Disposto a quê?

Retomando o trabalho dos irmãos Graco, ele distribuiu terras aos veteranos e aos pobres; essa política, continuada por Augusto, pacificou por muitos anos a agitação no campo. Para impedir a repetição da rápida concentração da propriedade da terra, ele estabeleceu que as novas terras não poderiam ser vendidas pelo prazo de vinte anos; e para brecar a escravidão rural, ele impôs uma cota de um terço de trabalhadores livres nas fazendas. […] Cícero procurava unir as classes médias à aristocracia; César procurava uni-las aos plebeus. Ele diminuiu as dívidas, estabeleceu leis drásticas contra juros excessivos e deu um alívio a casos extremos de insolvência por meio da lei de falências que é praticamente a mesma que vigora atualmente.

Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981), sobre a política econômica implementada por Caio Júlio César (100 a.C.-44 a.C.), general, estadista e historiador romano

Os governos também esperam que a redistribuição possa lidar com a igualdade. O problema imediato disso é que taxas menores de crescimento significam receitas governamentais reduzidas, então menos dinheiro para redistribuir. Ainda assim, o sistema tributário e de bem-estar social da América Latina poderia ser muito melhor. Quando a desigualdade de renda da região é medida antes dos impostos e da redistribuição, ela é apenas um pouco maior do que nos países ricos. Mas enquanto os impostos e as transferências reduzem o coeficiente Gini em quase 40% em países ricos, na América Latina, eles o reduzem somente em 5%. De maneira chocante, em metade da região isso se traduz em um aumento na pobreza.

Trecho retirado do artigo “Ainda dividida” sobre a desigualdade na América Latina, publicado na edição da revista “The Economist” de 7 de junho

    Kai su teknon? Tu quoque? Até você, meu filho? De acordo com o que os historiadores Suetônio (70 d.C-121 d.C.), Plutarco (46 d.C.-120 d.C.) e Apiano (95 d.C.-165 d.C.) contam, foram essas as palavras que César dirigiu a Marcus Brutus (85 d.C.-42 d.C.) no Senado de Roma quando Brutus veio atacá-lo a facadas juntamente com outros comparsas. O termo “filho” não tinha um sentido apenas metafórico de pessoa mais jovem por quem César nutria afeição. Brutus era filho bastardo de César com Servilia, que já era casada com outro. As punhaladas de Brutus contra César tinham então um quê de vingança do filho que ressentia o fato de a mãe ter sido desonrada por aquele que era sabidamente um dos maiores coureurs de jupes de Roma.

    Claro que Brutus nunca iria admitir que a razão principal de sua sanha assassina era a humilhação de ser um filho notoriamente bastardo. A explicação que ele e os outros participantes do complô contra aquele que à época era o ditador de Roma, nomeado pelo Senado em 44 d.C., era de que César queria transformar-se em rei e portanto, transformar Roma de república em monarquia. Era preciso agir como o antepassado de Brutus, que 464 anos antes havia expulsado os reis de Roma, e acabar novamente com qualquer tirania que tolhesse a liberdade desfrutada na República.

    Liberdade de quê e de quem? Liberdade da aristocracia, classe à qual pertenciam todos os assassinos de César, para viver às custas das conquistas militares de Roma. Isso significava liberdade para extorquir as províncias por meio de impostos e botins de guerra, para usar escravos para o cultivo da terra, tornando inviável a atividade dos pequenos agricultores livres, liberdade para concentrar a propriedade da terra pela compra dos lotes de agricultores endividados, liberdade para especular com os produtos vindos das províncias, liberdade para cobrar juros exorbitantes em empréstimos a agricultores que não conseguiam competir com grandes latifundiários que tinham escravos à sua disposição. À época de César, a aristocracia vivia uma vida feita de corrupção, de compra de votos na Assembleia, de luxo proporcionado pela imensa riqueza proporcionada por todas as atividades econômicas viabilizadas pelo império que Roma conquistara.

    César não era um homem probo, de reputação ilibada. Ele usou sua conquista da Gália, a atual França, para pagar as dívidas que tinha acumulado com a vida dissoluta que levava, seduzindo mulheres solteiras e casadas e até homens. No entanto, à diferença dos outros membros da aristocracia, ele sabia que Roma precisava de ordem e estabilidade e que um regime republicano, que na verdade era uma oligarquia dos que se locupletavam com o império, não daria conta dos desafios que se colocavam. Conforme o trecho que abre este artigo, a saída era estabelecer uma aliança entre as classes médias e a plebe, em favor de reformas que redistribuíssem a renda e permitissem a outros grupos que não a velha aristocracia se beneficiarem das riquezas geradas pelas relações com as províncias.

