“Não existem fatos apenas interpretações”
Friederich Nietzsche (1844-1900)
Meus primeiros estudos universitários foram feitos mais ou menos sob a inspiração da frase acima. Digo inspiração não por eu ter lido algo do filósofo alemão na Faculdade de Letras pela qual me formei em 1998, ou por eu tê-la escolhido como definidora da minha digamos “filosofia de vida”. Cito Nietzsche, que tanto criticou o Cristianismo, o nacionalismo e toda a cultura e sistema de valores então em voga, porque a principal missão a que os professores se dedicavam era fazer com que nós, alunos, fôssemos críticos.
Eu havia tido a esperança, e este foi um dos motivos de eu ter escolhido fazer Letras, de que eu teria contato com as grandes obras-primas da literatura ocidental e com isso eu poderia aumentar minha bagagem cultural. Tendo aprendido com os mestres, eu seria capaz de criticar, de ter opiniões próprias. Já naquela época, eu acreditava, e ainda acredito que, como diz Peter Jones, um jornalista britânico autor de uma coluna semanal entitulada “Ancient and Modern”da Revista The Spectator, “a verdadeira criatividade depende da libertação da tirania de saber as coisas”.
Sob essa perspectiva, a educação deve ser um exercício do cérebro, feito em grande parte de memorização, de modo a prover o indivíduo com “intuição rápida” e “agudeza de raciocínio”. Em suma, na faculdade as leituras exaustivas que faríamos de todos aqueles que haviam pensado sobre as coisas antes de nós nos obrigaria a um esforço de entendimento e com isso aprenderíamos a pensar, primeiramente sabendo repetir com nossas próprias palavras aquilo que os grandes e criativos haviam dito, e em seguida formulando gradualmente nossas próprias ideias. Claro que àquela época eu não formulava este projeto de maneira tão clara como estou fazendo agora, do alto da minha experiência e com a ajuda do Peter Jones, mas eu tinha uma intuição sobre o que queria para mim em termos de formação intelectual: ser um cidadão pensante como resultado de árduos esforços de mergulho nos clássicos.
Como o uso do condicional acima pode fazer meus leitores vislumbrarem, minhas esperanças sobre o conteúdo da faculdade e sua proposta foram em larga medida destruídas. Afinal, os professores que davam aulas na USP na década de 1990 na área de Ciências Humanas são todos filhos da década de 60, e portanto beberam as águas “rejuvenescedoras” do marxismo cultural, do desconstrucionismo, da Escola de Frankfurt, em suma de todos aqueles movimentos que questionaram as fundações da civilização ocidental. É claro que tal movimento começou muito antes na filosofia de Nietzsche, de Freud e do próprio Marx, mas foi na década de 60 que tais críticas deixaram de ser marginais e tornaram-se parte da corrente bem pensante, de forma que quem não se opusesse às noções estabelecidas de raça, gênero,família, cultura era considerado como indivíduo comprometido com as estruturas dominantes de poder.
Trocando em miúdos, a crítica ao status quo, representado pelo tal do cânone ocidental, isto é, as obras consideradas como representativas da melhor tradição da filosofia e da literatura que se produziu na Grécia, Roma, Europa e suas ramificações na América,significava que a prioridade no curso era dar-nos ferramentas para desconstruirmos tudo aquilo. Nesse sentido, não importava tanto saber o que havia sido pensado e escrito antes de nós, como saber olhar tudo o que é sagrado, belo e perfeito com desconfiança usando conceitos como ideologia, discurso hegemônico e relações sociais para fazê-lo.
É claro que li Jane Austen, Charles Dickens, Thomas Hardy, D. H. Lawrence, James Joyce, William Faulkner, Henry James para citar alguns dos autores de literatura inglesa e americana mais famosos com os quais tive contato. No entanto, não nos detíamos muito tempo sobre o estilo de cada um, tentando entender o modo de escrever para, quem sabe, imitá-los. Pois o importante não era cultivar o que é bom, escrever bem, com apuro, seguindo as lições dos mestres. Ler as obras primas era apenas uma etapa do processo de aprendizagem da crítica, que passava pela leitura, na prática mais prioritária, dos críticos literários que haviam escrito sobre os mestres.
