A canga e o capote

Resolveram imediatamente fazer uma coleta para ele, mas reuniram uma quantia ínfima, porque os funcionários já haviam gasto muito na compra de um retrato do diretor e na aquisição de um livro qualquer, sugerido pelo chefe da repartição, que era amigo do autor; portanto, só conseguiram reunir uma ninharia. […] Pois é, na Santa Rússia tudo está contaminado pela imitação, cada um arremeda seu chefe e banca o chefe.

Trecho retirado do conto “O Capote”, do escritor Nikolai Gógol (1809-1852), considerado uma das pedras fundadoras do Realismo literário na Rússia no século XIX

Um país que quer sair do subdesenvolvimento deve abrir sua economia que, em grande parte, se encontre nesta condição por causa de sua estrutura fechada e da asfixia que lhe imprime o Estado, que, geralmente, monopoliza o grosso das atividades econômicas. Enquanto elas estejam controladas pelo Estado, o resultado é invariavelmente a corrupção, o privilégio de uma minoria de burocratas, o atraso científico e técnico, e a dependência do exterior, sua subordinação aos países mais desenvolvidos e prósperos.

 

Trecho retirado do artigo “Uma sociedade democrática e moderna” de Mario Vargas Llosa, publicado no Estadão em 21 de novembro

    Prezados leitores, O Capote trata de um humilde burocrata, Akáki Akákievitch, que fazendo inúmeros sacrifícios ao longo de vários meses, adquire um capote feito sob medida para ele por um artesão seu amigo, Pietróvitch; ao voltar de uma festa na casa de um colega da repartição, Akákievitch é atacado em uma praça deserta por homens que acabam lhe roubando o capote. Akákievitch morre de desgosto porque não consegue ajuda de ninguém para reparar a injustiça que lhe é feita.

    De fato, por recomendação de um colega de departamento, o herói do conto procura um figurão que possa encontrar os bandidos e fazê-los devolver o capote, mas o tal do figurão considera desrespeitosa a maneira como Akákievitch dirige-se diretamente a ele para fazer seu pedido, sem passar pelas devidas instâncias de processamento de demandas. Por isso, trata-o de maneira grosseira, o que assusta Akákievitch, e o faz voltar para casa com o rabo entre as pernas.

    Quanto aos outros colegas do escrivão, conforme mostra o trecho que abre este artigo, eles timidamente tentam fazer uma vaquinha para arranjar-lhe outro capote, mas há outras prioridades dos burocratas, que seguem estritamente os ritos do serviço público: é preciso puxar o saco do chefe, mostrar-lhe deferência oferecendo-lhe presentes ou ajudando seus amigos literatos e para isso uma vaquinha para angariar os fundos é uma necessidade. Mas fazer uma vaquinha para comprar um novo capote para um pobre coitado que não tinha com o que se vestir é totalmente supérfluo, porque Akákievitch figurava humildemente na nona posição da classificação das dezoito categorias de servidores civis e militares do Estado, criada por Pedro, o Grande (1672-1725). Era um nada, sempre fora um nada e não valia a pena ajudar um nada que não traria nenhuma vantagem ao benfeitor, pelo contrário, poderia prejudicá-lo na carreira, considerando o absurdo de fazer algo de bom por alguém que ocupava uma posição tão subalterna.

    E assim Gógol mostra por meio de O Capote a cultura da carteirada, os rituais rígidos seguidos pelos membros da burocracia não como um meio de aumentar o bem-estar geral e promover a justiça, mas simplesmente para sinalizar os respectivos lugares de cada um, uns no topo, a maioria obedecendo, para mostrar poder, para reforçar o modo correto de agir de um bom funcionário e assim manter tudo como está, funcionando à perfeição para que a burocracia seja mantida para seu próprio bem.

    Conforme já expus aqui quando abordei outro livro de Gógol, “Almas Mortas” e quando citei trechos de “Memórias de um Caçador”, de Ivan Turguêniev, considero haver muitas coisas em comum entre o Brasil e a Rússia, a começar pela escravidão em um e a servidão no outro. Com seus símbolos de poder e hierarquias, a burocracia são outra instituição que nos unia já no século XIX, talvez como corolário da existência de habitantes oficialmente sem direitos, como eram os escravos e os servos.

