uma criatura ignorante e finita de fato, mas ao mesmo tempo inteligente e livre, infalível, juiz do bem e do mal, fazendo o homem parecer Deus! Nisso consiste a excelência da natureza do homem e a moralidade das suas ações; além disso não encontro nada em mim mesmo que me faça estar acima das bestas – nada, além do triste privilégio de vagar de um erro para o outro com a ajuda de um intelecto e uma razão descontrolados que não conhecem nenhum princípio.  

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando o livro Émile do filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

Jordan Peterson: Eu diria que o que a ciência permite que nós façamos é driblar e transcender nossos próprios vieses particulares. Mas ela não pode acontecer de jeito nenhum na ausência de uma orientação embutida nesse espírito generoso de reciprocidade e abstração. Imagine que você seja um pesquisador do câncer. Você está aceitando um conjunto de valores axiomáticos antes de analisar os dados. Um conjunto de valores que inclui princípios como “seria melhor se houvesse menos sofrimento”; “seria melhor se houvesse menos vítimas de câncer”; “seria melhor se soubéssemos mais sobre as doenças em geral”; e “os resultados da minha investigação idônea serão um benefício para as pessoas independentemente das relações delas comigo”. Todos esses princípios são comprometimentos intelectuais prévios que têm que ocorrer antes mesmo que você possa abordar de maneira adequada os dados na planilha. Se o seu espírito é o de considerar que “vou extrair desta planilha a história que beneficiará ao máximo a mim e a minha família economicamente no curto prazo você instantaneamente se torna um cientista carreirista e conspurca todo o empreendimento. Então eu diria que a ciência só funciona se ela está embutida no conjunto de valores rumo ao qual estamos caminhando. Eu tento separar esse argumento em pedaços, mas não consigo. Não consigo alterar esse argumento.

Bret Weinstein: Nâo, você está totalmente certo e por mais que meu argumento anterior seja válido no sentido de que as oportunidades devam ser o mais amplamente distribuídas quanto possível, uma vantagem daquele período glorioso da ciência em que ela era feita por cientistas cavalheiros era que eles não tinham incentivos perversos de carreira. Eles satisfaziam seus interesses estando certos no longo prazo. É assim que eles se tornavam imortais. E essa é uma boa motivação. E o que temos agora é algo que parece exatamente com a ciência, mas é algo que a colocou de pernas para o ar, é algo obsceno. A COVID nos ensinou esta lição aos montes. Vimos pela primeira vez o nível em que isso é uma forma refinada de corrupção que é tão perniciosa que toma um veneno e o rotula como uma cura e toma uma cura e a rotula como veneno, e faz isso sem piscar.

Trecho retirado do podcast entre o biólogo evolutivo americano Bret Weinstein e o psicólogo canadense Jordan Peterson.

    Prezados leitores, na semana passada mencionei as opiniões de Jean-Jacques Rousseau sobre a influência perniciosa que a arte do drama e da comédia poderia ter sobre o comportamento das pessoas. Ao mostrar repetidas vezes os personagens sendo velhacos, libertinos ou cruéis sem que ao final fossem punidos de alguma forma pelo enredo, seja terminando na miséria ou na cadeia, haveria uma naturalização dos vícios, que acabariam se transformando em modelos de comportamento pelo seu caráter de realidade. Nesta semana explorarei mais uma faceta do mais famoso genebrino da História, especificamente as ideias que ele tinha sobre educação, as quais expôs no livro Émile, de 1762. O objetivo é o de mostrar como elas ecoam no século XXI na concepção que dois intelectuais da atualidade – Bret Weinstein e Jordan Peterson – têm sobre o modo como a ciência deve ser praticada e como ela não deve ser praticada.

    Conforme o trecho que abre este artigo, para Rousseau o que nos diferencia dos outros animais e nos torna especiais é o fato de termos uma consciência que nos permite escolher entre o bem e o mal. A capacidade mental não nos torna humanos por ela mesma porque se deixada desenvolver-se sozinha, sem uma consciência subjacente que forneça a ela princípios morais, ela atirará para todos os lados, tentando toda e qualquer coisa, emitindo qualquer opinião em uma perseguição infinita de uma miragem que nunca se concretizará na forma de bons frutos. Portanto, o aluno Émile que é o objeto da educação ideal de Rousseau não recebera educação intelectual antes de receber formação moral. A consciência precede a inteligência, estabelecendo a estrutura na qual esta operará.

    Mais de 260 anos depois e essa ênfase em certos valores fundamentais para que o intelecto possa florescer é a base da conceituação da ciência realizada no podcast citado na abertura deste artigo, em que Bret Weinstein e Jordan Peterson discutem e chegam a uma visão compartilhada do que deve ser a ciência. A ciência é um empreendimento que requer a colaboração com pessoas que não fazem parte do círculo imediato de relações pessoais do cientista, escolhidas com base na competência que mostram e não na base dos interesses que possam compartilhar. Essa colaboração gira em torno da busca do ideal da verdade por trás das aparências e da complexidade do mundo e essa busca da verdade requer pessoas que atuem com isenção, isto é, sem favoritismos, sem vieses particulares que as façam, por exemplo, criticar um artigo de um colega cientista porque não gostam do indivíduo. Para ser válida, a crítica precisa estar respaldada no que o trabalho científico conseguiu ou não mostrar sobre a realidade, independentemente das predileções ou ojerizas que o revisor possa ter em relação ao autor.