    E assim César fez: uma reforma agrária para coibir a concentração de renda nas mãos de latifundiários e dar oportunidade econômica aos veteranos de guerra e aos pobres de Roma, a coibição da usura para evitar o endividamento excessivo que levasse o indivíduo à insolvência e uma lei para lidar com a situação quando ela ocorresse. Isso foi demais para a velha guarda, que não queria democratizar a propriedade, mas guardá-la toda para si, seja na forma de grandes latifúndios ou de rendas financeiras. O resultado foi o assassinato de César, como tentativa de reverter esse processo de desconcentração da renda.

    Portanto, podemos dizer com certeza que César passou pelo crivo mais importante para averiguar a sinceridade das convicções de um líder. Ele estava disposto a morrer para poder executar sua visão que tinha do que deveria ser feito. Sabia que havia pessoas naquele 15 de março que conspiravam para matá-lo, mas mesmo assim dirigiu-se ao Senado e lá foi crivado de punhaladas. O mais importante para ele era que as coisas mudassem radicalmente para que Roma pudesse continuar a existir, sem ser sacolejada por guerras civis, fruto da insatisfação de grandes parcelas da população, alijadas da prosperidade reinante nas altas esferas.

    A trajetória do homem mais completo que a Antiguidade produziu, cujas realizações permitiram a criação da França como a conhecemos hoje e a difusão da cultura romana no norte da Europa, nos serve de alerta sobre a dificuldade de mexer com privilégios arraigados e mitigar as desigualdades econômicas. Essa é uma questão sempre presente na América Latina. De acordo com o trecho citado na abertura deste artigo, nem os impostos nem os benefícios sociais conseguem melhorar a disparidade de renda em nosso subcontinente. Pelo contrário, a carga tributária injusta, que incide mais pesadamente sobre os mais pobres por enfocar bens de consumo e não a renda, e o pequeno valor dos benefícios sociais, fazem com que a desigualdade na América Latina aumente quando deveria diminuir por mieo da redistribuição de renda. O resultado é que temos níveis de desigualdade equivalentes aos de países da África Subsaariana, apesar de termos um PIB per capita quatro vezes maior do que o deles. Isso mostra que mesmo aumentando o bolo, ele nunca é repartido como deveria ser para diminuir a diferença entre os mais ricos e os mais pobres.

    Prezados leitores, em um momento em que assistimos à dificuldade enfrentada pelo governo federal para aumentar a arrecadação tributária por meio do aumento das alíquotas de IOF, não custa lembrarmos como ao longo da história mexer com grupos de interesse é mexer em um grande vespeiro. Cabe aqui a pergunta. O Ministro da Fazenda, Fernando Haddad e seu chefe o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva estão dispostos a quê? A irem até o fim para fazerem distribuição de renda por meio da cobrança de tributos dos mais privilegiados? Ou contemporizarão para não ferir susceptibilidades e tornar a reeleição de Lula mais fácil? Aguardemos e lembremos as punhaladas que César suportou para garantir a paz e a prosperidade de Roma.

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Filhos para quê?

Ele lamentava a baixa taxa de natalidade dos nativos que estava transformando a população de Roma; ‘antigamente a benção de ter uma criança era o orgulho da mulher; agora ela se vangloria com Ennius de ‘preferir enfrentar uma batalha três vezes do que ter um filho.’

Trecho retirado do livro “De Re Rustica”, escrito por Marcus Terentius Varro (116 a.C.-26 a.C.), citado no livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)

Eu não tive filhos e não me arrependo. Claro, nos momentos de lassidão e de fraqueza quando o indivíduo renega a si próprio, eu frequentemente me culpava de não ter feito o esforço de gerar um filho que pudesse dar continuidade a mim. Mas esse arrependimento tão vão funda-se em duas hipóteses igualmente duvidosas: a de que um filho necessariamente nos prolonga e que essa estranha mistura do bem e do mal, essa massa de particularidades ínfimas e bizarras que constitui uma pessoa merece ser prolongada.

Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121-180 d.C.), que seria imperador

    Prezados leitores, hoje nasceu o neto de um primo meu. No contexto da minha família, significa que dos oito netos que meus avós maternos tiveram, a geração que adentrará o século XXI e poderá chegar ao final dele só inclui um representante até agora. Essa baixa produção natalícia reflete as tendências no Brasil atual, em que em 2023, segundo dados do site “Our World in Data”, a natalidade estava em 1,62 filhos por mulher, o que leva a uma idade média do brasileiro de 33,94. Estamos abaixo do número de nascimentos necessário para mantermos a população no mesmo nível, o que gerará um efeito exponencial, pois aqueles que não nasceram agora deixarão reproduzir-se, diminuindo ainda mais as chances de nascimento. No entanto, há casos piores do que os do Brasil.

