Uma apologia das fake news

As raízes de apologia eram apo (“retirada”) do logos (caso) que alguém tivesse apresentado a você. Logos (fonte da nossa ‘lógica’ – logia´) é de fato o substantivo mais comum em toda a literatura grega: ‘estimativa, razão, descrição razoável, história, discurso, tese’ dão uma ideia da sua amplitude. Aquela palavra está por trás do comprometimento pelo debate franco e público que estava no cerne da conquista intelectual grega. Na qualidade de político, professor, litigante, doutor, artista, filósofo (e assim por diante) em uma democracia radical, as pessoas esperavam que você apresentasse um logos – uma descrição razoável e inteligível para o público – de suas ações ou ideias e estar aberto para uma resposta similar.

Trecho retirado do artigo “Vamos ouvir o ‘logos’ de Corbyn” do classicista inglês Peter Jones, publicado em 11 de agosto

Do ponto de vista do pensamento causal, o simbolismo é considerado um curto-circuito intelectual. O pensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus vínculos causais, mas sim saltando subitamente por cima das conexões de causa. A conexão não é um elo entre causa e efeito, mas entre significado e objetivo. A convicção de que tal elo existe pode surgir sempre que duas coisas possuam uma característica essencial em comum que se refira a alguma coisa de valor geral.

Trecho retirado do livro “O Outono da Idade Média” de Johan Huizinga (1872-1945), historiador holandês e um dos países da moderna história cultural.

Brasão da cidade suíça de Genebra do século XV

    Prezados leitores, qual a relação entre uma rosa branca que floresce entre os espinhos e uma mulher virgem? A rosa branca é símbolo da mulher porque as duas compartilham características essenciais: são brancas, puras, belas e ternas. Essa era a associação que se fazia no final da Idade Média entre dois objetos aparentemente não relacionados, mas que o pensamento simbólico então florescente ligava de maneira indissolúvel, tão indissolúvel que essa imagem de rosa associada à figura feminina perdurou por séculos em poemas, em pinturas e em outras obras artísticas. A hóstia consagrada era símbolo de Jesus Cristo e mais, era a própria personificação de Jesus Cristo, pois a concepção filosófica então em voga era a denominada realista ou idealismo platônico, em contraposição ao nominalismo: os nomes que damos às coisas revelam a natureza delas, não são meras convenções: ‘rosa’ não é só um substantivo utilizado para descrever a realidade, ele é a própria realidade, é algo que existe eternamente e apresenta certos predicados. Assim explica Johan Huzinga no livro mencionado acima, um dos clássicos da historiografia ocidental cujo objetivo foi retratar o modo como as pessoas pensavam e sonhavam nos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.

    Ao detalhar o pensamento simbólico na Idade Média, o historiador holandês mostra-nos seu lado positivo e negativo.  De um lado, ele permite dar vazão ao sentimento religioso de uma maneira bela e criativa, ligando-o à arte e expressando as aspirações da alma. O fiel cristão ao ver um ostensório no formato do sol radiante, algo que surgiu no século XIV, comovia-se com a beleza do objeto e o adorava como símbolo de Jesus Cristo, cuja luz aquece e ilumina a vida dos pobres fiéis que muitas vezes perdem-se na escuridão do pecado. De outro lado o pensamento simbólico, ao estabelecer relações entre qualquer coisa, acaba tornando a criação de símbolos e alegorias um mero jogo, uma fantasia superficial. Huzinga exemplifica esse exagero citando os exercícios aritméticos que eram feitos: “os doze meses eram os doze apóstolos, as quatro estações, os evangelistas, e o ano inteiro, só pode ser Cristo.” Em suma, o simbolismo era uma manifestação típica da fase de decadência da Idade Média: bela e poética, mas ao mesmo tempo podendo resvalar para a religiosidade supersticiosa, que ao ver significado em tudo, acaba mistificando o mundo natural, tornando o pensamento estéril e infrutífero, pois incapaz de lidar com os fatos de maneira a descobrir sua origem e suas consequências. Não é de admirar que a caça às bruxas tenha ocorrido nos últimos anos daquele período. Da mesma forma que as mulheres podiam ser idolatradas como rosas brancas imaculadas e belas, elas também podiam ser vilipendiadas e associadas a toda sorte de coisas ruins, independentemente de terem de fato contribuído com seus atos para uma má colheita, para uma doença ou para uma guerra. Não importavam as relações causais, importavam as relações simbólicas, como demonstra Huizinga.

    Não é por acaso que os espíritos racionalistas do Iluminismo, que apelidaram a Idade Média de Idade das Trevas, têm como germe a Reforma Protestante, que se insurgiu contra as superstições católicas, o culto das relíquias, dos santos, dos objetos religiosos como personificações de Deus, da Virgem Maria, de Jesus Cristo e de todos os personagens da narrativa cristã. Nesse sentido, a Reforma Protestante pavimentou o caminho para a retomada do ideal do discurso lógico, prevalente nas assembleias democráticas das cidades-estados gregas: a palavra usada não para emocionar, elevar o indivíduo aos céus, mas para convencê-lo sobre um determinado rumo a tomar a respeito de um problema concreto qualquer da cidade: seja ir à guerra, construir um novo porto ou condenar ou não alguém ao ostracismo. O desenvolvimento científico e tecnológico no Ocidente a partir do século XVI, baseado no estabelecimento de relações de causa e efeito, é fruto dessa nova perspectiva sobre a vida, e os sistemas parlamentares, de democracia representativa, que aos poucos foram sendo consolidadas nos países mais prósperos da Europa e das Américas, expressaram no plano político o primado da argumentação racional.

