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Conclave

Posted by on 09/05/2025

Esse fanático nem desconfiava que alguém pudesse raciocinar com base em premissas diferentes das suas; eu oferecia a este povo desprezado um local dentre outros na comunidade romana: Jerusalém, por intermédio de Akiba, me transmitia sua vontade de permanecer até o fim a fortaleza de uma raça e de um deus isolados do gênero humano. Esse raciocínio absurdo era expresso por intermédio de uma sutileza fatigante: eu tive que aguentar um longo rol de razões, deduzidas de maneira erudita umas das outras, da superioridade de Israel.

Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121-180 d.C.), que seria imperador

Havia algo de frio e impessoal nos deuses da religião oficial; eles podiam ser comprados por oferendas ou sacrifícios, mas raramente conseguiam proporcionar conforto ou inspiração individual. […] Quando novos cultos fluíram do Leste conquistado, foi esse culto oficial que decaiu primeiro, enquanto a fé pitoresca e íntima e o ritual do campo sobreviveu de maneira paciente e obstinada.

Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre a religião romana

[…] Jeová, o Deus dos Judeus, era no início acima de tudo a Divindade de uma tribo semítica Que protegia Seu próprio povo. Junto com Ele, havia deuses que reinavam sobre outras tribos. Não há nessa época nenhuma sugestão de um outro mundo. O Deus e Senhor de Israel comandava o destino terreno de Sua tribo. Ele é um Deus ciumento e não permitirá que Seu povo tenha outros deuses além Dele.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” do filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970)

    Prezados leitores, por volta de 130, portanto no segundo século da era cristã, o imperador Adriano está em Alexandria, no Egito, que é então província de Roma. Assim como qualquer mero mortal no século XXI de posse do seu celular, Adriano visita os pontos turísticos da cidade. Se hoje há a nova biblioteca de Alexandria, àquela época havia a biblioteca original e outras três grandes atrações que foram tragadas pelas areias do tempo: o Farol de Alexandria, o mausoléu de Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.) e o mausoléu de Marco Antônio (83 a.C.-30 a.C.) e de Cleópatra (70 a.C.-30 a.C.). O farol de Alexandria está no fundo do mar e ao menos restos dele foram descobertos no porto da cidade em 1998. Já os mausoléus são o Santo Graal da arqueologia ocidental: procurar muitos têm procurado, mas nada ainda foi achado.

    Adriano era mais do que um turista privilegiado, ele era o líder do Império Romano que ainda duraria mais duzentos anos. Era preciso que ele cumprisse funções de chefe de Estado e por isso recebia delegações com representantes de reinos e povos mais ou menos subjugados por Roma. Um deles eram os judeus. Àquela época, Adriano já havia ordenado a instalação da colônia Aelia Capitolina em Jerusalém que estava então em ruínas, depois da destruição pela segunda vez do Templo, em 70 d.C. Conforme o trecho que abre este artigo, o imperador recebe Akiba (40 d.C.-135 d.C.), o chefe da delegação dos judeus, que vem pedir-lhe que deixe Jerusalém como está, para que o povo judeu possa continuar a viver de acordo com suas tradições. Adriano considera os argumentos colocados pelo líder religioso absurdos e se irrita com a arenga de Akiba, principalmente pelo fato de que ele imperador podia entender quais eram as premissas do raciocínio do judeu, mas este não podia sequer considerar que pudesse haver outras premissas diferentes das suas que levassem a outras conclusões. E quais eram os respectivos princípios fundamentais?

    Conforme explica Bertrand Russell no trecho que abre este artigo, a religião judaica era não só monoteísta como exclusivista. Havia um só Deus, Jeová, e este havia feito uma aliança com o povo judeu e somente com ele. Jeová tratava dos assuntos do povo judeu e mais nada e ai do judeu que quebrasse o pacto firmado com Jeová, que exigia fidelidade absoluta. Não é de admirar que Akiba estivesse solicitando a Adriano que a Aelia Capitolina fosse abortada. Instalar uma colônia romana necessariamente levaria à construção de templos dedicados aos deuses romanos. Como aceitar que isso fosse feito em Jerusalém, a capital do povo que tinha aliança com Jeová? Um templo em homenagem a Vênus afrontaria a autoridade de Jeová em território onde ele gozava de jurisdição absoluta.

    Ora, Adriano jamais poderia levar em consideração nenhum dos argumentos propostos por Akiba justamente porque ele não aceitava a premissa que o Deus cultuado por uma tribo específica deveria ter prioridade sobre os deuses de outros povos. Não só a religião romana era politeísta, aceitando diferentes divindades em seu panteão, mas as relações com a divindade eram bem diferentes. Jeová dava ordens aos seus jurisdicionados, comandando-os a atravessar o deserto ou o Mar Vermelho, e estabelecia um código de conduta moral, consubstanciado nos Dez Mandamentos. Na religião romana, a relação do homem com a divindade era transacional.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o fiel sacrificava animais ou até seres humanos, fazia oferendas de objetos ou alimentos, cumpria rituais precisos, para receber em troca a satisfação de algum desejo ou a mitigação de algum sofrimento. Os romanos não obedeciam a seus deuses como os judeus obedeciam a Jeová, em uma típica relação de pai e filho. Eles negociavam com seus deuses com o objetivo de celebrar um contrato em que as partes tinham obrigações mútuas. A obrigação do homem era ou executar bem o ritual ou fazer o sacrifício ou a oferenda proporcionais ao pedido. A obrigação da divindade era entregar a contraprestação, qual seja, satisfazer o desejo do postulante.

    Não admira que os romanos tenham sido os pais do Direito Ocidental, dado seu apreço pelo legalismo, pelos procedimentos detalhadamente estabelecidos e pelo formalismo. No entanto, não admira que, para que o Império Romano pudesse sobreviver como entidade supranacional, transmutando-se na Igreja Católica, ele tenha que ter importado um culto do Oriente, o Cristianismo, que em seu início era um judaísmo reformado e que adicionou a emoção da relação subjetiva do homem com o Deus único e verdadeiro, substituindo a relação fria e objetiva vigente sob os princípios romanos. Foi só quando Paulo de Tarso colocou de lado a circuncisão e as restrições alimentares que essa seita de judeus heterodoxos se tornou universalmente aceitável e pôde dar origem à instituição com sede em Roma e chefiada por seu pontifex maximus, que era o chefe dos sacerdotes encarregados da religião do Estado, isto é, das práticas transacionais com as divindades para o bem da coletividade dos cidadãos romanos.

    Prezados leitores, nesses tempos de conclave para a escolha do novo papa, não só habemus papam em latim lembra as origens da Igreja Católica no Império Romano. O ritual da fumaça preta ou branca, as palavras precisas ditas pelo cardeal eleito por seus pares para aceitar o encargo de pontifex maximus são parte do legado a que Adriano chamou de “comunidade romana”, os valores que embasavam Roma como instituição imperial. No final das contas, tanto o ponto de vista de Adriano quanto o de Akiba acabaram sobrevivendo na Igreja Católica, afinal ela é monoteísta, mas cultua uma infinidade de santos. Enquanto esperamos a revelação do novo chefe de Estado e chefe de governo do Vaticano, lembremos que Adriano, nas profundezas do seu mausoléu no Castelo Sant’Angelo, à beira do Rio Tibre, poderá olhar o homem que acenará da sacada na Praça de São Pedro, a quatro quilômetros dali, como seu sucessor.

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