    Da Rússia de agora, pós-comunista, nada posso falar, pois além de jamais tê-la visitado, não tive contato com nenhuma obra literária escrita sobre o país de agora. mas do Brasil burocrático posso falar e podemos nós todos que aqui moramos. Afinal, quem nunca teve a desagradável experiência de receber um peremptório não em um cartório? Quem nunca intuiu no não do oficial de plantão um prazer sádico, escondido sob a racionalização de que o procedimento é assim e deve ser seguido para segurança de todos? Quem nunca se viu em terras tropicais às voltas com uma exigência estapafúrdia, cuja origem ninguém sabe determinar, mas cuja força coercitiva é óbvia a qualquer um quando ela é pronunciada pelo dono da caneta ou do carimbo?

    Haverá solução para que aqui como acolá essa instituição retrógrada seja extirpada? Como bom herdeiro intelectual do Século das Luzes, Mario Vargas Llosa, analisando os males da América Latina, considera que a liberdade é a chave para acabar com a burocracia e a corrupção que ela engendra. Liberdade para que os empreendedores invistam e gerem empregos sem interferência do Estado, liberdade para que os cidadãos comuns tenham a possibilidade de fazer as melhores escolhas para sua vida com base nas informações de que dispõem e na educação de qualidade que lhes for ministrada pelo Estado. Só assim, quando os membros da sociedade tiverem igualdade de oportunidades, sem favorecimentos obscuros e sem preconceitos contra determinados grupos, é que haverá prosperidade geral e está será tão grande que compensará as desigualdades criadas pelo laissez -faire.

    Há duas semanas, eu expus minhas restrições ao projeto libertário de Vargas Llosa de tornar as drogas um produto comercializável normalmente, porque considero que nem todas as pessoas sabem escolher o melhor caminho para si mesmas e o exercício da liberdade relativamente a substâncias potencialmente viciantes pode gerar mais problemas do que soluções. No entanto, de modo geral, colocar em prática os princípios iluministas do escritor peruano na América Latina seria uma boa ideia contra a canga da burocracia, corporificada nas demonstrações de poder, na corrupção dos que se locupletam em criar dificuldades para vender facilidades.

    A humilhação e o martírio vividos por Akáki Akákievitch em busca de seu capote perdido e de pessoas que o pudessem ajudá-lo nos fazem rememorar o quanto já perdemos nosso tempo e dinheiro oprimidos pelo peso das nossas autoridades inapeláveis, sejam elas funcionários públicos, representantes de empresas de telefonia, bancos, seguradoras e todos que escondem seu desleixo e descaso atrás de Serviços de Atendimento ao Consumidor cheios de protocolos e registros de chamadas, mas poucos efetivos para resolver os problemas de nós, pobres mortais. Que um dia aqui e lá vivenciemos uma sociedade livre, próspera e que dê oportunidades  aos cidadãos de todas as categorias, com ou sem capote.

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As Areias do Tempo

O corpo de leão transforma-se na cabeça de um ser humano com queixo prógnato e olhos cruéis; a civilização que a construiu (cerca de 2990 a.C.) ainda não havia esquecido seus modos bárbaros. As areias costumavam cobri-la e Heródoto, que viu muita coisa que atualmente não está mais ali, não fala absolutamente nada sobre ela. […] À beira do Nilo, ao longo de 20 quilômetros em ambos os lados, corre uma faixa de solo fértil; do Mediterrâneo a Núbia há somente essa tira resgatada do deserto. Esse é o fio no qual se pendurava a vida no Egito.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

A Vila Itororó é um espaço público e cultural da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que contempla um conjunto remanescente de edificações construídas nos anos 1920 e que está em fase de restauro. A Vila Itororó sempre teve como uso principal a moradia, mas foi tornada patrimônio histórico e desapropriada para fins culturais a partir de 2013.