    Era esse o caminho estabelecido como o mais sensato, e que no Brasil bem ou mal foi adotado aos trancos e barrancos desde a proclamação da República, em 1889, e de maneira mais firme a partir de 1989, com as primeiras eleições diretas para a Presidência da República depois da saída dos militares do poder. Mas eis que no século XXI tivemos o advento das mídias sociais e cujos frutos estamos vendo nesta campanha presidencial. O mais resplandescente deles sem dúvida são as fake news. O horário eleitoral gratuito, em que os candidatos outrora bem ou mal explicavam suas propostas, esteve longe de ser relevante. Tanto assim que o candidato à Presidente pelo PSDB, Geraldo Alckmin, que possui o maior tempo de TV, não conseguiu avançar nas pesquisas de intenção de voto. O ritmo da campanha é ditado pelas mensagens de WhatsApp, com memes e histórias repassadas em cadeia de um eleitor a outro. No momento em que escrevo, o candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, alegou em petição apresentada no Tribunal Superior Eleitoral que os partidários de Bolsonaro estão espalhando a notícia por meio de vídeos de que o PT é apoiado pelos guerrilheiros e narcotraficantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC, e que Haddad criou o kit gay para ensinar homossexualismo às crianças nas escolas. O Partido dos Trabalhadores solicita que esse conteúdo seja removido da internet.

    Os petistas têm motivos para querer que esse conteúdo seja banido, porque as fake news têm tido uma eficácia extraordinária, haja vista a disparada de Bolsonaro nas pesquisas, a despeito de ele não ter participado de nenhum debate. Mas para que servem debates se o que conquista votos não é a discussão, mas a construção de símbolos? Tenho certeza que muitas pessoas que recebem e repassam mensagens sobre FARCs e kit gays sabem que aquilo não é verificável na prática, e portanto, foi criado por artistas virtuais, mas é algo que se encaixa em uma narrativa. A narrativa de que o Partido dos Trabalhadores é o partido dos guerrilheiros de esquerda (Dilma Rousseff de fato o foi), dos ateus, dos revolucionários que querem subverter o capitalismo, dos que querem destruir a família tradicional formada pelo pai, pela mãe e pelos filhos. Fernando Haddad transforma-se então em símbolo de tudo o que é ruim, imoral, o bolivarianismo, a Venezuela, a distribuição de renda à força, e Bolsonaro transforma-se naquilo que é bom, a ordem, a segurança, a pátria, a religião, a família. Nesse sentido, não importa se as fake news são mentiras deslavadas, ou meias-verdades. O que importa é que elas amedrontam e maravilham ao mesmo tempo, dando vazão aos sentimentos de amor e ódio que cada um dos eleitores/usuários de smartphones nutre pelos candidatos.

    E assim é que no domingo 7 de outubro, embalados pelos nossos compartilhamentos virtuais, pelos nossos likes e dislikes, escolheremos dois símbolos, não com base no que de fato fizeram para o Brasil, ou possam fazer concretamente por meio da execução de seus planos de governo (que aliás ninguém sabe quais são e sobre os quais ninguém têm interesse). Pobre democracia brasileira, sem logos, só na base dos símbolos, da mitologia, das fantasias, dos bodes expiatórios, temo que ela tenha vida cada vez mais atribulada nessa era das fake news.

Categories: Politica | Tags: , , , , , , , , | Leave a comment

É proibido proibir: pior que tá não fica

O fato é que as crianças infectadas com o vírus da “afluência” vêm de famílias da elite, e raramente elas arcam com as consequências do comportamento imoral, ilegal ou desonesto. […] Elas sempre foram capazes de cometer seus “excessos da juventude” e raramente ser prejudicadas por eles. O que quero dizer é que esse é o tipo de comportamento que nos traz ao ponto em que estamos hoje com uma sociedade corrupta em todos os níveis, que degrada nossa humanidade de todas as maneiras, a política brutal que não significa nada para ninguém exceto para aqueles que saem-se vitoriosos, e uma civilização – caso queria chamá-la desse nome – que está se despedaçando.

Trecho retirado do artigo “Bêbados, promíscuos e com pais ausentes? Isso é tudo o que resta afinal da liderança dos Estados Unidos?” publicado em 25 de setembro por Cynthia McKinney, que foi seis vezes deputado no Congresso Americano representando o Estado da Geórgia.

Controle-se

Ajude os amigos

Controle a raiva

Não fale mal de ninguém

Seja imparcial

Ouça todo mundo

Teste o caráter

Alguns dos 147 aforismos de Delfos atribuídos aos Sete Sábios da Grécia

    Prezados leitores, no artigo mencionado acima Cynthia McKinney tem como alvo Brett Kavanaugh, indicado pelo Presidente Donald Trump para uma vaga na Suprema Corte dos Estados Unidos, e Christine Blasey Ford, que o acusa de ter tentado forçá-la a fazer sexo quando ela tinha 15 e ele tinha 17 em uma festa onde todos, inclusive ela (como ela própria admitiu parta justificar certas lacunas em sua versão do que ocorreu), estavam bêbados. Para os defensores de Kavanaugh, a história é totalmente falsa, uma invenção dos democratas a respeito de um juiz cuja vida já tinha sido escrutinada pelo FBI, que não havia encontrado nada de desabonador. O propósito é tentar barrar de maneira desesperada e de última hora a confirmação de Kavanaugh. Para os defensores de Christine, ela fala uma verdade traumática, que veio à tona pela primeira vez em 2012 quando fazia terapia de casal com o marido.