    Um desses casos é o do país que aumentou sua renda per capita em mais de 1.300% nos últimos 30 anos, cuja economia real aumentou 40 vezes de tamanho entre 1978 e 2010 e que conseguiu tirar 662 milhões de pessoas da extrema pobreza entre 1980 e 2008, de acordo com o Banco Mundial. Falo da China, que saiu do ranking dos países paupérrimos para entrar no clube dos países de renda média graças ao fato de ter experimentado o mais rápido desenvolvimento econômico de toda a história da humanidade.

    Apesar de todas essas conquistas, o Império do Meio tem um ponto fraco que pode colocar tudo a perder. De acordo com o “Our World in Data”, a taxa de natalidade em 2023 foi de 1 filho por mulher, o que faz com que a idade média do chinês seja de 39,07 anos. Esse número é equivalente ao da Ucrânia (0,98), um país em guerra há três anos, cujos homens em idade reprodutiva foram para a guerra ou fugiram. Considerando que quanto mais rico um país se torna menos pessoas nascem, se a China enriquecer ainda mais, a taxa de natalidade, que é menor do que a de um país desenvolvido como os Estados Unidos (1,62), pode chegar a um número perto de zero, o que condenará o país a um desaparecimento lento, gradual e seguro. Estima-se que a população da China, que em 2023 era de 1 bilhão e 420 milhões de habitantes, diminua para 500 milhões até 2100.

    A recusa em ter filhos não é algo moderno, típico da civilização tecnológica que permite às mulheres fazer sexo sem engravidar tomando pílulas anticoncepcionais. Conforme o trecho que abre este artigo, o escritor romano Varro, ao propor a retomada da vida simples de Roma antes de tornar-se a potência dominante em todo o Mediterrâneo, condenava os efeitos que a riqueza conquistada dos povos subjugados havia causado: as mulheres abastadas, vivendo uma vida de luxo e facilidades, fundada no trabalho de escravos, achavam coisas melhores a fazer do que fazer o esforço de procriar e cuidar dos rebentos. Para Varro, esse comportamento só poderia ser combatido por um retorno dos antigos valores morais da Roma formada por pequenos agricultores, o que implicava também o resgate da religião tradicional.

    Se a culpa pode ser atribuída às mulheres por preferirem o prazer à dor e ao risco do parto e à criação dos filhos, há também princípios filosóficos envolvidos na escolha de não deixar descendentes. O Imperador Adriano, conforme retratado por Marguerite Yourcenar, não vê sentido nenhum em procriar porque o ato de gerar uma vida não necessariamente perpetua a vida do criador. A maior parte dos grandes homens da História tiveram descendentes medíocres, se é que o tiveram, como é o caso de Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.), de Júlio César (100 a.C.-44 a.C.), de Aníbal (247 a.C-183 a.C.). E será que a vida merece ser perpetuada? Será o ser humano tão maravilhoso assim que mereça que cada indivíduo na Terra tenha como objeto principal deixar descendentes? Adriano não acreditava nisso e por isso não fez nenhum esforço em procriar.

    De forma que o comportamento que os chineses mostram de modo intenso no século XXI não é algo inédito na história da humanidade, seja devido à liberdade dada às mulheres na sociedade, que as levam a recusar-se a ser mães, seja devido ao espírito da época, que faz com que os indivíduos em geral não vejam nada especial no homem que mereça ser perpetuado. Se a diminuição da população for considerada um problema, uma solução seria limitar o acesso à educação pelas mulheres, que as levariam a ter menos perspectivas e a conformar-se com a realização pessoal pela maternidade. Ou cobrar impostos maiores de quem não se reproduz. Ou incutir nas pessoas o apreço pelo ser humano como espécie de rara qualidade.

    Prezados leitores, o biólogo inglês Francis Crick (1916-2004), um dos descobridores da estrutura em dupla hélice da molécula de DNA, que codifica o código genético, acreditava na hipótese da panspermia direcionada, isto é, de que a vida na Terra tenha sido semeada de maneira deliberada na forma de microrganismos que foram utilizados como espécie introduzida para dar início à evolução. E se a humanidade se der como objetivo lançar-se no espaço e espalhar sua semente pelo cosmos para viabilizar a vida em outros lugares caso a Terra se torne inabitável pelo colapso ambiental? Será que ter uma consciência torna o ser humano único e especial e digno de ser perpetuado? Não haverá então um motivo para dar continuidade à mistura de coisas boas e ruins que constitui uma pessoa? A resposta a essas perguntas e a decisão de procriar ou não será dada por cada massa de particularidades ínfimas e bizarras.

