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A boa vida e a boa morte, de Lucrécio a Jesus Cristo

Posted by on 29/05/2025

Mas os deuses não se levantam; eles não se levantam nem para nos advertir, nem para nos proteger, nem para nos recompensar, nem para nos punir.

Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121-180 d.C.), que seria imperador

Há deuses, afirma Lucrécio, mas eles habitam muito longe, em um isolamento feliz em relação ao pensamento ou aos cuidados do homem. Lá, “nos baluartes incandescentes do mundo” (extra flammantia moenia mundi) , fora do alcance dos nossos sacrifícios e orações, eles vivem como seguidores de Epicuro, evitando os assuntos mundanos, contentes com a contemplação da beleza e a prática da amizade e da paz.

Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre o pensamento do poeta e filósofo romano Lucrécio (94 a.C.-50 a.C.), autor “Da Natureza das Coisas”

    Prezados leitores, uma bonita cena da série Maximilian & Marie de Bourgogne, lançada em 2018, é o momento em que marido e mulher se despedem. Maria, Duquesa da Borgonha (1457-1482), havia caído de um cavalo enquanto caçava e agonizava há semanas, com múltiplas faturas, incluindo da coluna. As últimas palavras dela a Maximilian (1459-1508) são as seguintes: “Nossa vida não nos pertence, ela nos é dada de empréstimo. Viva e depois se junte a mim”. Esse pequeno discurso encerra duas ideias de tradições filosóficas opostas, mas que em uma pessoa como Marie, que nasce quando o Renascimento está em pleno florescimento, faz todo o sentido. Explico-me.

    A ideia da vida como um empréstimo vem direto de Lucrécio, que havia sido redescoberto pelo humanista italiano Poggio Braciolini (1380-1459) em 1417. Para o autor de De Rerum Natura, a vida não é algo sobre o qual temos propriedade absoluta e que nos pertença para sempre. Considerado um dos pais do materialismo moderno, a premissa básica do filósofo é que o mundo é feito das partículas primordiais, que ele chamava de primordia, elementa ou semina, e que hoje chamamos de átomos, e do vazio. Esses elementos indestrutíveis, imutáveis, sólidos, resistentes, silenciosos, inodoros e descoloridos se movem e se combinam uns com os outros de uma infinidade de maneiras, gerando tudo o que há na natureza, incluindo a própria vida.

    Sendo gerada a partir dos átomos, a vida tem a mesma natureza que a matéria. Aquilo a que chamamos de mente e consciência não existe independentemente da matéria e por isso não se pode falar que exista uma alma independente do corpo, isto é, que exista uma entidade imaterial que tenha existência autônoma em relação à matéria. Para Lucrécio, se a alma existisse sem o corpo ela seria inútil, porque ela não poderia sentir nada, nem tocar, nem ver, nem ouvir, nem cheirar, nem provar nada.

    Se a dita alma morre com o corpo, como encaixar o reino espiritual no mundo de Lucrécio? Conforme o trecho que abre este artigo, sua teologia concebe deuses totalmente apartados dos assuntos humanos, não envolvidos em nada com a matéria. Os deuses não criam nada e não são a causa dos acontecimentos. Afinal, como conceber que a vida no mundo material, cheia de desordem, de desperdício, de sofrimento e de injustiças, seja fruto de uma entidade espiritual? Nesse sentido o mundo é autossuficiente, obedecendo às suas próprias leis (a Lei) e não aos ditames de alguma divindade.

    Não é outra a concepção do Imperador Adriano, tal como concebido pela escritora Marguerite Yourcenar. A citação que abre este artigo é clara: os deuses são indiferentes a nós, pobres mortais, não interferindo para punir os maus e recompensar os justos, para nos proteger do mal advertindo-nos sobre nosso comportamento para que nós o corrijamos. Nesse sentido, tanto Adriano quanto Lucrécio apontam a inutilidade dos rituais religiosos. Nenhum sacrifício, nenhuma oração, nenhuma promessa terão influência sobre os deuses de modo a convencê-los a usarem seus poderes ao nosso favor.

    Para Lucrécio, a chave da vida é colocar sua mente em sintonia com a Lei que rege a matéria, sem temer os deuses, que não fazem nada nem para nos prejudicar nem para nos beneficiar, e sem temer a morte que é o mero corolário da vitalidade inesgotável do mundo: se a matéria está em eterno movimento e transformação, isso significa que sempre haverá destruição do velho para que o novo surja. Livre do terror da morte e da vingança dos deuses, o homem pode atingir a paz e levar a boa vida puramente material, que na prática significa a operação harmoniosa dos sentidos sob a orientação da razão a fazer inferências sobre as sensações recebidas.

    Essas explicações permitem-nos ver a contradição das últimas palavras de Maria de Borgonha. Ela adota Lucrécio ao falar a Maximiliano que a vida da combinação de partículas fundamentais que é o ser humano é efêmera, pois será logo dissolvida e os átomos se recombinarão. Ao mesmo tempo, ela não abandona a religião dominante na sua época o cristianismo, pois diz ao marido que eles se encontrarão na outra vida. Ora, se haverá um novo encontro isso significa que as almas se reunirão, que elas continuam a existir independentemente do corpo e que a vida delas é eterna. Um pé no mundo clássico e outro no mundo cristão, esta era a atitude de todo indivíduo das elites europeias bafejadas pelos ares do Renascimento.

    Prezados leitores, Maria de Borgonha, retratada na ficção televisiva, lidou com a aproximação da morte valendo-se da esperança cristã na ressurreição da carne e da lucidez clássica de constatar que não há vida sem morte e vice-versa. A quem consegue fazer tal síntese, talvez o encerramento do espetáculo da vida, seja ele cômico ou trágico, seja uma experiência menos solitária e agonizante. Afinal, segundo a lição de Lucrécio, a uma boa vida em sintonia com a Lei, segue uma boa morte. E a uma boa morte, segundo a lição de Jesus Cristo, segue a vida eterna.

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