    Para Cynthia, não importa o claro uso político que esse caso de violência sexual está tendo, evidenciado pelo fato de que Ford só prestou depoimento publicamente agora, às vésperas de o juiz ser sabatinado pelo Senado americano. O ponto importante é o que ele revela sobre a qualidade dos líderes que os Estados Unidos estão formando. Se os jovens americanos crescem participando de festas regadas a bebida, onde as oportunidades para o sexo são infinitas, mesmo porque os pais os deixam livres e soltos e ainda lhes dão cartão de crédito para financiar a diversão, como esperar que se transformem em adultos responsáveis? Se nenhum limite lhes é imposto desde que são jovens, se tudo o que fazem de errado sai barato, como esperar que saibam cumprir suas obrigações quando iniciarem uma carreira profissional qualquer? A corrupção, o sectarismo que ela observa na vida pública do seu país é o resultado agregado do comportamento desses indivíduos que podem tudo, que têm suas necessidades e desejos como única referência, e não têm que lidar com as consequências dos seus atos, porque o dinheiro esconde tudo debaixo do pano. De acordo com Cynthia, que pasmem, escreveu sua tese de doutorado sobre a liderança transformativa de Hugo Chavez, uma sociedade sem líderes dignos do nome é um sintoma de colapso da civilização, que fica sem compasso moral.

    Minhas humildes observações ao meu redor, no lado de baixo do Equador, levam-me a compartilhar da opinião de Cynthia. É só passar em uma noite qualquer na rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, para constatar que nossa juventude dourada, que está oficialmente matriculada na Universidade Mackenzie, faz seu aprendizado nas calçadas, bebendo cerveja e conversando. Em uma sexta-feira em que eu voltava do teatro havia tantos estudantes cultuando o Deus Baco que para avançar eu precisei andar pela rua. Eu mesma passei pelos bancos escolares na Universidade de São Paulo uma segunda vez de 2009 a 2013, e pude testemunhar que o empenho dos alunos era em sua maioria o de jogar pebolim no Centro Acadêmico e fazer outras coisas indignas de menção neste espaço, incluindo o esforço de obter o diploma com o menor dispêndio de energia intelectual possível, na base da cola, da compra de trabalhos feitos por outros, do uso de smartphones em pleno momento da prova.

    Corro o risco de ser acusada de puritana, evangélica, moralista, mas considero que o grande mote da década de 60, do é proibido proibir, teve um efeito nefasto em todos os países que o adotaram, em menor ou maior grau, e neste rol incluo os Estados Unidos e o Brasil, em que houve manifestações estudantis nesse sentido, em que pese as diferenças de contexto cultural e econômico. Se é verdade que houve causas nobres naquela época, a luta contra a Guerra do Vietnã lá e a luta contra a ditadura aqui, o legado que deixou, de total esfacelamento da autoridade, teve e terá consequências terríveis. Na Universidade de São Paulo, cujos professores são todos filhos intelectuais de Daniel Cohn-Bendit, o líder estudantil francês de maio de 1968, presume-se que os alunos sejam adultos e livres, que não precisam de orientação nem supervisão. Se fazem algo teoricamente errado raramente são punidos, porque os esclarecidos mestres presumem que punir é algo inerentemente autoritário, ultrapassado num mundo em que cada um de nós pode e deve realizar suas próprias escolhas. Se o garoto ou garota de 17 ou 18 anos escolhe não se preparar como deve para a avaliação e usar de subterfúgios para conseguir nota, o problema é dele ou dela, que tem autonomia para escolher seu caminho, não cabendo ao professor, que é um mero facilitador do aprendizado, interferir.

    Alguns poderão argumentar que essa postura liberalizante na escola e na universidade é a correta, porque cabe à família fornecer as orientações suficientes para que o jovem saiba comportar-se fora do lar. No entanto, como denuncia Cynthia em seu artigo, pais que deixam os filhos ir a festas para divertir-se sem supervisão de adultos não são a bússola moral dos pimpolhos, são meros facilitadores de consumo. E nesse ponto vem os psicólogos, os pedagogos, os terapeutas para quem a solução é o diálogo franco e transparente. Mais uma manifestação do “é proibido proibir”: presumir que uma criança ou adolescente só irá fazer o que os pais recomendam porque elas serão convencidas com argumentos é abdicar da autoridade, é estabelecer uma relação entre iguais. Será que todas as escolhas sobre o certo e o errado têm um fundamento universalmente válido? Será que todo tipo de comportamento pode ser analisado objetivamente em termos de riscos e benefícios?

    É fácil convencer com argumentos um filho sobre os malefícios de uma overdose de cocaína, mas como convencê-lo quando o prazer proporcionado pela droga é muito maior do que o mal que ela causa, se ela não for ingerida em quantidade exagerada? Como exercer a autoridade paterna ou materna só na base dos argumentos baseados em fatos e informações? Não será mais fácil pressupor que o sopesamento dos prós e contras de um determinado comportamento tem um grau de arbitrariedade, porque fruto de uma valoração subjetiva e cultural? Optando pela segunda via os pais podem proibir o uso de qualquer substância química dizendo pura e simplesmente: você não vai beber ou cheirar ou fumar porque eu não quero isso para você, e não quero isso para você porque de acordo com minha concepção religiosa ou moral isso é feio, degradante. Ponto final.

