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A canga e o capote

Posted by on 23/11/2021

Resolveram imediatamente fazer uma coleta para ele, mas reuniram uma quantia ínfima, porque os funcionários já haviam gasto muito na compra de um retrato do diretor e na aquisição de um livro qualquer, sugerido pelo chefe da repartição, que era amigo do autor; portanto, só conseguiram reunir uma ninharia. […] Pois é, na Santa Rússia tudo está contaminado pela imitação, cada um arremeda seu chefe e banca o chefe.

Trecho retirado do conto “O Capote”, do escritor Nikolai Gógol (1809-1852), considerado uma das pedras fundadoras do Realismo literário na Rússia no século XIX

Um país que quer sair do subdesenvolvimento deve abrir sua economia que, em grande parte, se encontre nesta condição por causa de sua estrutura fechada e da asfixia que lhe imprime o Estado, que, geralmente, monopoliza o grosso das atividades econômicas. Enquanto elas estejam controladas pelo Estado, o resultado é invariavelmente a corrupção, o privilégio de uma minoria de burocratas, o atraso científico e técnico, e a dependência do exterior, sua subordinação aos países mais desenvolvidos e prósperos.

 

Trecho retirado do artigo “Uma sociedade democrática e moderna” de Mario Vargas Llosa, publicado no Estadão em 21 de novembro

    Prezados leitores, O Capote trata de um humilde burocrata, Akáki Akákievitch, que fazendo inúmeros sacrifícios ao longo de vários meses, adquire um capote feito sob medida para ele por um artesão seu amigo, Pietróvitch; ao voltar de uma festa na casa de um colega da repartição, Akákievitch é atacado em uma praça deserta por homens que acabam lhe roubando o capote. Akákievitch morre de desgosto porque não consegue ajuda de ninguém para reparar a injustiça que lhe é feita.

    De fato, por recomendação de um colega de departamento, o herói do conto procura um figurão que possa encontrar os bandidos e fazê-los devolver o capote, mas o tal do figurão considera desrespeitosa a maneira como Akákievitch dirige-se diretamente a ele para fazer seu pedido, sem passar pelas devidas instâncias de processamento de demandas. Por isso, trata-o de maneira grosseira, o que assusta Akákievitch, e o faz voltar para casa com o rabo entre as pernas.

    Quanto aos outros colegas do escrivão, conforme mostra o trecho que abre este artigo, eles timidamente tentam fazer uma vaquinha para arranjar-lhe outro capote, mas há outras prioridades dos burocratas, que seguem estritamente os ritos do serviço público: é preciso puxar o saco do chefe, mostrar-lhe deferência oferecendo-lhe presentes ou ajudando seus amigos literatos e para isso uma vaquinha para angariar os fundos é uma necessidade. Mas fazer uma vaquinha para comprar um novo capote para um pobre coitado que não tinha com o que se vestir é totalmente supérfluo, porque Akákievitch figurava humildemente na nona posição da classificação das dezoito categorias de servidores civis e militares do Estado, criada por Pedro, o Grande (1672-1725). Era um nada, sempre fora um nada e não valia a pena ajudar um nada que não traria nenhuma vantagem ao benfeitor, pelo contrário, poderia prejudicá-lo na carreira, considerando o absurdo de fazer algo de bom por alguém que ocupava uma posição tão subalterna.

    E assim Gógol mostra por meio de O Capote a cultura da carteirada, os rituais rígidos seguidos pelos membros da burocracia não como um meio de aumentar o bem-estar geral e promover a justiça, mas simplesmente para sinalizar os respectivos lugares de cada um, uns no topo, a maioria obedecendo, para mostrar poder, para reforçar o modo correto de agir de um bom funcionário e assim manter tudo como está, funcionando à perfeição para que a burocracia seja mantida para seu próprio bem.

    Conforme já expus aqui quando abordei outro livro de Gógol, “Almas Mortas” e quando citei trechos de “Memórias de um Caçador”, de Ivan Turguêniev, considero haver muitas coisas em comum entre o Brasil e a Rússia, a começar pela escravidão em um e a servidão no outro. Com seus símbolos de poder e hierarquias, a burocracia são outra instituição que nos unia já no século XIX, talvez como corolário da existência de habitantes oficialmente sem direitos, como eram os escravos e os servos.

    Da Rússia de agora, pós-comunista, nada posso falar, pois além de jamais tê-la visitado, não tive contato com nenhuma obra literária escrita sobre o país de agora. mas do Brasil burocrático posso falar e podemos nós todos que aqui moramos. Afinal, quem nunca teve a desagradável experiência de receber um peremptório não em um cartório? Quem nunca intuiu no não do oficial de plantão um prazer sádico, escondido sob a racionalização de que o procedimento é assim e deve ser seguido para segurança de todos? Quem nunca se viu em terras tropicais às voltas com uma exigência estapafúrdia, cuja origem ninguém sabe determinar, mas cuja força coercitiva é óbvia a qualquer um quando ela é pronunciada pelo dono da caneta ou do carimbo?

    Haverá solução para que aqui como acolá essa instituição retrógrada seja extirpada? Como bom herdeiro intelectual do Século das Luzes, Mario Vargas Llosa, analisando os males da América Latina, considera que a liberdade é a chave para acabar com a burocracia e a corrupção que ela engendra. Liberdade para que os empreendedores invistam e gerem empregos sem interferência do Estado, liberdade para que os cidadãos comuns tenham a possibilidade de fazer as melhores escolhas para sua vida com base nas informações de que dispõem e na educação de qualidade que lhes for ministrada pelo Estado. Só assim, quando os membros da sociedade tiverem igualdade de oportunidades, sem favorecimentos obscuros e sem preconceitos contra determinados grupos, é que haverá prosperidade geral e está será tão grande que compensará as desigualdades criadas pelo laissez -faire.

    Há duas semanas, eu expus minhas restrições ao projeto libertário de Vargas Llosa de tornar as drogas um produto comercializável normalmente, porque considero que nem todas as pessoas sabem escolher o melhor caminho para si mesmas e o exercício da liberdade relativamente a substâncias potencialmente viciantes pode gerar mais problemas do que soluções. No entanto, de modo geral, colocar em prática os princípios iluministas do escritor peruano na América Latina seria uma boa ideia contra a canga da burocracia, corporificada nas demonstrações de poder, na corrupção dos que se locupletam em criar dificuldades para vender facilidades.

    A humilhação e o martírio vividos por Akáki Akákievitch em busca de seu capote perdido e de pessoas que o pudessem ajudá-lo nos fazem rememorar o quanto já perdemos nosso tempo e dinheiro oprimidos pelo peso das nossas autoridades inapeláveis, sejam elas funcionários públicos, representantes de empresas de telefonia, bancos, seguradoras e todos que escondem seu desleixo e descaso atrás de Serviços de Atendimento ao Consumidor cheios de protocolos e registros de chamadas, mas poucos efetivos para resolver os problemas de nós, pobres mortais. Que um dia aqui e lá vivenciemos uma sociedade livre, próspera e que dê oportunidades  aos cidadãos de todas as categorias, com ou sem capote.

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