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Sobre tigres e cloacas

Posted by on 01/05/2025

Não me parecia impossível tratá-los como eu havia tratado esse homem, de torná-los inofensivos por conta da bondade, contanto que eles soubessem em primeiro lugar que a mão que os desarmava era firme. Todos os povos pereceram até agora por falta de generosidade: Esparta teria sobrevivido mias tempo se ela houvesse despertado o interesse dos hilotas pela sua sobrevivência; um belo dia Atlas deixa de sustentar o peso do céu e sua revolta chacoalha a terra. Eu teria gostado de recuar o mais possível, evitar se possível, o momento em que os bárbaros lá fora, os escravos aqui dentro, se precipitarão sobre o mundo que se exige que eles respeitem de longe ou que sirvam de baixo, mas cujos benefícios não são para eles. Eu gostaria que a mais desprovida das criaturas, o escravo que limpa as cloacas das cidades, o bárbaro faminto que errava pelas fronteiras, tivesse interesse a ver Roma durar.

Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121-180 d.C.), que seria imperador

Ao escravo negro se obrigou aos trabalhos mais imundos na higiene doméstica e pública dos tempos coloniais. Um deles, o de carregar à cabeça, das casas para as praias, os barris de excremento vulgarmente conhecidos por tigres. Barris que nas casas-grandes das cidades ficavam longos dias dentro de casa, debaixo da escada ou num outro recanto acumulando matéria. Quando o negro os levava é que já não comportavam mais nada. Iam estourando de cheios. De cheios e de podres. Às vezes largavam o fundo, emporcalhando-se então o carregador da cabeça aos pés.

Trecho retirado do livro Casa-grande & senzala, do sociólogo e escritor Gilberto Freyre (1900-1987)

    Prezados leitores, vocês já refletiram sobre o modo como as pessoas que prestam serviços domésticos – faxineiras, empregadas, encanadores, eletricistas – veem vocês? Por acaso vocês acham que pelo fato de sermos educados, pagarmos direitinho e sorrirmos os nossos serviçais gostam de nós? É só pensarmos na atitude que temos em relação a quem tem muito mais dinheiro do que nós para sabermos. Pude comprovar meus próprios sentimentos dúbios hoje ao almoçar com uma amiga que é rica o suficiente para viver de renda e não precisar trabalhar como eu, que se ficar desempregada depois de alguns meses começarei a ter dificuldades em manter meu padrão de vida.

    Ela falou sobre seus problemas de saúde, mas não tão graves que ameacem sua sobrevivência. Aliás, ela parece muito bem, pois está musculosa. Tem um personal trainer que vai a sua casa fazê-la se exercitar na piscina. Não pergunto detalhes da vida dela, porque como estou em um nível econômico bem inferior não quero parecer abelhuda e invejosa, mesmo porque se eu fizesse perguntas que a obrigassem a revelar parte da sua situação financeira privilegiada ela ficaria encabulada. Como tenho vergonha de falar sobre minha humilde vida de trabalhadora assalariada ela acaba sendo a protagonista das nossas conversas.

    Em assim sendo, apesar de toda sua discrição em ficar calada sobre os sinais de riqueza e a minha em não fazer perguntas, às vezes ela deixa escapar alguns detalhes. Hoje ela me revelou que está construindo uma casa em Portugal. Eu só me atrevi a perguntar em que lugar (Cascais), mas não indaguei do motivo. Só fiz o comentário de que há muitos americanos e britânicos (o caso dela) adquirindo imóveis em nossa antiga metrópole. Ela confirmou.

    Depois que a deixei e voltei à labuta lembrei-me de um português natural da Galícia que tem uma pequena rotisserie perto de minha casa. Esperando que ele aprontasse o galeto na brasa que eu havia pedido, comecei a conversar com o gajo. Ele quer voltar para Portugal, mas está muito caro lá. Deveras, cidadãos globais como minha amiga, que se movimentam pelo mundo para aproveitar o que há de melhor em cada canto, gostam do clima agradável de Portugal, cujos invernos são bem menos rigorosos do que no Norte da Europa e na maior parte dos Estados Unidos.