    Muito arbitrário certamente, muito preconceito nesse exercício unilateral de autoridade, não é mesmo? Quem é você papai ou mamãe para estabelecer o que é feio e que é bonito, o que é edificante e o que é degradante? Afinal tudo depende do ponto de vista, da ideologia, da classe social, não podemos pretender chegar em denominadores comuns absolutos, que desde o movimento filosófico do Iluminismo no século XVIII vem sendo desacreditados. E assim chegamos ao ponto em que estamos nós, que levamos o “é proibido proibir” às ultimas consequências: a autoridade se desmanchou por completo, não há modelo de conduta, e cada indivíduo é a medida de todas as coisas.  E por isso cada um de nós se acha no direito de falar o que quer, ouvir só o que lhe é interessante, fazer o que é bom para nós mesmos.

    O fenômeno recentíssimo da violência nas mídias sociais é manifestação desse nosso olhar para o próprio umbigo, da nossa certeza de que temos superioridade moral sobre aquele que é diferente meramente pelo fato de que nós individualmente nos bastamos. E se cada um tem o direito de ter sua própria verdade, no fim das contas ninguém tem verdade nenhuma, ninguém pode arvorar-se como padrão de alguma coisa. Não é de se espantar que pelo andar da carruagem nossa eleição presidencial de 2018 vai resolver-se num “voto Tiririca, pior que tá não fica”: nenhum eleitor de Jair Bolsonaro ou Fernando Haddad vota pelas qualidades manifestas de liderança de cada um deles, pois pressupomos que toda autoridade é arbitrária, que todo líder é hipócrita e corrupto. Votamos num ou noutro por uma idiossincrasia qualquer, por simpatizar com uma característica de cada um deles, irredutível, que EU escolhi como fundamental, e com a qual ninguém tem nada que interferir. E assim nossa tenra democracia, fruto da nossa derrubada dos milicos autoritários, avança na base dos ataques virtuais ou físicos.

    Prezados leitores, neste universo Tiririca meu consolo como antiquada moralista que sou é ler o oráculo de Delfos. Garanto-lhes que se seguíssemos aqueles conselhos, ou ao menos se os tomássemos como parâmetros, estaríamos mantendo a civilização ocidental, ao invés de destruí-la pouco a pouco.

Categories: O espírito da época | Tags: , , , , , , , , | Leave a comment

De Ahenobarbus a Ciro

O que está em jogo é se a economia dos Estados Unidos e a economia dos países da Europa Ocidental vão terminar como as da Grécia, da Letônia e da Argentina – ou mesmo como a Roma Imperial.  Os neoliberais aplaudem o capitalismo financeiro vitorioso de hoje como o “fim da história.” Tal desfecho já ocorreu antes, no final da Antiguidade Clássica. Ele é lembrado como a Idade das Trevas. O progresso foi interrompido à medida que os credores e os latifundiários dominavam o resto da sociedade. O comércio sobreviveu somente entre aqueles que estavam no topo da pirâmide econômica. O sonho atual do “Fim da História” ameaça ocorrer de maneira análoga. Trata-se do poder relativo do grupo do um por cento mais rico.

Trecho do artigo “The Lehman 10th Anniversary Spin as a Teachable Moment” publicado em 18 de setembro pelo professor de economia da Universidade de Missouri, Michael Hudson

O percentual de famílias que relataram ter dívidas entre cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, empréstimo pessoal, prestação de carro e seguro alcançou 60,7% em agosto de 2018, o que representa uma alta em relação ao patamar observado em julho de 2018 – a segunda alta mensal consecutiva. Entretanto, houve redução em relação a agosto de 2017, quando o indicador alcançou 61,2% do total de famílias.

Trecho retirado da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor de agosto de 2018, publicado pela CNC, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

Lucius Domitius Ahenobarbus, vulgo Nero, imperador de Roma

    Prezados leitores, no artigo mencionado acima, Michael Hudson lembra o dia 15 de setembro de 2008, quando houve a falência do Banco Lehman Brothers no Estados Unidos, que desencadeou uma crise financeira. A solução encontrada pelo então Presidente Barack Obama, aconselhado pelo Secretário do Tesouro Tim Geithner, pelo Banco Central Americano e pelo Departamento de Justiça, foi um pacote de ajuda de 4,3 trilhões de dólares dado às instituições financeiras americanas, que lhes garantiu liquidez e disponibilidade de caixa para continuar emprestando. Não houve cancelamento de dívidas, não houve redução de juros ao consumidor e os bancos não tiveram que baixar as hipotecas tóxicas como prejuízo. Ao contrário, pelo fato de o juro cobrado pelo FED americano ser irrisório, 0,1%, isso lhes permitiu obter margens extraordinárias de lucro: 5-6% sobre hipotecas, 9% sobre empréstimos a estudantes; 11-29% no rotativo do cartão de crédito.

    Essa abundância de dinheiro fácil disponível aos bancos não permitiu aos humildes devedores nenhum refresco: ou tiveram a casa confiscada por falta de pagamento do financiamento imobiliário, ou tomaram emprestado mais dinheiro para pagar os juros do empréstimo, seja ele qual fosse, para comprar um automóvel, para fazer compras de gêneros de primeira necessidade com o cartão, para financiar os estudos universitários na esperança de encontrar um emprego com melhor remuneração. Tanto é assim que em dezembro de 2017, de acordo com o Bureau of Economic Analysis, a taxa de poupança no Estados Unidos caiu ao nível mais baixo desde 2005, 2,4%, o que mostra que os americanos mal e mal estão tendo dinheiro para pagar suas contas, não sobrando nada.