Trecho retirado do site vilaitororo.prefeitura.sp.giv.br sobre o conjunto de casas situado na Bela Vista, mandado construir pelo filho de portugueses nascido em Guaratinguetá Francisco de Castro

 

O desemprego, superior a 13% da força de trabalho no trimestre móvel encerrado em agosto, é mais que o dobro da média dos 38 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). […] Segundo economistas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a desocupação no Brasil poderá continuar elevada até 2026.

Trecho retirado do artigo “O desmonte” do jornalista Rolf Kuntz, publicado no Estadão em 14 de novembro

 

    Prezados leitores, em sua descrição da civilização egípcia, que se desenvolveu graças ao rio Nilo, Will Durant adota como ponto de vista as impressões que ele tem em sua própria viagem pelo rio ao longo da qual ele vai parando nos locais históricos. Nesse sentido, ele imita o pai da História, Heródoto (484 a.C.-430 ou 420 a.C.), que esteve no Egito em algum momento depois de 460 a.C. e começando no delta do rio chegou até a primeira catarata, tenho parado em Mênfis, em Tebas e em Gizé, local das Grandes Pirâmides.

    Heródoto descreveu o Egito como uma dádiva do Nilo e não sem exagero, pois conforme explica Durant em seu livro, as cheias sazonais do Nilo permitiram a agricultura irrigada em uma estreita faixa de 20 km às margens. Fora dessa faixa não havia nada mais do que a areia do deserto. O avanço inexorável do Saara é tanto que há uma informação curiosa, incluída no trecho que abre este humilde artigo: Heródoto não conheceu a Grande Esfinge, a estátua do faraó Quéfren, quarto rei da quarta dinastia do Antigo Egito, localizada em Gizé, e que na época dele já tinha 2.000 anos, pois ela já estava coberta pela areia e só depois foi redescoberta.

    Entre o que as areias do Saara engoliram ao longo dos séculos e o que foi recuperado do patrimônio material deixado pelos antigos habitantes das margens do Nilo em termos de arquitetura, escultura e pintura, o fato é que o Egito atual, produto da conquista árabe no século X d.C., e que por isso hoje é um país muçulmano, tem no turismo uma fonte indispensável de receitas. Em 2010, antes da Primavera Árabe em 2011, ele empregava 12% da força de trabalho, gerava 12,5 bilhões de dólares e contribuía com 11% do PIB. Daí que o governo continua a investir no setor, a despeito dos distúrbios sociais e políticos ocorridos no país desde então. Prevê-se para novembro de 2022, a um custo de quase 800 milhões de dólares, a inauguração do Grande Museu Egípcio, próximo às Pirâmides em Gizé, e que exibirá toda a coleção existente do rei Tutancâmon, ao redor de 5000 peças, e outros 13.000 artefatos, muitos deles jamais exibidos antes, por falta de espaço adequado.   É de se esperar que quando este museu comece a funcionar ele atraia um número suficiente de turistas que faça com que o país gere empregos para os 105 milhões de egípcios, cuja idade média é de 24 anos de idade.

    Aqui em nossas terras tropicais, a situação social e ambiental não é tão dramática como no norte da África acossado pelo deserto e pela alta densidade populacional, mas o rastro de destruição deixado pela pandemia de covid é nítido em uma cidade como São Paulo para quem como eu a percorre semanalmente a bordo da minha bicicleta. Vou rodando a esmo, atrás das ciclovias que frequentemente começam e terminam abruptamente. É difícil haver circuitos completos que possam ser percorridos do começo ao fim que nos levem de um a outro ponto conhecido da cidade, mas hoje eu encontrei uma rota que passa pela rua 13 de maio e percorrendo a Bela Vista chega no Terminal Bandeira, passando pela Câmara Municipal. À parte as barracas e os fogareiros dos sem teto que estão por toda a parte, à parte as pichações de prédios que recentemente foram restaurados e pintados como a sede dos Correios no vale do Anhangabaú, é possível encontrar boas surpresas em termos de patrimônio resgatado das areias do tempo. A de hoje foi a Vila Itororó, na rua Martiniano de Carvalho.

