Como se fosse um médico que receita mais algumas doses para um paciente que já vem perdendo o controle do consumo de álcool, o governo acelera fundo nos estímulos ao consumo. Desde janeiro de 2023, a gestão Lula adotou uma série de políticas para turbinar o crescimento da economia. Entre as iniciativas estão o novo Programa de Aceleração do Crescimento, a ampliação do Minha Casa, Minha Vida e liberações de saques do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
Trecho retirado do artigo intitulado “O País dos Endividados” publicado na edição de VEJA de 16 de maio
[…] o próprio camponês, depois de ter conhecido e pilhado o mundo como soldado, não tinha vontade nem paciência para o trabalho solitário e as tarefas desprovidas de aventura da fazenda; ele preferia juntar-se ao proletariado turbulento da cidade, assistir de graça aos jogos excitantes do anfiteatro, receber milho barato do governo, vender seu voto a quem desse o maior lance ou prometesse mais coisas e perder-se na massa empobrecida e indistinta.
A sociedade romana, que havia sido uma comunidade de fazendeiros livres, dependia agora cada vez mais do saque externo e da escravidão interna.
Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre o efeito das conquistas militares sobre as camadas mais humildes de Roma
Vocês lutam e morrem para dar riqueza e luxo a outros. Vocês são chamados de donos do mundo, mas não há um metro de chão que vocês possam chamar de seu.
Trecho de discurso de Tibério Graco (162 a.C.-133 a.C.), tribuno da plebe que tentou realizar a reforma agrária e foi assassinado no Fórum Romano, citado pelo historiador grego Plutarco (46 d.C.-125 d.C.) em sua biografia do personagem
Prezados leitores, há duas semanas cumpri minha obrigação tributária acessória de preencher a declaração de imposto de renda e mandá-la à Receita Federal. É um grande alívio livrar-se dessa incumbência, sentimento este que compartilhei com uma colega de trabalho, que ainda não havia preenchido a sua. Aproveitando o ensejo, ela pediu minha ajuda para cumprir a tarefa e ao longo de duas semanas trocamos mensagens sobre que valor colocar em que linha e em que aba do programa da Receita Federal. Provavelmente a contragosto, minha colega teve que compartilhar informações financeiras pessoais comigo.
Foi então que percebi o exato tamanho do buraco em que ela se encontra, ao qual ela já aludira ao comentar sobre as dívidas que ela tem com o banco. Em termos práticos, isso a obriga a alocar mais da metade da sua renda mensal para o pagamento das prestações acordadas com o banco quando renegociou seu passivo. Em termos técnicos, minha colega está com o patrimônio líquido negativo e só não pode ser considerada insolvente porque ela ainda tem como amortizar os valores devidos, já que tem renda mensal garantida advinda de salário.
Não sei em que ela empregou o dinheiro, e nem perguntei porque não é da minha conta. Se ao menos ela tivesse comprado algum bem durável ou um ativo permanente como um imóvel, esse capital tomado de terceiro teria tido algum uso que renderia frutos no futuro. Com base no que sei da vida dela, o dinheiro foi utilizado para consumo, mais de membros da família dela, do que dela mesma. Minha colega tem pouca educação financeira, o que é uma falha, mas não se pode negar que é generosa. Nisso, ela apresenta o comportamento de milhões de brasileiros.
De acordo com a reportagem de VEJA citada na abertura deste artigo, mais de 70 milhões de brasileiros estão inadimplentes, o que perfaz 42% da população adulta do país. Essa situação não é de estranhar considerando o tipo de economia que se pratica em terras tropicais democráticas. De acordo com dados retirados do site do Banco Mundial, em 2023 a taxa de poupança do Brasil e a formação bruta de capital estavam em 16% do PIB. Para efeito de comparação, os números da China, a locomotiva industrial do século 21, esses números foram de 44% e 42%, respectivamente. Não havendo dinheiro guardado para investir e fazer a economia girar, como é feito no tigre asiático, só resta ao Brasil estimular o consumo das famílias pela oferta de crédito para que haja crescimento econômico.
