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Geração sanduíche

Posted by on 17/11/2014

Para cada R$ 10.00 arrecadados pelo governo, R$ 9.00 já estão comprometidos com gastos difíceis de serem cortados

Trecho retirado do artigo intitulado “Governo dá sinais de ajuste gradual” no jornal O Estado de São Paulo de 16 de novembro

Um Brasil mais idoso, que exigirá o triplo dos investimentos

Manchete do jornal O Globo de 16 de novembro sobre o envelhecimento acelerado da população brasileira

       Prezados leitores, conceitos são facas de dois gumes: permitem entendermos uma situação, consolidar uma definição sobre ela, mas ao mesmo tempo podem levar ao estabelecimento de estereótipos que nos impedem de enxergar as complexidades do mundo real. Deparei-me neste fim de semana com um conceito que ilumina minha existência atual, a geração sanduíche, que os demógrafos utilizam para referirem-se às mulheres que por terem adiado o momento da maternidade, se dividem entre trabalho, filhos e cuidado dos pais. É verdade que não me enquadro à perfeição nessa categoria porque não tive filhos, mas compartilho com essas mulheres a angústia, que com certeza ela sentem todos os dias, em relação à necessidade de ser uma mulher maravilha, isto é de desempenhar bem todos os papéis: ser profissional, ser filha dedicada, ser provedora e ainda achar tempo para ter uma vida social que não seja só o cumprimento de obrigações.

       É um grande alívio para mim saber que sou parte de uma categoria de pessoas, que não estou sozinha em minhas atribulações, mas que as divido com outras milhões de mulheres brasileiras. Nada melhor neste momento em que vivo um drama com minha mãe que teve edema agudo de pulmão e infarto no dia 2 de outubro e ficou no total 28 dias internada. O drama se desenrolou a cada dia que eu a visitava na UTI, quando chegava ansiosa para saber seu estado no dia e depois de ficar lá durante duas horas me despedia dela com dor no coração de deixá-la sozinha nas mãos de auxiliares de enfermagem que em sua maior parte trata os velhinhos como se fossem crianças, insistindo no baby talk, pressupondo que toda pessoa com mais de 70 anos não sabe o que é melhor para si. Quando ela teve alta e voltou para casa no dia 18 de outubro, o drama adquiriu ares de tragédia porque a alta provou-se precipitada e passei três dias infernais, vendo a barriga da minha progenitora subir e descer como uma sanfona, ela tentando em vão respirar melhor pelo inalador. Para ser precisa devo dizer que as noites foram infernais, porque fiquei sem dormir ao lado dela, testemunhando seu sofrimento e em uma segunda-feira às 11:30 da noite, quando minha mãe começou a suar frio, os pés ficaram frios e ela começou a falar que iria morrer, tive que correr ao hospital novamente e interná-la.

       Mais 12 dias de internação e finalmente dia 31 de outubro ela saiu. Agora os desafios são outros. É preciso comprar outros remédios, diferentes dos que ela utilizava antes: uma caneta de insulina importada da Alemanha dura 15 dias e custa 110 reais. O diurético que é obrigada a tomar aumenta a quantidade de urina, o que exige calça geriátrica diariamente: 28 reais o pacote com míseras 8 unidades. Minhas noites são mal dormidas porque fico alerta para qualquer barulho estranho, preciso ajudá-la a ligar o inalador quando sente dificuldade de respirar, preciso repor o soro fisiológico no aparelho, preciso checar se ela não precisa ser trocada. Para quem trabalha no dia seguinte o dia todo o ideal seria que eu contratasse uma pessoa para dormir com ela, mas eu não tenho condições financeiras: seria preciso registrar a pessoa, pagar todos os encargos sociais, o máximo que eu conseguiria seria aliviar minha pena duas vezes por semana, ao custo de 150 reais por noite, para não caracterizar o tal do vínculo empregatício. Mas prefiro ser cautelosa e não gastar esse dinheiro, porque ela está fazendo tratamento para a arteriosclerose e a assistência médica custa-me 1714 reais por mês.

       Quanto mais reflito sobre este assunto, mas convenço-me que nós da geração sanduíche somos realmente fora de série. É um encargo tipicamente feminino, pois é raro ver filhos homens cuidando de pais doentes. Tenho três irmãos e a única coisa que fazem é ligara para nossa mãe e peguntar se elá está bem. Claro que ela diz sempre que está para não preocupá-los e no dia a dia pede ajuda à filha para as mínimas coisas. Se ao menos ajudassem-me com dinheiro seria uma compensação, mas nem isso fazem, dando desculpas ou na maior parte das vezes nem dando-se ao trabalho de dar desculpas, porque consideram que é minha obrigação, já que usufruo de moradia gratuita. Nisso não sou particularmente azarada. Tenho uma amiga cuja avó de 98 anos é sustentada financeiramente e recebe cuidados de uma única filha dos 11 rebentos que teve. Os filhos homens fingem-se de mortos, as outras três filhas mulheres rateiam as despesas extras.

       Por outro lado, devo reconhecer que há diferentes níveis de zelo entre as mulheres da geração sanduíche. Há quem afirme cuidar dos pais que nada mais fazem do que visitá-los algumas vezes por semana e ver se tudo está OK, outras fazem o monitoramento pelo telefone, considerando ser suficiente ouvir as palavras tranquilizadoras do velhinho de que tudo está caminhando, mesmo que isso seja uma ilusão. Conheço o caso de uma moça brasileira, cidadã suíça adquirida pelo casamento e habitante de Zurique, onde vivia tranquilamente há anos como professora, cuja mãe tornou-se cardiopata e não pode mais morar sozinha. A filha voltou ao Brasil, largou tudo e agora tenta dar aulas de inglês em Sâo Paulo, com todas as frustrações de uma carreira de magistério em nosso país. Para mim sem dúvida é uma grande prova de amor à mãe.

      Prezados leitores, não me entendam mal, não estou aqui a querer dar lições sobre como tratar dos parentes idosos. O fato é que cada pessoa tem uma certa consciência moral, tem uma certa relação com os pais, enfim tem um certo caráter que a predispõe a aceitar de maneira melhor ou pior o encargo. De qualquer forma, uma hora ou outra algum de nós precisará lidar com a situação de ter um pai ou mãe de mais de 80 anos, fragilizado, que não poderá mais morar sozinho. Especialmente se considerarmos que apesar de as projeções indicarem que o número de pessoas com mais de 80 anos atingirá 8 milhões em 2050, não poderemos esperar que o Estado facilite a vida da geração sanduíche, oferecendo serviços sociais aos idosos. Atualmente do orçamento total do Estado brasileiro de R$ 2,86 trilhões de reais, 39,5% vai para o pagamento da dívida e as despesas discricionárias, que incluem os investimentos sociais e em infraestrutura, compõem 10.3%, dos quais muitos têm destinação constitucional obrigatória, como educação e saúde. O que fazer? Emendar a Constituição para tornar a destinação orçamentária para o cuidado dos idosos obrigatória? De onde sairia esse dinheiro? Diminuiríamos os pagamentos da dívida? Diminuiríamos investimentos em outras áreas sociais?

      Enquanto a solução fiscal não vem, a geração sanduíche terá que se virar. Pois como diz a pesquisadora do IPEA, Ana Amélia Camarano: “Nasce cada vez menos e morre cada vez menos”. Por isso a única coisa que digo às minha colegas de labuta é: Pau na máquina!

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