    Se o programa de socorro aos bancos, chamado de Quantitative Easing permitiu ao trabalhador médio ir rolando as dívidas, às empresas permitiu dar grandes retornos aos seus acionistas pelas operações que geram receita financeira como aquisições e fusões, investimentos no mercado imobiliário pela oferta das casas que foram tomadas daqueles que não conseguiram pagar o financiamento e buybacks (já mencionadas em meu humilde artigo da semana passada). O foco no valor proporcionado ao acionista é ainda maior porque como os dirigentes das empresas recebem remuneração em ações, ao aumentar o valor de mercado delas na bolsa de valores eles aumentam seu próprio salário. A função social da empresa de geradora de empregos, que por sua vez viabiliza o consumo dos trabalhadores, fica prejudicada. Como é mais fácil e mais lucrativo obter receita de acrobacias financeiras do que investir na produção, os ganhos da venda de produtos e serviços ficam em segundo plano.

    Assim explica Michael Hudson o capitalismo financeiro que hoje predomina nos Estados Unidos e que ele considera vai levar à volta da escravidão no Ocidente, no sentido de que os trabalhadores ficarão sem emprego, sem renda e endividados, sujeitos aos caprichos da elite que ganha dinheiro cobrando juro, investindo na bolsa de valores, especulando no mercado imobiliário. O show provavelmente continuará enquanto o FED puder imprimir dólares à vontade, mas causará grandes estragos nas condições de vida dos “deploráveis”. A razão de ele mencionar o Ocidente como um todo é que dinheiro fácil foi colocado à disposição pelo Banco Central Europeu também aos países da zona do euro, que provocou, entre outros, a bolha imobiliária na Espanha e a dêbacle na Grécia.

    A razão deste meu longo introito é que nós no Brasil enfrentamos problemas semelhantes. Não tivemos quebradeira no setor financeiro em 2008 e nem colocamos à disposição dos bancos uma liquidez extraordinária, mesmo porque não conseguiríamos fazê-lo. Afinal, nosso pobre real não tem a U.S. Navy para fazê-lo singrar todos os cantos do globo, precisamos oferecer juros nas alturas para os investidores comprarem nossa moeda e financiarem nosso déficit em conta corrente. De um certo ponto de vista, isso faz a situação aqui no lado de baixo do Equador infinitamente dramática, porque estamos há décadas submetidos a juros escorchantes. A predominância do capitalismo financeiro é novidade nos Estados Unidos, tendo sido construída ao longo dos últimos 30 anos, começando com a assinatura do NAFTA no governo de Bill Clinton em 1994 e a terceirização da produção industrial pelas empresas globais americanas,  passando pela revogação da lei Glass-Steagall em 1999, que desde 1932 havia impedido os bancos americanos de misturas suas atividades comerciais com suas atividades de investimento, o que evitava o uso do dinheiro dos pequenos poupadores para investir em instrumentos de risco. Já entre nós, nossa necessidade de recorrer a empréstimos bancários para tocar a vida vem desde a década de 80, quando fomos ao FMI para cobrir nossos rombos nas contas externas.

    Para além da situação fiscal do Estado brasileiro, que gasta mais do que arrecada e precisa pedir dinheiro aqui e alhures, quem há de negar que os bancos são onipresentes na nossa vida cotidiana de cidadãos? Quer comprar um imóvel? Se não tem nota sobre nota, precisará de um financiamento bancário, mesmo que você seja um afortunado que tenha acumulado uma bolada no FGTS: o artigo 20 da lei 8.036 de 1990 só permite o uso do saldo acumulado de maneira vinculada a algum empréstimo. Quer poupar para a aposentadoria? Escolha um PGBL ou VGBL, pague a taxa de administração cobrada pelo banco e não tenha expectativas exageradas: não há garantia de benefício definido, mesmo porque os investimentos feitos pelos gestores sempre apresentam algum risco, já que são feitos no mercado financeiro.  O quadro pintado pela pesquisa da CNC mostra que assim como as três instâncias político-administrativas, a União, os Estados e Municípios, as famílias brasileiras vivem à base do rolo.

    Considerando esse nosso grande calcanhar de Aquiles, eu vi com bons olhos a ideia do candidato à presidência Ciro Gomes de um programa para ajudar os brasileiros endividados a limpar o nome no Serasa e no SPC. Pode ser que a proposta ainda não tenha sido suficientemente detalhada para soar como viável, mas é algo relevante para a vida da grande maioria de nossa população.  Essa novidade em si é louvável, em uma campanha em que a tônica tem sido perguntar aos eleitores, subliminar ou diretamente, se são a favor ou contra o kit gay, se acham o Lula, o Bolsonaro, o Hugo Chavez e o Sérgio Moro monstros ou mártires, ou se acham que os filhos de mães arrimos de família são delinquentes ou coitados.

    Prezados leitores, pelo andar da carruagem política as questões principais, e entre elas eu incluo nossa excessiva dependência do capital financeiro, passarão ao largo dos debates até 7 de outubro. Para não esquecer do império romano, Nunzio Geostozzi informa-nos que Nero, o imperador que NÃO colocou fogo na Cidade Eterna, mas foi um símbolo de decadência pelos seus gastos excessivos na Construção da sua joia arquitetônica, a Domus Aurea, hoje quase totalmente soterrada e desaparecida, desvalorizou a moeda reduzindo a porcentagem de ouro no aureus e no denarius.

