Todavia, Sócrates, por obediência a nós, os responsáveis pela sua criação, não dê aos filhos, à vida, ou a qualquer outra coisa maior valor do que ao justo, a fim de que, quando chegar ao Hades, você possa apresentar tudo isso em sua defesa perante os governantes de lá. Com efeito, é manifesto a você, ou a qualquer amigo seu, que esta eventual ação sua não é melhor aqui, nem mais justa, nem mais pia, tampouco será melhor lá quando chegar ao Hades. De fato, você irá embora daqui, caso vá, como vítima de uma injustiça, não por força das leis, que somos nós, mas por força dos homens; se você, no entanto, partir daqui de modo tão vergonhoso, retribuindo uma injustiça e um mal, transgredindo os consentimentos e os acordos que você mesmo estabeleceu conosco, e fazendo mal a quem menos devia – ou seja, a você mesmo, aos seus amigos, à pátria e a nós –, seremos severas com você enquanto estiver vivo; e lá as nossas irmãs, as leis do Hades, não irão recebê-lo com benevolência, uma vez informadas de que a nós você tentou arruinar, no que cabia a você.
Fala das “Leis” na tradução de “Críton” feita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva
No TSE, impossível não suspeitar de politização decisória no recente caso da cassação de Deltan Dalagnol, dada a opção por interpretação alargada, justamente contra o político que se tornou desafeto declarado de parte da cúpula do Judiciário (pois as arbitrariedades que praticava miravam também ministros do STF), de uma cláusula de inelegibilidade que merece interpretação restritiva.
Trecho retirado do artigo “Mesmo na emergência, deve haver Direito”, de autoria de Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP e publicado no jornal o Globo em 21 de maio, sobre a cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol
Prezados leitores, devo começar nesta semana por uma errata: a terceira citação que abre o meu artigo “Sócrates Reloaded” não foi retirada da “Apologia de Sócrates”, mas de Críton, outro diálogo escrito por Platão. Se na Apologia de Sócrates o filósofo defende-se das acusações de corrupção dos jovens e de não reconhecer os deuses da cidade de Atenas, e depois de ser condenado à morte, dirige-se aos jurados, em Críton Sócrates dialoga com um amigo e discípulo seu, Críton, que quer convencê-lo a evadir-se da prisão e refugiar-se em alguma outra cidade grega. Para demovê-lo da ideia, Sócrates cria uma personagem “As Leis”, que desenvolvem um argumento em favor da aceitação por Sócrates do seu veredito.
Meu objetivo neste humilde artigo será o de explicar tal argumento, lançando luz sobre uma outra faceta de Sócrates, além daquela que já explorei anteriormente de antidemocrata, qual seja: a de cidadão que compreendia a natureza profunda das leis. Em assim fazendo poderei refletir sobre o episódio do ex-Lava Jatista Deltan Dallagnol e o que ele revela sobre a nossa própria concepção da lei.
A fala das “Leis”, dirigida tanto a Sócrates, o homem que foi considerado culpado pelos jurados, quanto a Críton, seu amigo que o ama e que não quer perdê-lo, é a seguinte, conforme o trecho que abre este artigo: as regras de conduta e de governo vigentes em Atenas permitiram a Sócrates nascer na cidade, educar-se e constituir família, transformando-se em um homem com atuação destacada na vida da pólis. O filósofo as aceitou de bom grado, tanto que raramente saiu de Atenas e quando o fez foi para lutar pela pátria, na Guerra do Peloponeso (431 a.C. – 404 a.C.). Assim, ele concordou em submeter-se às leis atenienses porque considerava que elas proporcionavam uma estrutura adequada para o seu desenvolvimento individual.
No entanto, essas mesmas leis, no momento do julgamento do filósofo, estão sendo invocadas pelos jurados para condená-lo à morte, sob a justificativa de que Sócrates as desrespeitara. Pode ser que a decisão da maioria dos jurados, os quais não foram persuadidos por Sócrates a optar pela absolvição, tenha sido equivocada e portanto, injusta. Sabemos já que no processo de decisão democrática não há necessariamente a busca pela verdade, mas pela persuasão, por qualquer meio possível, incluindo o apelo à emoção, que tenha o condão de convencer quem tem que tomar uma decisão.