    Nesse sentido, como Jordan Peterson explica, para que seja praticada, a ciência pressupõe uma série de princípios, a que ele dá o nome de ethos em inglês. No caso da medicina por exemplo, a busca da verdade está aliada ao ideal de melhorar a vida das pessoas, de diminuir-lhes o sofrimento, de não lhes causar mal. Se não houver esses ideais de objetividade, verdade, conhecimento, beneficência, não maleficência, a ciência será uma atividade realizada por carreiristas, cujo foco é o seu interesse econômico imediato, o que o levará a abdicar de caminhos mais árduos em busca desses ideais para seguir os caminhos mais fáceis da adesão à opinião da maioria, da fama e do dinheiro disponíveis para aqueles cujas atividades pseudocientíficas dão credibilidade a procedimentos e produtos que nada mais fazem do que respaldar os interesses dos que têm o poder de estabelecer os consensos por serem os donos do dinheiro que fazem a roda girar.

    Daí a frase de Weinstein sobre a corrupção da ciência que acontece no mundo de hoje de forma que o valor da verdade é totalmente desvirtuado em prol da mentira lucrativa: o que é veneno é representado como cura e vice-versa, porque essa subversão faz carreiras prosperarem, faz empresas terem lucro, mesmo que no longo prazo os efeitos para a população em geral, usuária e objeto dos produtos e das práticas científicas, sejam catastróficos.

    Prezados leitores, a lição de Rousseau em seu esforço pedagógico consubstanciado no romance Émile do século XVIII continua relevante nos dias de hoje, que tem a seu dispor uma ampla gama de recursos tecnológicos. Sem a consciência para dar ao homem diretrizes, a tecnologia se torna um brinquedo perigoso nas mãos de uma criança que não sabe como fazer o bem com ele. Oxalá aprendamos a suprir essa defasagem entre nossa capacidade intelectual e nossa capacidade moral antes que nos destruamos.

    Ciência para quê? Se não for para a perseguição dos ideais mais altos que a humanidade pode cultivar ela no final das contas não nos servirá para nada que garanta a sobrevivência da nossa espécie a longo prazo.

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Arte para quê?

Sócrates: E quanto à mais solene e admirável delas, a poesia trágica, pelo que ela zela? Seu intento e zelo são, segundo teu parecer, apenas deleitar os espectadores, ou também defendê-los, evitando pronunciar o que lhes for aprazível e deleitoso, porém nocivo, e dizendo e cantando o que não lhes for aprazível, porém benéfico, quer isso lhes deleite ou não? A poesia trágica te parece dispor-se a quê?

Cálicles: É evidente, Sócrates, que ela está volvida, sobretudo, ao prazer e ao deleite dos espectadores.

Sócrates: Então, Cálicles, não é isso o que há pouco afirmávamos ser a adulação?

Cálicles: Com certeza.

 

Trecho retirado do diálogo Górgias de Platão (428 a.C.-347 a.C.), na tradução de Daniel R. N. Lopes

Introduzir em uma cidade famosa por sua moralidade puritana uma forma de entretenimento que em quase todos os lugares havia glorificado a imoralidade? As tragédias quase sempre representavam um crime; elas não purgavam as paixões, como pensava Aristóteles; elas inflamavam as paixões, especialmente o sexo e a violência. As comédias raramente representavam o amor do casamento saudável; frequentemente elas riam da virtude, como mesmo Molière tinha feito em “O Misantropo”. Todo mundo sabia que os atores levavam vidas imorais e desregradas, e que a maior parte das atraentes atrizes da cena francesa eram modelos de promiscuidade, servindo como centros e fontes de corrupção em uma sociedade que as idolatrava.

 

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a luta do filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) para que não houvesse a legalização da atividade teatral em Genebra, sua cidade natal

    Prezados leitores, na semana passada lancei aqui neste meu humilde espaço mais uma das minhas perguntas sem resposta, indagando se a classe média no Brasil conseguirá praticar a virtude o suficiente para fazer o país andar em meio à corrupção e à violência geradas pelo crime organizado. Nesta semana, falarei de um outro aspecto da virtude, desta vez não relacionado às nossas transações cotidianas com empresas. Falarei da virtude em termos de comportamento moral do indivíduo nas suas relações pessoais. Será que existe em nossa sociedade um padrão a ser seguido sobre como namorar, casar, educar filhos? Ou o padrão é a quebra de padrões? Quem dita os padrões? Para responder a essas perguntas, voltarei ao passado para buscar momentos na história ocidental em que essas questões foram abordadas sob o prisma da influência – benéfica ou maléfica – da arte sobre o comportamento das pessoas.