Categories: Economia | Tags: , , , , , , | Leave a comment

Sobre drones, robôs e castelos de areia

Um vislumbre do futuro de destruição dos empregos foi dado no início de setembro por um estudo detalhado realizado pela famosa empresa de consultoria McKinsey. O estudo estimou que 60% dos empregos atuais nos Estados Unidos sofrerão impacto da inteligência artificial até 2030. E um terço, 33%, daqueles 60% sofrerá redução no empregos e /ou horas trabalhadas. […] De acordo com a pesquisa da McKinsey, o ‘custo’ para os trabalhadores será de $ 7 trilhões. A inteligência artificial cortará o número de empregos nas empresas em 50% quando ela for implementada, aumentando assim os ‘lucros’ em $ 13 trilhões. Em outras palavras, a IA vai acelerar dramaticamente as tendências de desigualdade, que já são avassaladoras nos Estados Unidos.  Tendo já diminuído de 64% para 56% do total da renda nacional, a participação do trabalho vai diminuir ainda mais até 2030

Trecho retirado do artigo Amazon, a destruidora de empregos hoje, ontem e amanhã publicado em 7 de setembro por Jack Rasmus, doutor em economia política e professor de economia e política no St. Mary’s College, na Califórnia

Os estados universais […] são essencialmente instituições negativas. […] são produtos de minorias dominantes: isto é, de minorias criativas que perderam seu poder criativo.

Trecho retirado do livro “Um Estudo da História”, de Arnold Toynbee, historiador britânico (1889-1975)

Sob Trajano, o Império Romano atingiu sua máxima extensão e o ouro que vinha da Dácia permitiu a Trajano realizar construções monumentais, em que pese elas terem feito muito pouco para diminuir as dificuldades econômicas da Itália.

Trecho retirado do Guia Arqueológico de Roma, de Adriano La Regina

    Prezados leitores, quem de vocês já não comprou um livro pela Amazon, a multinacional do comércio eletrônico? Confesso que já o fiz muitas vezes, por causa da mesma comodidade usufruída pelos usuários do Uber, outra empresa global surgida nos Estados Unidos. Com alguns cliques, você faz sua compra do livro que só existe no exterior e pode aproveitar e pedir vários ao mesmo tempo, para que o frete por unidade saia mais barato. É um modelo de negócios inovador e por enquanto imbatível. E, no entanto, como mostra Jack Ramus, esse modelo, baseado nas vendas virtuais e que vem sendo copiado por outras empresas americanas como a WalMart e a Macys, tem seu lado negro. Ele acabou com o emprego das pessoas que trabalhavam nas ultrapassadas livrarias físicas. A Amazon, que investe pesadamente em inteligência artificial, está investindo em drones para a entrega de produtos, o que vai forçar serviços de entrega como Fedex e o UPS a deixar de lado os caminhões e levar os caminhoneiros à obsolescência.

    É verdade que milhares de depósitos de produtos são abertos em todo o território americano e no mundo que precisam de trabalhadores, mas de acordo com o artigo, esses empregos serão de curta duração. A empresa de Jeff Bezos está desenvolvendo robôs que reconhecem a voz humana e conseguem realizar tarefas simples do ponto de vista cognitivo, como colocar produtos em prateleiras, receber e processar pedidos. A conclusão de Jack Ramus é que em que pese o valor de mercado da Amazon ser de um trilhão de dólares e o patrimônio do seu presidente de 165 bilhões de dólares, os malefícios causados por esse novo modo de fazer negócios, baseado na digitalização e na automatização total dos processos, superam os benefícios, que acabam sendo usufruídos majoritariamente pelos acionistas da empresa.

    Criou-se um círculo virtuoso para os muito ricos e um círculo vicioso para os deploráveis. Os cortes de impostos de Donald Trump, que em 2018 somaram 300 bilhões de dólares e responderam por 49% dos lucros das 500 maiores empresas americanas, têm sido usados para pagar dividendos aos acionistas e para a recompra das próprias ações, o que aumenta o valor delas na bolsa de valores e os rendimentos dos investidores.  Quanto aos trabalhadores, a quem foi dito que as benesses fiscais dadas às empresas as levariam a investir e a criar empregos, sobra pagar a conta em termos de desemprego ou empregos de meio período ou temporários, que oferecem menos benefícios como assistência médica e fundo de pensão. Isso, por sua vez, leva à estagnação da renda, à incapacidade de consumo e de poupança, à impossibilidade de aprimoração de competências, o que diminui ainda mais a empregabilidade futura num mundo de drones e robôs.

    Ao mesmo tempo que a Bolsa de Nova York e a Nasdaq batem recordes e os deploráveis se veem em situação cada vez mais precária, vivendo à base de crédito e de dívidas, os Estados Unidos continuam presentes em todo os cantos do mundo, gastando o dinheiro que o americano médio já não tem em seu bolso em intervenções militares. Essa dicotomia foi bem descrita por Arnold Toynbee quando fala em seu livro sobre os impérios, a que ele chama de estados universais, dos quais ele dá vários exemplos, a começar do Império Romano: de um lado há uma minoria dominante que é incapaz de dar respostas aos desafios do mundo e que se vale de seu poder para criar uma entidade política forte e militarizada que a protege do colapso iminente e cria a ilusão de grandeza e de eternidade; de outro lado há um proletariado interno que vive sob o jugo da elite, mas que em algum momento acaba achando uma brecha e  criando suas próprias respostas.