    Não admira que haja impacto no mercado imobiliário do fluxo de pessoas com poder aquisitivo para adquirir imóveis em locais atrativos, como perto do litoral. De acordo com o site Pearls of Portugal, em Lisboa estrangeiros compraram 33% dos imóveis vendidos em 2023. No Algarve eles foram responsáveis por 27% das compras de imóveis. Minha amiga entra nessas estatísticas, contribuindo para tornar a aquisição da casa própria por portugueses de classe média mais difícil, pois têm que competir com os cidadãos globais. Em assim sendo, os brazucas acabam sendo um bode expiatório fácil para as queixas dos lusitanos: ao contrário dos gringos ricos que inflacionam o mercado imobiliário, mas injetam dinheiro na economia, os brasileiros estão lá em sua maior parte para oferecer sua força de trabalho, a competir com os nossos primos.

    Essas associações que fiz entre a felicidade de minha amiga em desfrutar do bacalhau e do sol lusitanos e a infelicidade do vendedor de galetos que não pode voltar para sua terra natal provavelmente ainda não passaram pela cabeça dela e passaram pela minha porque estou de fora da bolha em que ela vive. Pode ser que ainda passe pela cabeça dela e isso seria bom para que tenha consciência dos privilégios de que goza e faça alguma coisa para torná-los menos ofensivos aos que estão no andar de baixo, como eu. O imperador romano Adriano, tal como representado pela escritora Marguerite Yourcenar, tinha a receita de como lidar com essas discrepâncias entre a bem-aventurança de uns e a miséria de outros.

     Conforme o trecho que abre este artigo, Adriano considerava que ser bom com os mais humildes era muito importante.  Bom não no sentido de farta generosidade de tratamento igualitário, mas no sentido de condescendência. Era preciso jogar algumas apetitosas migalhas aos que estavam no andar de baixo e ao mesmo tempo nunca os deixar esquecer quem mandava e quem obedecia. Isso cumpriria dois objetivos: permitiria que os desfavorecidos pela sorte, pelo nascimento ou pelo talento conseguissem uma parte – pequena que fosse – da prosperidade de Roma e que esses desfavorecidos, beneficiados que haviam sido pela generosidade do andar de cima, tivessem interesse em manter a organização econômica, política, cultural e militar que era Roma. Só assim o Império Romano manteria suas fronteiras e não seria conquistado pelos bárbaros e manteria a paz interna, impedindo revoltas das classes inferiores. Resumo da ópera para Adriano: Roma só sobreviveria se até o mais humilde dos seres, os escravos que limpavam as cloacas da cidade-eterna, considerasse que para ele era melhor que aquele sistema continuasse funcionando pois ele conseguia obter algo para si, por pequeno que fosse.

    Será que no Brasil os escravos que carregavam os baldes de excrementos, conforme a descrição de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, consideravam que por mais vis que fossem suas atividades, tais como os limpadores de cloacas romanas, eles tiravam algum benefício do regime escravocrata? Se considerarmos os índices de corrupção e violência que ainda prevalecem no país em pleno século XXI, vemos que temos um problema sério em engajar todos os cidadãos a terem interesse em que o sistema funcione. No índice da organização Transparency International ocupamos a posição de número 107 em 2024 entre 180 países, elencados dos menos aos mais corruptos, e ocupamos a 15ª posição no ranking das taxas de criminalidade, registrando 65,6 crimes por 100 habitantes, de acordo com o site World Population Review.

    Prezados leitores, o que fazer? Será que a receita de Adriano ainda faz sentido? Adriano foi um dos chamados imperadores-filósofos de Roma, que incluíram Trajano (98-117 d.C.), Adriano (117-138 d.C.), Antonino Pio (138-161 d.C.), Lúcio Vero (161-169 d.C.) e Marco Aurélio (161-180 d.C.), caracterizados por sua sabedoria e habilidades aplicadas à arte de governar.  Fazer com que todos se sintam parte do todo e não seres descartáveis nunca é uma má ideia para tornar a sociedade mais próspera e estável. Oxalá, consigamos algum dia seguir essa simples regra da boa governança.

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