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A boa vida e a boa morte, de Lucrécio a Jesus Cristo

Mas os deuses não se levantam; eles não se levantam nem para nos advertir, nem para nos proteger, nem para nos recompensar, nem para nos punir.

Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121-180 d.C.), que seria imperador

Há deuses, afirma Lucrécio, mas eles habitam muito longe, em um isolamento feliz em relação ao pensamento ou aos cuidados do homem. Lá, “nos baluartes incandescentes do mundo” (extra flammantia moenia mundi) , fora do alcance dos nossos sacrifícios e orações, eles vivem como seguidores de Epicuro, evitando os assuntos mundanos, contentes com a contemplação da beleza e a prática da amizade e da paz.

Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre o pensamento do poeta e filósofo romano Lucrécio (94 a.C.-50 a.C.), autor “Da Natureza das Coisas”

    Prezados leitores, uma bonita cena da série Maximilian & Marie de Bourgogne, lançada em 2018, é o momento em que marido e mulher se despedem. Maria, Duquesa da Borgonha (1457-1482), havia caído de um cavalo enquanto caçava e agonizava há semanas, com múltiplas faturas, incluindo da coluna. As últimas palavras dela a Maximilian (1459-1508) são as seguintes: “Nossa vida não nos pertence, ela nos é dada de empréstimo. Viva e depois se junte a mim”. Esse pequeno discurso encerra duas ideias de tradições filosóficas opostas, mas que em uma pessoa como Marie, que nasce quando o Renascimento está em pleno florescimento, faz todo o sentido. Explico-me.

    A ideia da vida como um empréstimo vem direto de Lucrécio, que havia sido redescoberto pelo humanista italiano Poggio Braciolini (1380-1459) em 1417. Para o autor de De Rerum Natura, a vida não é algo sobre o qual temos propriedade absoluta e que nos pertença para sempre. Considerado um dos pais do materialismo moderno, a premissa básica do filósofo é que o mundo é feito das partículas primordiais, que ele chamava de primordia, elementa ou semina, e que hoje chamamos de átomos, e do vazio. Esses elementos indestrutíveis, imutáveis, sólidos, resistentes, silenciosos, inodoros e descoloridos se movem e se combinam uns com os outros de uma infinidade de maneiras, gerando tudo o que há na natureza, incluindo a própria vida.

    Sendo gerada a partir dos átomos, a vida tem a mesma natureza que a matéria. Aquilo a que chamamos de mente e consciência não existe independentemente da matéria e por isso não se pode falar que exista uma alma independente do corpo, isto é, que exista uma entidade imaterial que tenha existência autônoma em relação à matéria. Para Lucrécio, se a alma existisse sem o corpo ela seria inútil, porque ela não poderia sentir nada, nem tocar, nem ver, nem ouvir, nem cheirar, nem provar nada.

    Se a dita alma morre com o corpo, como encaixar o reino espiritual no mundo de Lucrécio? Conforme o trecho que abre este artigo, sua teologia concebe deuses totalmente apartados dos assuntos humanos, não envolvidos em nada com a matéria. Os deuses não criam nada e não são a causa dos acontecimentos. Afinal, como conceber que a vida no mundo material, cheia de desordem, de desperdício, de sofrimento e de injustiças, seja fruto de uma entidade espiritual? Nesse sentido o mundo é autossuficiente, obedecendo às suas próprias leis (a Lei) e não aos ditames de alguma divindade.

    Não é outra a concepção do Imperador Adriano, tal como concebido pela escritora Marguerite Yourcenar. A citação que abre este artigo é clara: os deuses são indiferentes a nós, pobres mortais, não interferindo para punir os maus e recompensar os justos, para nos proteger do mal advertindo-nos sobre nosso comportamento para que nós o corrijamos. Nesse sentido, tanto Adriano quanto Lucrécio apontam a inutilidade dos rituais religiosos. Nenhum sacrifício, nenhuma oração, nenhuma promessa terão influência sobre os deuses de modo a convencê-los a usarem seus poderes ao nosso favor.

    Para Lucrécio, a chave da vida é colocar sua mente em sintonia com a Lei que rege a matéria, sem temer os deuses, que não fazem nada nem para nos prejudicar nem para nos beneficiar, e sem temer a morte que é o mero corolário da vitalidade inesgotável do mundo: se a matéria está em eterno movimento e transformação, isso significa que sempre haverá destruição do velho para que o novo surja. Livre do terror da morte e da vingança dos deuses, o homem pode atingir a paz e levar a boa vida puramente material, que na prática significa a operação harmoniosa dos sentidos sob a orientação da razão a fazer inferências sobre as sensações recebidas.

