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Pós-verdades

Posted by on 19/07/2017

Dinheiro é fungível e a denúncia não afirma que há um rastro financeiro entre os cofres da Petrobrás e os cofres do ex-Presidente, mas sim que as benesses recebidas pelo ex-Presidente fariam parte de um acerto de propinas do Grupo OAS com dirigentes da Petrobrás e que também beneficiaria o ex-Presidente

Trecho da sentença do juiz federal Sérgio Fernando Moro, prolatada em 12 de julho de 2017 que condenou Lula

 Este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente

Decisão prolatada em 18 de julho por Sérgio Moro rejeitando os embargos de declaração propostos pelos advogados de defesa de Lula contra a sentença que o condenou por corrupção passiva

No entanto, os especialistas estão começando a nos dizer que algo mudou nos últimos anos. Não é que os políticos pararam de mentir ou de fingir que os fatos são outros; o que ocorre é que eles começaram a falar como se não houvesse distinção entre fatos e invenções. Vivemos em um mundo da pós-verdade este é o mantra.

Trecho do artigo “Pós-verdade, pura bobagem” do filósofo inglês Roger Scruton, de 73 anos

    Prezados leitores, não posso deixar de retomar o assunto de que tratei na semana passada, e perdoem-me se insisto nisso, especialmente considerando que um grupo de juristas elaborará comentários sobre a sentença de Moro. No entanto, os efeitos dessa sentença terão repercussões ao longo dos próximos meses e certamente nas eleições presidenciais do ano que vem. Há os que comemoraram a sentença como um marco na luta contra a corrupção no Brasil, outros que a denunciaram como perseguição política contra o mais legítimo líder da esquerda brasileira. Quem tem razão aqui? Ou será que o embate Lula x Moro é um exemplo perfeito do mundo da pós-verdade, em que, como disse Nietzsche “não há fatos, mas interpretações”. Será que estamos condenados a nos dividir em guetos, os golpistas, os petistas, os que não estão nem aí, sem possibilidade de diálogo? Será que o debate político no Brasil ficará restrito a uma questão de fé? Daqueles que acreditam no Lula, que se negam a ver seus defeitos, e daqueles que consideram o Lula a encarnação de tudo o que há de ruim na política brasileira?

    A minha própria fé pessoal é que é possível e desejável chegarmos a um meio-termo. Possível se tentarmos estabelecer os fatos sobre o que aconteceu e sobre o que está acontecendo. Desejável porque, a partir da constatação dos fatos podemos projetar nossos interesses e aspirações em relação ao futuro por meio da ação política. Assim falou Aristóteles em Arte da Retórica no quarto século antes de Cristo. Não é minha intenção aqui destrinchar a sentença de Moro, o que estaria além da minha humilde capacidade jurídica. Apenas quero chamar a atenção para aquilo que atualmente é um dos principais focos da comoção e da detração dos argumentos do juiz curitibano pelos defensores de Lula.

    Não há como não concordar com Ciro Gomes, ex-Ministro da Fazenda e ex-governador do Ceará, de que não há prova cabal contra Lula. Prova cabal, para configurar o crime de corrupção passiva de maneira inquestionável, seria o recebimento de uma vantagem indevida e a realização de um ato próprio do funcionário visado pela oferta da vantagem indevida. No caso específico de Lula, não há nem um nem outro de maneira inequívoca. Não foi achada uma conta em algum paraíso fiscal em nome de Lula, cujo dinheiro tenha origem inexplicada, que possa ser atribuída a pagamento de propina. Quanto a ato próprio do cargo, se houve fraude nas licitações de contratos da Petrobrás, Lula não era diretamente responsável por tais processos.

    Daí a defesa de Lula ter apontado como um ponto fraco da decisão de 12 de julho o fato de que o algoz de Lula ter admitido que não há como afirmar que os valores obtidos pela OAS nos contratos com a Petrobrás terem sido pagos a Lula, ao menos em parte. Se houvesse tal demonstração, haveria uma clara configuração de uma vantagem recebida em troca de um contrato com uma empresa de economia mista, cujo controle acionário pertence à União, isto é, ao governo federal, à época presidido por Lula, que poderia ter exercido uma influência indevida sobre aqueles que eram diretamente responsáveis pelos processos licitatórios da estatal. Em que pese o crime de corrupção passiva ser de mera atividade, para usar o jargão jurídico, o que significa que o ato de ofício do agente público corrompido não precisa ter sido realmente praticado, é necessário “que se possa deduzir com clareza qual a classe de atos em troca dos quais se solicita ou se recebe a vantagem indevida,” conforme ensina Luiz Regis Prado, em seu Curso de Direito Penal Brasileiro.

    Por outro lado, é inegável que Moro soube fazer uso de argumentação jurídica para tornar sua condenação sustentável ante essa falta de prova cabal de que o dinheiro dos contratos da Petrobrás foram parar no colo de Lula. O fundamento ele buscou nas delações premiadas que narram a história do esquema de pagamentos realizados ao longo dos anos para políticos do PT, na reforma de um apartamento que pode ser ou ter sido de Lula bancada pela OAS e principalmente em uma quebra dos paradigmas para a configuração do crime de corrupção passiva, quebra esta que ele ajudou a introduzir em nossas terras tropicais tomando emprestado o direito americano. Se antes era preciso um ato individualizado em troca da vantagem indevida, que já houvera sido praticado ou que com toda a probabilidade seria praticado, hoje os tribunais brasileiros, aceitando os argumentos desenvolvidos por Moro em suas condenações ao longo da Operação Lava Jato, deve-se reconhecer, estão aceitando a tese de que é suficiente para caracterizar a corrupção passiva “uma pluralidade de atos de difícil individualização” conforme afirmou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Gurgel de Faria em uma decisão proferida em 17 de março.

    Em suma, Moro condenou Lula por ele ter mantido ao longo dos anos relações incestuosas com empreiteiras que prestavam serviços à Petrobras em forma de cartel ajustado entre elas e que pagavam propinas a uma rede de políticos que incluía membros do partido do Presidente. Essa é uma versão dos fatos sustentada por indícios mais ou menos fortes de que as empreiteiras faziam agrados para Lula e pela presunção de que tais agrados estavam ligados ao esquema montado dentro da Petrobrás para superfaturar contratos e financiar campanhas políticas com os valores em excesso pagos pela Petrobras. É uma história crível, levando em consideração o histórico brasileiro em matéria de licitações de obras públicas para inglês ver. Minha primeira memória a esse respeito data do governo de José Sarney (1985-1989) e a construção da Ferrovia Norte-Sul, cuja licitação foi fraudada.

    Prezados leitores, a lição que fica deste imbróglio em torno da Lava Jato é que todas as condenações da lavra de Moro foram possíveis porque ele inovou em matéria de argumentação e fundamentação jurídica, inovações essas inspiradas naquilo que aprendeu do que se faz nos Estados Unidos. Pode-se argumentar que tais novos conceitos foram especialmente tropicalizados para criminalizar a ação política do PT, e que há interesses não estritamente jurídicos por trás da condenação de Lula com base em provas não cabais e meramente indiciárias. Oxalá que as inovações jurídicas introduzidas por Sérgio Moro se consolidem nos tribunais brasileiros e não sejam um mero modismo, de forma que possam pegar peixes graúdos à direita do espectro político. Do contrário, em 2018 os ânimos estarão tão acirrados que em vez de discutirmos os problemas que nos afligem e propormos soluções para o futuro, acabaremos envolvidos em um plebiscito sobre quem é a favor ou contra Lula, o que para o país será uma desgraça.

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