    Os fatos mostram que o império americano vive esse abismo. O prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz e colegas calcularam que as guerras no Iraque e no Afeganistão tenham custado entre cinco e seis trilhões de dólares, o que dá 50.000 dólares por cada lar americano. Dinheiro esse, diga-se de passagem, ainda não pago, já que o império, que tem o monopólio de emissão da moeda mais usada nas operações comerciais no mundo, pode emitir bônus do tesouro à vontade, porque sempre haverá compradores, ou pelo menos tem havido até agora. Por outro lado, o economista Edward Wolff estimou que a grande recessão de 2018 e seus desdobramentos tenham diminuído o patrimônio médio de cada família americana para 57.000 dólares em 2010, sendo que três anos antes ele era de quase o dobro.

    Arnold Toynbee afirma que a queda dos estados universais é inevitável, porque eles são intrinsecamente frágeis, obra de elites que perderam a capacidade de criação e permaneceram apenas com a cobiça e a sede de poder. Os Estados Unidos, desde 11 de setembro de 2001, invadiram o Iraque, o Afeganistão (para combater o grupo terrorista Al-Qaeda), a Líbia, possibilitaram a invasão do Iêmen (fornecendo ajuda militar à Arábia Saudita) e agora estão na Síria (acreditem se quiser, para proteger a Al-Qaeda, que agora transmutou-se em rebeldes acossados pelo ditador Assad em Idlib).  Talvez o próximo na lista seja o Irã. Donald Trump, que prometeu na campanha defender os interesses do proletariado americano, até agora tem falhado, pois a política externa continua tão agressiva e portanto tão perdulária quanto antes,  e a  recuperação econômica tem sido usufruída pelos que investem em ativos financeiros, não pelos que vivem do trabalho. Provavelmente suas boas intenções não eram páreo para os poderosos interesses daqueles que querem que o império continue suas esplendorosas exibições mundo afora.

    Talvez o ocaso da Pax Americana demore anos ou décadas, ou talvez um evento próximo desencadeie um completo desmoronamento do castelo de areia, fundado na cobrança da conta dos americanos sem emprego e sem esperanças. Uma coisa é certa: o pó gerado pela demolição, controlada ou não, causará muitos transtornos aos espectadores. Esperemos não estar por perto.

Categories: Economia | Tags: , , , , , , , | Leave a comment

Versalhes, nunca mais

A história tem a realidade atroz de um pesadelo; a grandeza do homem consiste em fazer obras belas e permanentes com s substancial real desse pesadelo. Ou em outras palavras: transfigurar o pesadelo em visão, libertar-nos, nem que seja por um instante, da realidade disforme por meio da criação.

Trecho retirado do ensaio “Conquista e Colônia” escrito pelo escritor mexicano Octavio Paz (1914-1998)

D. João, com D. Pedro, d. Miguel e o sobrinho de 22 anos, d. Pedro Carlos, foi morar em uma propriedade rural, a Quinta da Boa Vista, a seis quilômetros da cidade. A casa lhe fora cedida, em troca de dinheiro, postos e condecorações, por Elias Antônio Lopes, nome aportuguesado do comerciante sírio-libanês Elie Antun Lubbus, traficante de escravos. […] O nome do local, Quinta da Boa Vista, fazia jus ao cenário que se descortinava ali. À frente da residência, era possível avistar o mar; em uma de suas laterais, o morro do Corcovado e a floresta da Tijuca dominam a paisagem até os dias de hoje.  

Trecho retirado do livro D. Pedro, A história não contada, de Paulo Rezzutti

 

Uma das páginas do guia sobre A Villa Romana del Casale inscrita no Patrimônio da Unesco em 1997

    Prezados leitores, desculpem se pareço pedante, mas viajo para conhecer museus. Por enquanto a área do meu interesse é a Europa e lá em qualquer museu que eu visitei uma presença constante é a dos piccolinos com as respectivas professoras. Em Ravenna, Itália, no Mausoléu de Galla Placidia, filha do imperador Teodósio, eles estavam lá. Fazem muito barulho, tiram fotos, muitos nem prestam atenção às maravilhas que estão vendo, no caso os mosaicos do quinto século depois de Cristo, e nem ao que a professora tenta explicar a respeito do contexto histórico. De qualquer forma, um ou outro aluno consegue responder às perguntas da tis, e eles sempre tem que preencher algum questionário, ou anotar alguma coisa. Nas igrejas, os funcionários invariavelmente precisam pedir que os piccolinos fiquem quietos, para não atrapalhar os adultos que estão lá por sua livre e espontânea vontade de ser turistas. Em certos museus, os estudantes sentam-se no chão e enquanto ouvem as explicações  desenham copiando alguma obra de arte.

    Mas a Itália e seu fabuloso patrimônio artístico não atraem só os jovens nativos. Em Piazza Armerina, uma cidade na Sicília que abriga a Villa Romana del Casale, em pleno fevereiro chuvoso e frio, estávamos eu e uma turma de estudantes alemães, estes não muito piccolinos, pelo contrário, deviam ser alunos do ensino médio. Andavam pelas passarelas construídas como andaimes do alto dos quais veem-se mosaicos de uma residência que se acredita tenha pertencido a algum senador ou governador romano, e alguns estudiosos acreditam até que ela tenha sido refúgio de verão de algum imperador, considerando a sofisticação da decoração. Gastei uma pequena fortuna, indo de ônibus à cidade, pegando um táxi à Vila e pagando o ingresso que foi de 18 euros, o preço padrão para atrações que são patrimônio histórico da humanidade.