    Essas explicações permitem-nos ver a contradição das últimas palavras de Maria de Borgonha. Ela adota Lucrécio ao falar a Maximiliano que a vida da combinação de partículas fundamentais que é o ser humano é efêmera, pois será logo dissolvida e os átomos se recombinarão. Ao mesmo tempo, ela não abandona a religião dominante na sua época o cristianismo, pois diz ao marido que eles se encontrarão na outra vida. Ora, se haverá um novo encontro isso significa que as almas se reunirão, que elas continuam a existir independentemente do corpo e que a vida delas é eterna. Um pé no mundo clássico e outro no mundo cristão, esta era a atitude de todo indivíduo das elites europeias bafejadas pelos ares do Renascimento.

    Prezados leitores, Maria de Borgonha, retratada na ficção televisiva, lidou com a aproximação da morte valendo-se da esperança cristã na ressurreição da carne e da lucidez clássica de constatar que não há vida sem morte e vice-versa. A quem consegue fazer tal síntese, talvez o encerramento do espetáculo da vida, seja ele cômico ou trágico, seja uma experiência menos solitária e agonizante. Afinal, segundo a lição de Lucrécio, a uma boa vida em sintonia com a Lei, segue uma boa morte. E a uma boa morte, segundo a lição de Jesus Cristo, segue a vida eterna.

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Panis et circensis ou Picanha e cerveja no cartão

Como se fosse um médico que receita mais algumas doses para um paciente que já vem perdendo o controle do consumo de álcool, o governo acelera fundo nos estímulos ao consumo. Desde janeiro de 2023, a gestão Lula adotou uma série de políticas para turbinar o crescimento da economia. Entre as iniciativas estão o novo Programa de Aceleração do Crescimento, a ampliação do Minha Casa, Minha Vida e liberações de saques do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.

Trecho retirado do artigo intitulado “O País dos Endividados” publicado na edição de VEJA de 16 de maio

[…] o próprio camponês, depois de ter conhecido e pilhado o mundo como soldado, não tinha vontade nem paciência para o trabalho solitário e as tarefas desprovidas de aventura da fazenda; ele preferia juntar-se ao proletariado turbulento da cidade, assistir de graça aos jogos excitantes do anfiteatro, receber milho barato do governo, vender seu voto a quem desse o maior lance ou prometesse mais coisas e perder-se na massa empobrecida e indistinta.

A sociedade romana, que havia sido uma comunidade de fazendeiros livres, dependia agora cada vez mais do saque externo e da escravidão interna.

Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre o efeito das conquistas militares sobre as camadas mais humildes de Roma

Vocês lutam e morrem para dar riqueza e luxo a outros. Vocês são chamados de donos do mundo, mas não há um metro de chão que vocês possam chamar de seu.

Trecho de discurso de Tibério Graco (162 a.C.-133 a.C.), tribuno da plebe que tentou realizar a reforma agrária e foi assassinado no Fórum Romano, citado pelo historiador grego Plutarco (46 d.C.-125 d.C.) em sua biografia do personagem

    Prezados leitores, há duas semanas cumpri minha obrigação tributária acessória de preencher a declaração de imposto de renda e mandá-la à Receita Federal. É um grande alívio livrar-se dessa incumbência, sentimento este que compartilhei com uma colega de trabalho, que ainda não havia preenchido a sua. Aproveitando o ensejo, ela pediu minha ajuda para cumprir a tarefa e ao longo de duas semanas trocamos mensagens sobre que valor colocar em que linha e em que aba do programa da Receita Federal. Provavelmente a contragosto, minha colega teve que compartilhar informações financeiras pessoais comigo.

    Foi então que percebi o exato tamanho do buraco em que ela se encontra, ao qual ela já aludira ao comentar sobre as dívidas que ela tem com o banco. Em termos práticos, isso a obriga a alocar mais da metade da sua renda mensal para o pagamento das prestações acordadas com o banco quando renegociou seu passivo. Em termos técnicos, minha colega está com o patrimônio líquido negativo e só não pode ser considerada insolvente porque ela ainda tem como amortizar os valores devidos, já que tem renda mensal garantida advinda de salário.