    Eu lembrava deste local na década de 90, porque trabalhava a dois quarteirões de lá e tinha que passar em frente para voltar para casa. Era um cortiço onde várias famílias se alojavam. Atualmente é um centro cultural e, conforme o trecho mencionado na abertura deste artigo, está em restauração. Como vocês poderão ver abaixo, nas duas humildes fotos que eu tirei do local, ainda falta muito para que as construções se livrem do aspecto de cortiço que ainda têm, mas devemos comemorar o fato de o governo municipal ter tomado a iniciativa de salvar a Vila Itororó de uma degradação que poderia tornar-se irreversível se nada fosse feito.

    Já que jogamos nossa indústria na caçamba, depois dos heroicos esforços que fizemos a partir da segunda metade do século XX para criá-la, e que o agronegócio brasileiro que compete globalmente não empregará muita gente devido à mecanização das lavouras, urge que encontremos meios de gerar empregos para nossa população para que o cenário vislumbrado pelos especialistas da FGV, de alto desemprego até 2026, conforme mencionado no último trecho que abre este artigo, não se concretize. Investir na recuperação do patrimônio arquitetônico degradado pelo descaso e pelo tempo seria uma forma de atrair visitantes e gerar empregos em restaurantes, bares e lojas no entorno dos locais revitalizados. Minha primeira sugestão na cidade de São Paulo seria resgatar os Campos Elíseos, que abriga a antiga sede do governo do Estado (restaurada, mas fechada ao público), vários palacetes do início do século XX, além de uma estátua gigantesca do Duque de Caxias de autoria de Victor Brecheret, do domínio dos craqueiros que se concentram na famigerada rua Helvétia e dos que acampam na praça onde está a escultura e até penduram roupas em um varal improvisado na parte de baixo da coluna realizada por Brecheret.

    Prezados leitores, como mostra o destino da Grande Esfinge de Gizé e a nossa prosaica Vila Itororó, as areias do tempo não são uma maldição eterna. Podemos ressuscitar para a vida econômica e social construções esquecidas e quase destruídas e fazermos delas locais de memória coletiva do nosso passado e de construção do nosso futuro por meio da inclusão dos desempregados, dos desalojados e dos esfomeados que se espalham cada vez mais pela cidade de São Paulo. Oxalá nossos governantes achem meios de tornar a cultura algo mais do que mera perfumaria e a tornem bem valioso na era pós-covid.

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Não se reprima?

 A religião respalda a moralidade de duas maneiras principais: o mito e o tabu. O mito cria a crença sobrenatural por meio da qual as sanções celestiais podem ser dadas a formas de conduta social (ou sacerdotalmente) desejáveis; as esperanças e terrores celestiais inspiram o indivíduo a tolerar restrições que lhe são impostas por seu senhor ou pelo grupo. O homem não é naturalmente obediente, gentil ou casto; e ao lado daquela antiga compulsão que finalmente gera a consciência, nada conduz de maneira tão tranquila e contínua a essas virtudes destoantes como o medo dos deuses. As instituições da propriedade e do casamento em larga medida se apoiam nas sanções religiosas, tendendo a perder o vigor em épocas em que impera a descrença.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

No livro A Fábrica de Cretinos Digitais, que acaba de ser lançado no Brasil, o renomado neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisas do Instituto Nacional de Saúde da França, aponta as baterias de combate ao estado atual de estagnação intelectual para o que afirma ser sua maior causa: o excesso de tempo passado diante da tela dos mais variados aparelhos digitais. […] Estudo da Universidade de Alberta, no Canadá, mostrou que crianças de 5 anos ou menos que passam mais de duas horas por dia on-line têm chance cinco vezes maior de apresentar dificuldade de concentração e sete vezes mais risco de exibir sintomas de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).

Trecho retirado do artigo “Mentes nem tão brilhantes” publicado na edição da revista Veja de 6 de outubro

Em diferentes medidas, todos eles acreditavam que o homem era, por natureza, racional e sociável: ou que, pelo menos, sabia o que melhor lhe convinha – bem como aos outros – quando não eram desvirtuados por velhacos ou mal conduzidos por tolos; acreditavam também que, se ao menos o homem aprendesse a descobrir seus interesses, ele seguiria as regras de conduta passíveis de descoberta mediante o emprego do entendimento humano corriqueiro; […] Eles acreditavam que a descoberta e o conhecimento de tais leis tenderiam, desde que fossem suficientemente difundidos, por si mesmos a promover uma harmonia estável tanto entre os indivíduos e as associações quanto no interior do próprio indivíduo.