Mesmo que os jurados tenham sido levados por uma antipatia pelo filósofo, que se mostrou arrogante durante o julgamento, altivo na certeza de que a busca da verdade, longe dos debates da ágora, era o melhor caminho a seguir na vida, as Leis apontam para Sócrates e para Críton que evadir a execução da pena pela fuga é um desrespeito e uma afronta à entidade Lei que fará com que Sócrates e seus amigos, que porventura o ajudassem a sair da pátria e a exilar-se, quando morressem e descessem ao Hades, ao mundo subterrâneo dos mortos, seriam considerados culpados e submetidos à danação eterna, proporcional à violação do espírito das Leis. Estas são sagradas porque dão vida, isto é, permitem que as pessoas tenham uma família, que as famílias sejam mantidas e prosperem, engendrando por sua vez novas famílias, cujos membros constituirão os cidadãos da pólis.
Ora, Sócrates não era afeito ao regime democrático, mas ele era leal às Leis, como bom cidadão de Atenas. De acordo com outro famoso ateniense, o orador Demóstenes (384 a.C. -322 a.C.) as leis eram dádivas dos deuses aos homens para que pudessem conviver entre si e para terem um mecanismo de correção dos erros tanto voluntários quanto involuntários. Era preciso cumprir as leis sempre, independentemente do custo pessoal que isso implicasse, porque sem elas não haveria sociedade e não haveria vida. E assim Sócrates o fez, sem pestanejar, mas como era do seu feitio, sem antes dialogar com seu amigo Críton para que juntos chegassem a uma definição do melhor curso a seguir depois da condenação. A aplicação das leis podia ser falha em um regime democrático, mas as leis em si, enquanto ideal que davam o suporte material e espiritual à organização social, não eram. Nesse sentido, a desobediência às Leis só semearia a discórdia entre os homens e o caos, inviabilizando a vida na pólis.
Nesse ponto, coloco-lhes a pergunta: no século XXI, as Leis são colocadas no panteão das coisas sagradas com poderes de criação em que as colocavam Sócrates e seus conterrâneos? O episódio da cassação do mandato do deputado recém-eleito Deltan Dallagnol é emblemático a esse respeito. Os juízes do Tribunal Superior Eleitoral fundamentaram sua decisão em uma aplicação da Lei da Ficha Limpa que determina a inelegibilidade de indivíduos condenados pela justiça ou demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo. De acordo com o TSE, Deltan era alvo de pelo menos 15 processos administrativos no Conselho Nacional do Ministério Público e eles interpretaram sua exoneração do Ministério Público Federal como uma tentativa de livrar-se das penas que lhe seriam impostas, incluindo a inelegibilidade, caso ele fosse considerado culpado nos processos.
O professor Rafael Mafei, no artigo citado na abertura deste artigo, mostra as falhas desta decisão: violação da presunção da inocência, interpretação extensiva de uma cláusula que deveria ter interpretação restrita, pois sua aplicação implica imposição de pena. A má técnica jurídica dos juízes do TSE levanta a suspeita de uso das leis como instrumento de vingança política. A própria vítima da decisão diz que o relator Benedito Gonçalves entregou sua cabeça em troca de uma vaga no STF.
Prezados leitores, será que o melhor, para o bem da preservação do espírito das leis brasileiras, seria que o ex-procurador da Lava-Jato imitasse o exemplo de Sócrates e respeitasse a decisão dos juízes sem fazer acusações de tendenciosidade e de corrupção? Ou será que ninguém mais no Brasil considera que o Poder Judiciário seja algo mais do que um saco de gatos que se engalfinham pelo poder? Será que em nosso Brasil do século XXI é ser inocente demais colocar fé nas Leis, como Sócrates colocou, pois o ideal já se foi há muito e o que ficou foi a instrumentalização da justiça como arma política? Será que só resta a cada um de nós puxar a sardinha para o nosso lado e que o bem da coletividade vá para o espaço?
Eu prefiro acreditar que o adágio dura lex sed lex é o melhor caminho a ser seguido. Querido Dallagnol, não politize uma decisão que pode ter sido simplesmente falha, e que não deveria ser usada para desacreditar ainda mais nosso Judiciário.