Entra governo e sai governo, é este nacional-consumismo, termo cunhado pelo ex-candidato à presidência, Ciro Gomes, que é praticado no Brasil como o caminho mais fácil para disfarçar a falta de investimentos que expandissem a infraestrutura do país e a capacidade produtiva. Não havendo investimento de capital em novas fábricas, ferrovias, pontes, portos e aeroportos que ampliem a oferta de produtos para um nível suficiente, facilitem a atividade econômica, aumentem a produtividade e a renda dos trabalhadores de maneira real e consistente ao longo dos anos, a saída é manter as pessoas comprando tudo a prazo, desde bens de consumo não duráveis, passando pelos duráveis e chegando aos imóveis.
O Presidente Lula havia prometido picanha e cerveja para todo mundo durante a campanha presidencial de 2022. Isso só seria possível se a renda das famílias crescesse a um ritmo muito maior do que o preço dos alimentos, o que não ocorre. Em 2025, de acordo com estudo do economista André Braz, da FGV, os alimentos já consomem 22,61% do orçamento das famílias de renda mais baixa (de 1 a 1,5 salário mínimo), sendo que em 2018 essa porcentagem era de 18,44%. Não havendo renda suficiente, o consumo só se viabiliza pelo endividamento. Saem a picanha e a cerveja no churrasco do domingo, entra a oferta de dinheiro pelo financiamento do cartão de crédito e dos automóveis, pelo cheque especial, pelo crédito consignado, pelo crédito pessoal e pelo crédito imobiliário.
Se o Presidente Lula puder mostrar no ano que vem aumento do PIB baseado no consumo e aumento da renda pelo aquecimento da economia, não será difícil que ele seja reeleito pelos beneficiários do bolsa-familia, do auxílio-gás, do Pé de Meia e do crédito facilitado em geral. Nesse sentido, ele segue uma receita já testada há séculos, quando os romanos a inventaram e a colocaram em prática: neutralizar o descontentamento da massa da população tornando-a dependente do Estado.
A expansão territorial de Roma, acelerada depois da destruição de Cartago em 146 a.C., teve profundos efeitos sobre a economia: inundou a Península Itálica de escravos que achataram o salário dos homens livres e de produtos agrícolas importados das regiões conquistadas. Isso diminuiu os preços e inviabilizou a produção agrícola dos pequenos proprietários, que acabaram perdendo suas terras para os grandes latifundiários que podiam investir na produção e contratar escravos a não poder mais para a labuta rural. O resultado foi o desemprego nas cidades e a quebradeira no campo, levando a que se criassem as condições para o surgimento de uma massa de pessoas destituídas que acabaram fluindo para Roma. O que fazer com elas?
A solução profunda do problema seria a distribuição de terras, a formação de novas colônias nos territórios incorporados ao domínio romano e o apoio governamental a que elas pudessem ter sucesso para que esses ex-trabalhadores do campo tornados soldados durante as guerras tivessem alguma perspectiva em sua vida civil. Os que tentaram colocar em práticas essa solução como Tibério Graco e seu irmão Caio Graco (154 a.C.-121 a.C.), tiveram morte violenta. Por outro lado, as elites romanas acharam um meio de lidar com o a questão sem interferir nos seus interesses. Conforme o trecho que abre este artigo, para os destituídos de Roma não havia emprego nem função social, mas havia o que lhes mantinha ocupados: comida barata e entretenimento à vontade, nas lutas de gladiadores, nos jogos, nas corridas, nas procissões, nos festivais.
Prezados leitores, Roma oferecia pão e circo, nós no Brasil, oferecemos jogatina liberada na internet, crédito fácil e um pouco de picanha e cerveja na medida do que é possível parcelar no cartão de crédito. Oxalá que a democracia tupiniquim, que se mantém há 40 anos seguindo a receita de distrair as massas, não termine nas mãos de um ditador como a República romana terminou nas mãos de Júlio César (100 a.C.-44 a.C.). Aguardemos uma solução mais satisfatória para o povo brasileiro.