Trecho retirado do livro “Os limites da utopia” do pensador nascido na Letônia e naturalizado britânico Isaiah Berlin (1909-1997) sobre os filósofos do Iluminismo

 

A única solução para o problema das drogas é a coragem que o Uruguai teve: liberalizar o comércio das drogas […] Esta foi a solução que propôs, há muitos anos, um economista liberal, Milton Friedman, que, ademais, acrescentou que seguia crescendo a luta contra as drogas, e aqueles que viviam desse trabalho seriam os piores inimigos de sua liberação. Exatamente assim ocorreu.

Trecho retirado do artigo “Liberdade para as drogas”, escrito pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa e publicado no Estadão de 7 de novembro

    Prezados leitores, na semana passada eu descrevi as descobertas do antropólogo francês Pierre de Clastres sobre a organização política de certas tribos indígenas brasileiras, que prescindiram da organização de um Estado nos moldes encontrados nas sociedades ocidentais, para ilustrar a argumentação desenvolvida por Will Durant em seu livro “Our Oriental Heritage”: cada cultura humana tem sua lógica, sua maneira de estruturar-se e de estruturar o mundo à sua volta. A lição que ele tira é que se o que é bom e o que é mal do ponto de vista da moral é relativo a cada grupo humano que se organizou autonomamente ao longo da história do Homo Sapiens na Terra, isso não deve necessariamente levar-nos a um desencanto com todo e qualquer código de ética pelo fato de seus preceitos não terem um valor absoluto. Ao contrário, essa relatividade é um indício da capacidade dos homens de responderem aos desafios colocados pelo seu ambiente e de acumular uma experiência que lhes permite pela tentativa e erro achar as melhores regras para a convivência social naquele local e para aquelas pessoas que formam o grupo.

    Nesta semana, abordarei um outro aspecto da visão que Durant tem da moral, além da sua utilidade para a organização da sociedade. Fica claro pela leitura do trecho que abre este humilde artigo que para aquele filósofo americano a religião é um pilar indispensável da moral. Não há como fazer os homens comportarem-se de acordo com as regras do bem viver se não lhes for instilado o medo da punição e a esperanças das recompensas que só os mitos religiosos proporcionam. Quando a crença na religião começa a vacilar a disposição dos homens de obedecer também segue o mesmo caminho. Durant ilustra esse ciclo inevitável em seu livro “The Life of Greece”, ao explicar como a ascensão da descrença permitida pelo florescimento da filosofia levou os gregos, independentemente de sua maior ou menor capacidade intelectual, a utilizar argumentos filosóficos relativistas para justificar sua negação das restrições desagradáveis impostas pela moral fundada na religião. Em suma, a fina camada civilizatória que o homem é capaz de criar se sustenta sobre as sólidas fundações do medo irracional do castigo dos deuses ou do fogo do inferno, a depender de qual religião está em voga.

    Sob essa perspectiva, Durant é um cético em relação aos preceitos dos filósofos iluministas do século XVIII, homens como Rousseau (1712-1778), Voltaire (1694-1778) e Montesquieu (1689-1755). Conforme o trecho reproduzido acima, extraído do livro de Isaiah Berlin, o Iluminismo, trouxe a concepção de que o homem tinha uma vocação natural para a razão: se ele fosse exposto às informações necessárias e não fossem manipulado por pessoas mau intencionadas ou imbecis que tivessem o poder de lhe impor suas mentiras ou superstições, o homem se utilizaria de suas faculdades mentais e de suas percepções sensoriais para encontrar por si mesmo as regras do bem viver, isto é, a melhor maneira de comportar-se em relação aos seus semelhantes e ao mesmo tempo de atender seus próprios interesses, de forma a criar uma harmonia social em que os membros do grupo se entenderiam porque seriam capazes de perceber qual era o denominador comum que criaria o máximo de prosperidade e bem-estar para o maior número de pessoas. Em suma, a religião, longe de ser o pilar da moral, era um obstáculo a ela, por causa dos preconceitos imemoriais que ela embutia e que prejudicavam a visão imparcial dos fatos. A tradição, representada por regras reproduzidas sem questionamento através dos séculos, é estúpida e obscurantista, porque ela impede o homem de ser livre e de escolher o seu caminho de acordo com seu melhor julgamento.