Digo na prática porque tínhamos que redigir trabalhos com nossa “opinião” e se não lêssemos os desconstrutores do cânone não tínhamos conteúdo: afinal como interpretar os romances de Jane Austen sobre as dificuldades das mulheres para encontrarem parceiros na Inglaterra do início do século XIX se eu não conhecia a história do país e osistema de classes que então vigorava? Como entender James Joyce se eu não havia lido as grandes obras com as quais ele dialogava, incluindo a Bíblia, A Ilíada, A Odisséia?O atalho mais à mão para um estudante ignorante, mas com a obrigação de contestar os valores dominantes, era ler os autores marxistas que nos eram oferecidos, tipos como Terry Eagleton, Roberto Schwartz que apontavam os preconceitos de classe e descreviam a estrutura de pensamento dos machos e fêmeas brancas ocidentais.
Tanto desconstruir era mais essencial do que aprender com os gênios e imitá-los, que a maioria dos alunos nem lia as obras dos expoentes máximos da opressão das classes trabalhadoras: assistiam a um filme para saber o enredo da história e se dedicavam à tarefa mais útil de embeber a sapiência daqueles que haviam apontado o quanto a tradição cultural é um artefato construído por uma certa estrutura econômica. Conceitos como o bem escrever, o bem pensar, o bem falar, o bem argumentar não tem uma validade intrínseca, afinal são relativos a um determinado tempo e espaço, e portanto podem ser jogados no lixo. E foi isso que a geração da década de 60 que hoje domina as universidades fez: os cursos de Humanas são, com raras exceções, uma aplicação na prática educacional do relativismo cultural que passou a dominar as mentes pensantes do Ocidente desde que os estudantes franceses decretaram que é proibido proibir.
O resultado são “humanistas” que não sabem escrever, não sabem pensar e não sabem argumentar, porque o esforço que deveriam fazer em aprender o be a bá da estilística, da lógica, da retórica é concentrado em aprender métodos de crítica marxista, em suasmais variadas vertentes. Com tal formação falha, não admira que os formandos saiam da faculdade repetindo com toda a pompa clichês que pegaram aqui e acolá, tudo empacotado em legítima prosa acadêmica que esconde a falta de substância com palavras obscuras e esnobes, típicas de pessoas que sofrem o mal tão pós-moderno da precocidade: são doutores PhDs sem terem passado pela história, geografia, arte, ciência, astronomia, tecnologia, música, direito, filosofia e assim por diante de que falava o arquiteto romano Vitruvius como a base da educação de um indivíduo que queria se transformar em um ser humano. Por terem sido ensinados apenas a criticar carecem da humildade necessária para o verdadeiro diálogo, que consiste primeiramente em entender as premissas do outro. Não admira que os tais dos debates acadêmicos hoje ou sejam uma rasgação de seda mútua quando os participantes pertencem à mesma seita ou então uma troca de farpas inútil quando os debatedores são “inimigos declarados”, como marxistas x liberais.
Um dos meus passatempos é ouvirentrevistas do Gore Vidal no YouTube, um homem que durante décadas denunciou as consequências terríveis do Império Americano que estamos vendo se desenrolarem em nossa época.Um homem que infelizmente já não existe mais, classicista que exatamente devido à sua formação sólida era capaz de trocar ideias com qualquer um, rebatendo prontamente argumentos sem levantar a voz, de maneira elegante.Apesar de ter passado pela educação superficial que lhes descrevi acima, sonho um dia ter uma fração da cultura e sabedoria do Gore Vidal, porque hoje acredito firmemente que é só através do verdadeiro humanismo, sem sua doença pós-moderna o criticismo, que poderemos formar cidadãos que consigam resistir aos males do mundo moderno, a saber, a concentração de renda, a falta de representatividade das instituições políticas, o controle cada vez maior que o Estado exerce sobre nossas vidas.
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