    Sempre quando olho esses grupos escolares nos museus, penso que aqueles meninos e meninas não dão o devido valor, porque não têm consciência do privilégio de que desfrutam. Eu preciso cruzar o Atlântico, economizar em reais para comprar moeda forte, enquanto eles, que displicentemente olham os celulares, conversam com os amigos e riem do que veem, podem pegar um ônibus a qualquer época do ano e dar uma passadinha lá para ver as moçoilas de biquíni jogando tênis  na Vila ou Jesus Cristo sendo batizado nas águas translúcidas de um riacho feito de pequeninos ladrilhos coloridos no Mausoléu. E no entanto, duvido que o façam. Pelo menos a maioria certamente não. Dito isso, quero eu dizer que esses passeios por monumentos históricos, repositórios de quadros e esculturas e construções de grande valor artístico são uma perda de tempo das escolas? Certamente que não. Essa obrigação dos educadores de colocar as crianças em contato com o patrimônio do seu país e de sua civilização deve ser cumprida, mesmo que esses piccolinos, ao chegarem à vida adulta, adquiram uma atitude blasée em relação a museus e nunca mais ponham os pés em um deles, por estarem fartos de tanta velharia. A Itália pode ter atualmente um índice de desemprego de 37% entre os mais jovens e uma dívida pública de 132% do PIB, mas qualquer italiano sabe da beleza que foi produzida na península desde os tempos em que os gregos colonizaram a parte meridional da bota.

    Agora corto o parêntese europeu e exercito o meu pedantismo aqui no Brasil. Ao contrário de muitos que derramam lágrimas politicamente corretas pelo Museu Nacional, destruído ontem pelo fogo da incompetência, mas que nunca nem tinham ouvido falar dele, eu visitei a Quinta da Boa Vista, a Versalhes brasileira. Não é exagero chamá-la assim, como fez Mariana Amaral no Twitter, visto que a família real brasileira lá fixou residência, para fugir da insalubridade da cidade do Rio de Janeiro.  Para quem não tem carro e não é nativo da Cidade Maravilhosa, foi um passeio aventuroso, para dizer o mínimo. É preciso pegar o trem, descer em uma estação já no subúrbio, e quando entrei no parque, tive a impressão de estar no Parque da Luz em São Paulo, que é povoado de desocupados e bolivianos que vão lá desfrutar de lazer com as respectivas famílias, porque sai de graça.

    A Quinta da Boa Vista, ao menos quando estive lá, há cinco anos, era um lugar de passeio de pretos e pobres. Talvez por não estar na Zona Sul, o museu tinha tanta dificuldade de captar recursos e era tão pouco atraente. Lembro que o prédio era velho à maneira tropical, não à maneira europeia (aqui solto mais um pedantismo): prédio em que se vê claramente que o único dinheiro existente para manutenção é para pagar faxineiras e faxineiros para passarem pano no chão e não deixarem que os piolhos, carrapatos e cupins tomem conta do local. As coleções eram dispostas em vitrines com parcas explicações e exígua luminosidade, e as tábuas de madeira lembravam-me as lojas de balcão da cidade natal da minha mãe, Dourado, onde eu passava as férias na década de 80. Para falar a verdade, nada do que vi ficou na minha cabeça, era apenas um monte de objetos dispostos sem muita organização, e no fim da tarde depois do fechamento do museu tive o cuidado de caminhar rápido para a estação de trem e não correr o risco de estar lá em São Cristóvão ao anoitecer.

    Em suma, o velho padrão da segregação e da estratificação se repete. A classe média não frequenta a periferia e portanto, não vai à Quinta da Boa Vista porque apesar de ali estar o museu mais antigo do Brasil, é um local frequentado pelas classes baixas. Não importa a importância histórica que ele tenha, pois para os brasileiros que não são pretos e nem pobres,  mais importante do que a história que poderia nos unir em torno de um legado comum, é estabelecer com segurança seu lugar sob o céu de brigadeiro tropical, longe da esqualidez de um parque do povo como a Quinta da Boa Vista.

    Prezados leitores, não nos iludamos: haverá muitas manchetes nos jornais e revistas nos próximos dias sobre o finado Museu Nacional, planos serão elaborados e divulgados para revitalizar os museus brasileiros, os presidenciáveis – que tenho certeza nunca passaram perto da Quinta da Boa Vista para desfrutar nem mesmo dos jardins – farão menção da tragédia em seus programas eleitorais. Depois de algum tempo voltaremos a nossa realidade brasileira: diferentemente dos adultos europeus que, forçados ou não, adquirem consciência da sua herança cultural, continuaremos alegremente ignorantes dessas coisas empoeiradas, insossas e chatas que colocam em prédios caindo aos pedaços a que chamam de museus. Viva nossa modernidade, porque somos um país novo, livre de cacarecos.

    Este texto foi uma tentativa tosca de superar minha tristeza em ver o prédio onde nasceu a rainha de Portugal D. Maria II e nosso segundo imperador D. Pedro II, arder em chamas. Versalhes, nunca mais: RIP.

Categories: Cultura | Tags: , , , , , , , , | Leave a comment