    Quem tem razão neste debate? Durant ou Voltaire? Conservadores ou liberais? É um debate que está implícito na discussão sobre a liberalização ou não das drogas. No artigo citado acima, o escritor peruano Mario Vargas Llosa mostra-se claramente um iluminista. Em sua opinião, o comércio das drogas deve ser livre porque a política de repressão até agora adotada só levou à consolidação do poder dos narcotraficantes, à violência e à corrupção das instituições estatais. A solução é jogar luzes sobre esse poço sem fundo: deixemos que as pessoas tenham a liberdade de optar por se drogar ou não, com base em um consentimento informado, isto é, na análise por cada um de nós, sujeitos do nosso destino, dos riscos e benefícios de ingerir substâncias que causam alterações no cérebro e que têm potencial de causar vício.

    Para Llosa, pior que está não pode ficar: os narcotraficantes se beneficiam da repressão auferindo lucros fabulosos e oferecendo seus produtos livremente, a despeito de todo o aparato policial. Sua mensagem é de um perfeito filósofo iluminista: façamos uma análise desapaixonada dos fatos, livremo-nos das nossas ideais pré-concebidas, fundadas no medo e na ignorância sobre as drogas, e tenhamos a coragem de confiar na capacidade de cada ser humano, dotado da capacidade de pensar e perceber, de decidir o que é melhor para si.  A droga não é pecaminosa ou demoníaca em si, ela pode ser deletéria se for mal utilizada por pessoas desinformadas.

    Não há dúvida de que nem todo usuário de drogas é um viciado incorrigível e não há dúvida sobre a influência corruptora exercida pelos narcotraficantes sobre as frágeis democracias na nossa América Latina. No entanto, será que nós realmente somos capazes de nos proteger de escolhas erradas simplesmente pela exposição ao maior número de informações sobre as vantagens e desvantagens de determinado comportamento?

    De fato, o artigo de Veja sobre os efeitos deletérios do uso exagerado de aparelhos digitais é mais um dos tantos que nos alertam sobre os perigos da nossa fissura pela tela dos celulares, tablets e quejandos. Quem já não leu sobre o impacto das fake news sobre as campanhas eleitorais, o impacto dos algoritmos utilizados pelas mídias sociais sobre nossas preferências ideológicas, reforçando-as e nos fazendo fecharmo-nos cada vez mais na nossa tribo? E no entanto, apesar de todas essas informações, de todas essas advertências de especialistas como o Sr. Desmurget sobre o impacto do excesso de tempo na frente das telas, continuamos aqui e não desgrudamos delas. Qual será a razão? Será que o nosso prazer em navegar na internet, no Facebook e no WhatsApp é maior do que nossa tênue consciência acerca dos males do vício? Será que no final das contas só conseguimos controlar nossas emoções e impulsos quando eles são suaves o suficiente para não importunar o funcionamento da razão? Será que quando somos deixados livres para decidir, isso não é necessariamente garantia de que decidiremos o que é melhor para nós porque nossa irracionalidade, livre das amarras da religião e da moral vem à tona?

    Prezados leitores, viciada que sou como vocês nas telas digitais, ainda que não nas drogas, eu não tenho resposta ao dilema reprimir ou não reprimir, liberar ou não liberar, emoção ou razão. Espero ao menos ter contribuído para que cada um possa perceber a complexidade da questão inquirindo sobre as origens históricas e filosóficas da dialética entre moral e religião.