    Não sei em que ela empregou o dinheiro, e nem perguntei porque não é da minha conta. Se ao menos ela tivesse comprado algum bem durável ou um ativo permanente como um imóvel, esse capital tomado de terceiro teria tido algum uso que renderia frutos no futuro. Com base no que sei da vida dela, o dinheiro foi utilizado para consumo, mais de membros da família dela, do que dela mesma. Minha colega tem pouca educação financeira, o que é uma falha, mas não se pode negar que é generosa. Nisso, ela apresenta o comportamento de milhões de brasileiros.

    De acordo com a reportagem de VEJA citada na abertura deste artigo, mais de 70 milhões de brasileiros estão inadimplentes, o que perfaz 42% da população adulta do país. Essa situação não é de estranhar considerando o tipo de economia que se pratica em terras tropicais democráticas. De acordo com dados retirados do site do Banco Mundial, em 2023 a taxa de poupança do Brasil e a formação bruta de capital estavam em 16% do PIB. Para efeito de comparação, os números da China, a locomotiva industrial do século 21, esses números foram de 44% e 42%, respectivamente. Não havendo dinheiro guardado para investir e fazer a economia girar, como é feito no tigre asiático, só resta ao Brasil estimular o consumo das famílias pela oferta de crédito para que haja crescimento econômico.

    Entra governo e sai governo, é este nacional-consumismo, termo cunhado pelo ex-candidato à presidência, Ciro Gomes, que é praticado no Brasil como o caminho mais fácil para disfarçar a falta de investimentos que expandissem a infraestrutura do país e a capacidade produtiva. Não havendo investimento de capital em novas fábricas, ferrovias, pontes, portos e aeroportos que ampliem a oferta de produtos para um nível suficiente, facilitem a atividade econômica, aumentem a produtividade e a renda dos trabalhadores de maneira real e consistente ao longo dos anos, a saída é manter as pessoas comprando tudo a prazo, desde bens de consumo não duráveis, passando pelos duráveis e chegando aos imóveis.

    O Presidente Lula havia prometido picanha e cerveja para todo mundo durante a campanha presidencial de 2022. Isso só seria possível se a renda das famílias crescesse a um ritmo muito maior do que o preço dos alimentos, o que não ocorre. Em 2025, de acordo com estudo do economista André Braz, da FGV, os alimentos já consomem 22,61% do orçamento das famílias de renda mais baixa (de 1 a 1,5 salário mínimo), sendo que em 2018 essa porcentagem era de 18,44%. Não havendo renda suficiente, o consumo só se viabiliza pelo endividamento. Saem a picanha e a cerveja no churrasco do domingo, entra a oferta de dinheiro pelo financiamento do cartão de crédito e dos automóveis, pelo cheque especial, pelo crédito consignado, pelo crédito pessoal e pelo crédito imobiliário.

    Se o Presidente Lula puder mostrar no ano que vem aumento do PIB baseado no consumo e aumento da renda pelo aquecimento da economia, não será difícil que ele seja reeleito pelos beneficiários do bolsa-familia, do auxílio-gás, do Pé de Meia e do crédito facilitado em geral. Nesse sentido, ele segue uma receita já testada há séculos, quando os romanos a inventaram e a colocaram em prática: neutralizar o descontentamento da massa da população tornando-a dependente do Estado.

    A expansão territorial de Roma, acelerada depois da destruição de Cartago em 146 a.C., teve profundos efeitos sobre a economia: inundou a Península Itálica de escravos que achataram o salário dos homens livres e de produtos agrícolas importados das regiões conquistadas. Isso diminuiu os preços e inviabilizou a produção agrícola dos pequenos proprietários, que acabaram perdendo suas terras para os grandes latifundiários que podiam investir na produção e contratar escravos a não poder mais para a labuta rural. O resultado foi o desemprego nas cidades e a quebradeira no campo, levando a que se criassem as condições para o surgimento de uma massa de pessoas destituídas que acabaram fluindo para Roma. O que fazer com elas?

    A solução profunda do problema seria a distribuição de terras, a formação de novas colônias nos territórios incorporados ao domínio romano e o apoio governamental a que elas pudessem ter sucesso para que esses ex-trabalhadores do campo tornados soldados durante as guerras tivessem alguma perspectiva em sua vida civil. Os que tentaram colocar em práticas essa solução como Tibério Graco e seu irmão Caio Graco (154 a.C.-121 a.C.), tiveram morte violenta. Por outro lado, as elites romanas acharam um meio de lidar com o a questão sem interferir nos seus interesses. Conforme o trecho que abre este artigo, para os destituídos de Roma não havia emprego nem função social, mas havia o que lhes mantinha ocupados: comida barata e entretenimento à vontade, nas lutas de gladiadores, nos jogos, nas corridas, nas procissões, nos festivais.