    Um primeiro momento deu-se na Grécia antiga, nos séculos V e IV a.C. quando pensadores como Platão refletiram sobre a natureza da arte e sua função na sociedade. Conforme o trecho que abre este artigo, que toma como exemplo a poesia trágica, a arte é adulação. Seu objetivo é fazer o espectador ter uma experiência de prazer momentâneo, seja ao ouvir versos declamados, a melodia de uma música, ou assistir à atuação de um ator. Nesse sentido ela não é tekhne, a técnica que imprime certa forma à matéria com que trabalha, dando-lhe ordem e harmonia e expressando conhecimento sobre o que é o bem supremo para alma.

    A arte enquanto adulação não se preocupa com o que é benéfico para o indivíduo em termos do aprimoramento pessoal para agir eticamente, ela apenas lhe proporciona deleite que pode até ser benéfico para a alma, mas nesse caso é mera coincidência: não havendo tekhne por trás da adulação artística não há busca do conhecimento para fazer melhor e em fazendo melhor trilhar o caminho da virtude (arete). Portanto, para o Platão dos primeiros diálogos em que ele coloca Sócrates como um dos personagens, a arte, não sendo tekhne, não é verdadeiro conhecimento, pois o conhecimento está sempre associado à virtude: basta termos conhecimento do bem para praticarmos o bem. A arte é um esforço de tornar a pessoa feliz por um momento, não de torná-la sábia e portanto, virtuosa.

    Um segundo momento de reflexão sobre a função da arte deu-se no século XVIII, quando o movimento filosófico do Iluminismo pregava a liberdade de expressão e de pensamento, o que incluía a liberdade não só para os filósofos proporem seus sistemas metafísicos, mas para os artistas criarem e se exibirem. Ironicamente, Jean-Jacques Rousseau, apesar de ter frequentado os “philosophes”, como Diderot, D’Alembert e Voltaire, proponentes do triunfo da razão sobre a superstição, seguiu uma trilha oposta, enfocando os sentimentos e a subjetividade do indivíduo. Não crendo muito no poder da razão para ditar regras morais, o filósofo e escritor nascido em Genebra via o lado negro dessa liberdade: as pessoas poderiam usar seus recém-adquiridos direitos de livre pensar para justificar seus atos sórdidos ou pior, evitar que eles fossem detectados.

    Daí sua luta contra a abertura de teatros em Genebra, como queriam os “philosophes”. Conforme o trecho que abre este artigo, deixar que dramaturgos e comediantes retratassem criminosos e devassos para que eles tivessem a liberdade de se expressar e os espectadores de se divertir era um incentivo à imoralidade: a exibição de certos comportamentos acabava naturalizando-os e a aura que cercava os artistas, paradigmas da liberdade e da tolerância, acabava fazendo com que as pessoas os idolatrassem, mesmo diante do comportamento desregrado deles. Em suma, para Rousseau, o absolutismo da razão, proposto pelos “philosophes”, não ancorada em uma fé religiosa que estabelecesse as regras morais, fazia da criação artística, fruto da liberdade de pensamento que os cultuadores da razão propunham, um veículo para estimular o mau comportamento das pessoas pela mera imitação do que viam e ouviam.

    Prezados leitores, independentemente de discordarmos ou não das ideais filosóficas de Rousseau, sua constatação da influência da arte e dos artistas sobre os espectadores e ouvintes não é pertinente nos dias atuais, 300 anos depois? Os criadores em nossa sociedade não gozam de uma reputação especial justamente por terem a virtude máxima de desafiar os paradigmas sobre casamento, vida em família, relacionamentos amorosos? As pessoas não discutem as peripécias dos participantes de programas como o BIG BROTHER como se fossem algo autêntico e não encenado? Não há colunistas em jornais que analisam os episódios do BIG BROTHER? Nossos artistas não são chamados a opinar sobre tudo na grande mídia, incluindo políticas de saúde, políticas demográficas, políticas previdenciárias e políticas econômicas? Afinal o que é falar da liberação da maconha ou da cannabis? O que é falar sobre o direito ao aborto, o direito à mudança de sexo, e a arranjos familiares alternativos senão estabelecer princípios para tais políticas? Será que Rousseau não foi presciente ao observar a influência que os artistas, livres para pensar e criar e exibir-se teriam no comportamento das pessoas, ditando padrões mesmo que isso signifique a liberdade individual suprema de estabelecer seus próprios padrões?

    Enquanto o prestígio dos artistas aumentou exponencialmente nestes 300 anos, a arte que de tão livre, ficou tão adulatória, parece perder qualquer pretensão de ser algo mais do que mero entretenimento. Oxalá possamos recuperar o ideal platônico da tekhne e ela tenha mais a fazer por nós do que reforçar nossos comportamentos e nos mostre um novo conhecimento, uma nova virtude, uma nova areté.

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