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Das Relatividades e Relativismos

Não devemos concluir que a moral é inútil porque ela muda de acordo com o tempo e o lugar, e que seria sábio mostrar nosso conhecimento histórico imediatamente desacatando as regras morais do grupo. Um pouco de antropologia é algo perigoso. Nossa rejeição heroica dos costumes e da moralidade da nossa tribo, quando descobrimos na adolescência que eles são relativos, revela a imaturidade da mente; mais uns dez anos e começamos a entender que pode haver mais sabedoria no código moral do grupo – a experiência formulada de gerações da raça – do que pode ser explicado em um curso na faculdade. Mais cedo ou mais tarde vem a constatação perturbadora de que mesmo aquilo que não conseguimos entender pode ser verdade. […] Temos razão em concluir que as regras morais são relativas, mas indispensáveis.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

O selvagem de qualquer tribo indígena ou australiana considera sua cultura superior a todas as outras sem se preocupar em elaborar um discurso científico sobre elas, ao mesmo tempo que a etnologia quer se situar no campo da universalidade sem se dar conta de que em muitos aspectos ela está solidamente situada em sua particularidade, e que seu pseudodiscurso científico se degrada rapidamente em verdadeira ideologia. […] a velha convicção ocidental, frequentemente compartilhada pela etnologia, ou pelo menos por muitos daqueles que a praticam, é que a história tem um sentido único, que as sociedades sem poder são a imagem daquilo que nós não somos mais e que nossa cultura é para elas a imagem daquilo que deve ser.

Trecho retirado do ensaio “Copérnico e os Selvagens” do livro A Sociedade contra o Estado do antropólogo francês Pierre Clastres (1934-1977)

    Prezados leitores, há um pouco mais de sete anos eu abordei o tema da antropologia neste meu humilde espaço, citando um trecho deste mesmo autor francês, Pierre Clastres, que realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios guayaki, guarani e yanomami. Em 2014, eu questionava a utilidade do estudo da antropologia na universidade como atalho para a resolução dos problemas enfrentados pelas sociedades capitalistas. Hoje, retomo Clastres para uma abordagem com mais nuances do porquê ou não de estudarmos antropologia como parte da formação geral dada no primeiro ano dos estudos superiores. Para tanto, tentarei explicar a contribuição de Clastres para a antropologia política, que questiona tanto a visão marxista da política como superestrutura necessariamente derivada da infraestrutura econômica quanto a visão de muitos etnólogos ocidentais.

    Meu ponto de partida será a crítica que o antropólogo francês, morto prematuramente aos 43 anos em um acidente de carro, faz do conceito de economia de subsistência, utilizado frequentemente para descrever o modo de produção econômica das tribos indígenas. A palavra subsistência implica falta de algo e sua utilização nesse contexto tem o propósito de descrever a economia indígena como carente de algo, a saber, do excedente. Os indígenas, de acordo com a explicação predominante, só conseguiam produzir o suficiente para satisfazer suas necessidades básicas mais prementes, mas não conseguiam produzir para acumular de forma que estivessem preparados para enfrentar períodos de desastres naturais, daí por que sua vida consistia no esforço de estabelecer um equilíbrio precário entre as necessidades alimentares do grupo e os meios de satisfazê-las.

    Clastres se insurge contra essa descrição pejorativa da organização econômica dos índios, fruto do ponto de vista ocidental. Os índios produziam para satisfazer suas necessidades e só. Isso lhes era suficiente e não viam motivo para mudar seu modo de vida e passar a trabalhar muito mais para gerar excedentes. Mais importante, não foram constrangidos a fazê-lo, pois o poder político nas tribos indígenas era disperso e não coercitivo. Não havia uma entidade personificada na figura de um rei ou chefe supremo que tivesse poder reunido em sua pessoa para obrigar seus comandados a trabalhar mais para produzir mais. Os chefes indígenas tinham poderes durante o período de guerra, mas em épocas de paz os outros membros da tribo não permitiam que ninguém acumulasse poder de modo a conseguir coagir as pessoas a agir de determinado modo contra a vontade delas.