    Prezados leitores, Roma oferecia pão e circo, nós no Brasil, oferecemos jogatina liberada na internet, crédito fácil e um pouco de picanha e cerveja na medida do que é possível parcelar no cartão de crédito. Oxalá que a democracia tupiniquim, que se mantém há 40 anos seguindo a receita de distrair as massas, não termine nas mãos de um ditador como a República romana terminou nas mãos de Júlio César (100 a.C.-44 a.C.). Aguardemos uma solução mais satisfatória para o povo brasileiro.

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Meras coincidências?

O botim das províncias fornecia os recursos para aquela orgia de riqueza corrupta e mesquinha que iria consumir a República em revolução. […] À medida que a moeda se multiplicava mais rápido do que as construções, os proprietários de imóveis na capital triplicavam sua fortuna sem mover um músculo ou nervo. A indústria ficava para trás, enquanto o comércio florescia; Roma não tinha que produzir bens; ela pegava o dinheiro do mundo e o usava para pagar pelos produtos mundiais. […] Roma estava se tornando não o centro industrial ou comercial, mas o centro financeiro e político do mundo do homem branco.

Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre o efeito das conquistas militares sobre Roma

Na verdade, a maioria dos americanos tornou-se desconectada da indústria. Eles realmente não entendem o que a indústria moderna exige. A ambição de restaurar a indústria americana é real, mas os instrumentos utilizados por Trump baseiam-se na economia e nas finanças (economia e finanças muito ruins, por sinal), não na indústria. Se os Estados Unidos quiserem realmente trazer a indústria de volta, eles terão que reconstruir todo o ecossistema para dar-lhe apoio. Não se trata de consertar um único setor, ajustar a direção das políticas, ou melhorar uma capacidade específica, muito menos somente aumentar tarifas.

Trecho retirado do artigo “Rare Earth and desindustrialziation” escrito por Hua Bin e publicado em 14 de maio

    Prezados leitores, em 2024 visitei a Tunísia, que foi o epicentro do Império Cartaginês (550 a.C.-202 a.C.), o qual se estendia por terras que atualmente se localizam na Tunísia, Marrocos, Espanha Portugal e Itália. O que se vê de autenticamente cartaginês é muito pouco. Há as ruínas do porto e dos locais onde os cartagineses guardavam os navios da sua famosa frota. E um cemitério onde, de acordo com a versão mais aceita da história, contada pelos vencedores, estão enterradas crianças que eram jogadas ao fogo vivas como sacrifício ao Deus Baal.

    As outras ruínas são na verdade construções que datam da época romana, porque depois que Roma destruiu Cartago em 146 a.C. o local foi abandonado e foi só décadas depois que Roma decidiu reocupar a antiga Cartago por sua localização estratégica. Tanto é assim que a joia turística da Tunísia é o Museu Nacional do Bardo, que reúne uma das maiores e mais belas coleções de mosaicos romanos do mundo. De maneira que, embora a famosa Cartago fique perto de Túnis, a capital do país, o que a Tunísia tem a oferecer em termos de tesouros artísticos é seu passado como província romana, e não como sede do Império Cartaginês.

    A destruição do maior rival de Roma no Mediterrâneo marcou um ponto de inflexão na história da cidade porque lhe permitiu não só se apossar dos espólios do império cartaginês, a Oeste, mas lhe deu o impulso de conquistar toda a bacia do Mediterrâneo a Leste, incluindo as colônias gregas na península itálica e a própria Grécia. O efeito desse domínio inconteste do Mar que ligava a Europa, a África e a Ásia foi a de viabilizar a construção de um império cujas características nos soam familiares em pleno século XXI.

    Conforme o trecho citado na abertura deste artigo, as conquistas militares de Roma lhe permitiram amealhar grande quantidade de dinheiro, o que revolucionou sua organização econômica. Da Espanha, ex-colônia de Cartago, os generais romanos trouxeram ferro, prata e ouro, além claro, de prisioneiros de guerra, que seriam transformados em escravos. Cartago, Macedônia e Síria tiveram que pagar grandes indenizações de guerra, além de contribuir também com mão de obra forçada. Esse influxo de dinheiro ficava muito além da capacidade de produção e construção de Roma, de forma que os proprietários de imóveis os vendiam a preços estratosféricos e o comércio com as províncias conquistadas era estimulado pela abundância de meios de pagamento e pela necessidade de suprir a demanda dos romanos por bens não produzidos localmente. De uma sociedade agrária, formada por agricultores que viviam de maneira simples, pois precisavam poupar para enfrentar os desastres da natureza, passou-se a uma sociedade de opulência, que tinha acesso a tudo o que podia ser comprado com o ouro e a prata obtidos pela pilhagem das regiões submetidas pela força das legiões, inclusive a produtos vindos da China.

    O resultado sobre o modo de vida dos cidadãos romanos não tardou a vir. A riqueza obtida pelas conquistas militares, sem que nenhum esforço agrícola ou industrial precisasse ser feito, levou a uma vida de luxo e de indolência, em que a atividade econômica mais importante era a especulação, seja pelo comércio, seja pela participação em organizações que prestavam serviços para o governo, que hoje chamaríamos de empreiteiras. A indolência levou a um relaxamento da moral, pois viver uma vida fácil e libertina não trazia nenhuma consequência ruim. A abundância de mão de obra escrava tirou das classes mais baixas a oportunidade de trabalhar, levando ao surgimento de um proletariado urbano que sobrevivia às custas da distribuição de alimentos pelo governo e que não tinha nenhum papel a desempenhar na sociedade.

    Resumindo, economia dependente de redes de suprimento globais, excesso de moeda, desigualdade crescente de renda, financeirização da economia, desindustrialização, elites interessadas apenas em manter seus privilégios, sem propor nada de novo, pois o status quo as beneficiava, guerras constantes para a obtenção de mais espólios e fazer o sistema continuar a funcionar. Ora, não são essas as características do Império Americano em pleno século XXI? Os números não nos deixam mentir.

    Em 2024, o déficit comercial dos Estados Unidos, isto é a diferença entre importações e exportações foi de 1.202,329,50 de dólares, de acordo com o United States Census Bureau. De acordo com o Banco Central Americano, em 1º de janeiro de 2025 havia 2,37 trilhões de dólares americanos circulando no mundo. Em 2024, a atividade industrial contribuiu com 10% do PIB americano, ao passo que o setor financeiro, securitário e imobiliário contribuiu com 21,2% (fonte: Estatista). Quanto às guerras, desde 1775, com o início da Guerra de Independência, os Estados Unidos estiveram envolvidos em 12 grandes guerras (fonte: Wikipedia), para não falar das intervenções militares pontuais, como bombardeios, envio de mísseis, ajuda militar a grupos rebeldes. Finalmente, os gráficos preparados pelo Gabinete de Orçamento do Congresso dos Estados Unidos mostram que os 20% mais pobres viram sua renda estagnar desde 1980 até a década de 20 do século XXI, ao passo que o 1% mais rico viu sua renda aumentar em mais de 800% no mesmo período.

    Não é de estranhar que consideradas as semelhanças que o Império Americano tem com o Império Romano, o presidente americano Donald Trump queira fazer algo para evitar a implosão dos Estados Unidos, tal como aconteceu com Roma, que em 476 d.C. sucumbiu às invasões dos povos bárbaros. Além de estar procurando fazer a paz com a Rússia a respeito da guerra na Ucrânia e conversando com o Irã em busca de um acordo sobre o uso de energia nuclear por aquele país, Trump quer trazer prosperidade para os americanos fazendo a indústria voltar aos Estados Unidos. Quais são as chances de ele ter sucesso?

    Para Hua Bin, cujo artigo é citado na abertura deste artigo, impor tarifas em produtos importados para torná-los mais caros e incentivar a produção local não é a solução. É preciso ir muito mais fundo e criar o ambiente adequado, construindo fábricas e infraestrutura, fazendo investimentos que só terão retorno no longo prazo, adquirindo equipamentos, treinando trabalhadores. O esforço industrial exige o concerto de vários setores da sociedade – universidades, empresários, instituições governamentais – de maneira a estabelecer as políticas de incentivo, a infraestrutura física que diminui o custo de fazer negócios para a iniciativa privada, a oferta de recursos humanos qualificados que viabiliza a inovação. Isso é tarefa não para um mandato presidencial de 4 anos, mas para décadas de planejamento, persistência e trabalho duro contínuos. No máximo, Trump pode começar a executar o projeto de reindustrialização, começar a estabelecer as fundações do edifício, e torcer para que o próximo governo dê continuidade à obra.

    Prezados leitores, a lição da história parece ser que todo império morre, porque a vida se torna tão fácil para alguns que eles acabam deitando-se em berço esplêndido e não têm mais incentivos para achar novos caminhos quando as circunstâncias mudam e surgem desafios.  Roma e os Estados Unidos começaram como sociedades de cidadãos diligentes e autônomos e acabaram se tornando sociedades dependentes do comércio internacional e gozando dos privilégios do poder do seu dinheiro para comprar e conquistar tudo. Já vimos como terminou Roma. Aguardemos para ver se o Império Americano será desmantelado pacificamente ou acabará em sangue e violência.

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