    A antropologia política de Clastres representa um desafio tanto à visão marxista quanto à visão tradicional da etnologia. Para uns e outros há um desenvolvimento natural de um modo de vida de subsistência, em que os membros do grupo compartilham aquilo que é produzido, para um modo de vida em que o avanço técnico leva à produção de excedentes, que por sua vez leva à elaboração de estruturas sociais e políticas hierarquizadas, as quais serão responsáveis pela tomada de decisão sobre quem vai trabalhar ou não e como os excedentes serão distribuídos. Para o antropólogo francês a tal da economia de subsistência não foi fruto da incapacidade técnica dos indígenas de evoluir para uma forma mais sofisticada de produção econômica, mas uma escolha dos membros do grupo de não trabalhar mais, viabilizada pelo fato de não haver nenhuma força externa que tivesse o poder de impor essa mudança no regime econômico.

    Daí o nome do livro de ensaios de Clastres: A Sociedade contra o Estado. Os indígenas impediram que houvesse concentração de poder e que surgisse o Estado com o poder de impor comportamentos a um grande número de pessoas. Se o Estado tivesse surgido como surgiu nas sociedades ocidentais, a produção de excedentes ocorreria porque seria imposta de fora para dentro.  E como foi possível aos indígenas fazer isso? Clastres estabelece como causa provável o fato de não ter havido um crescimento demográfico que acabasse com a dispersão dos pequenos grupos e os colocasse mais juntos e portanto, mais suscetíveis a uma organização unificadora das diferenças.

    Sob essa perspectiva, a organização da sociedade em classes sociais e a produção regular de excedentes não é o ápice da história, a evolução natural do homo sapiens da barbárie à civilização. Ela é uma entre várias alternativas que foi possibilitada por determinadas circunstâncias materiais que para o antropólogo francês são o surgimento de um poder político centralizado e o crescimento populacional.

    Qual a utilidade de sabermos que o regime político e econômico ocidental não é a única rota que pode ser trilhada pelo homem? No artigo Maus Selvagens que escrevi em 2014 eu argumentei que saber que é possível viver de maneira a satisfazer nossas necessidades sob um regime de economia de “subsistência” (agora entre aspas para chamar a atenção para o viés ideológico dadefinição) não nos serve muito agora, em pleno século XXI, para resolvermos os problemas ambientais criados pela ênfase na produção ininterrupta de excedentes. Teremos que achar soluções dentro do nosso próprio sistema para enfrentar os desafios por ele criados, porque mudar radicalmente as bases da economia é impraticável. Em primeiro lugar atualmente temos quase 8 bilhões de bocas para sustentar no mundo. Em segundo lugar, as necessidades básicas de uma pessoa habituada ao conforto material proporcionado pela tecnologia do século XXI não são as mesmas daqueles que só precisavam alimentar-se e proteger-se dos elementos naturais.

    Por outro lado, como Durant explica no trecho que abre este artigo, estudar a antropologia e com isso adquirir o conhecimento das infinitas possibilidade dos modos de organização social humana não deve nos levar ao niilismo relativista. Sim, não há nada de absoluto ou de fim da história em termos de como o homem se relaciona com seus semelhantes. Por outro lado, cada regime social criado ao longo da história é o fruto de escolhas feitas ao longo de gerações por seres humanos que enfrentaram determinados desafios e deram sua resposta a eles. Negar a sabedoria acumulada pela experiência de enfrentar a morte, as doenças, as catástrofes naturais ou acidentais porque ela não é a última palavra é negar o poder de criação do homem.

   Prezados leitores, cada uma a seu modo as sociedades indígenas que viviam sem poder coercitivo e produzindo o suficiente para sua sobrevivência resolveram seus problemas tanto quanto as sociedades com poder estatal instituído que produziam excedentes. A lição ensinada por Clastres sobre a relativização das concepções ocidentais e a advertência dada por Durant sobre não deixar que a antropologia nos cegue sobre nossas próprias conquistas mostram o caminho: o meio termo entre valorizarmos aquilo que conseguimos construir ao longo da história enquanto grupo e percebermos que o que construímos não é o supra sumo das realizações humanas, pois houve quem criasse de outra maneira em outros tempos e outros lugares. Celebremos as diferenças sem triunfalismos, nem negacionismos. Apenas com a consciência de que tudo é relativo, mas ao mesmo tempo indispensável para sobrevivermos e prosperarmos no planeta Terra.

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