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Ritos para quê?

Posted by on 24/04/2024

[…] humildes realmente são se lavam pés a pobres, como fez e fará o cardeal, como fizeram e farão o rei e a rainha, ora tem Baltasar as solas rotas e os pés sujos, primeira condição pra que o cardeal ou rei se ajoelhem um dia diante dele, com toalhas de linho, bacias de prata e água-de-rosas, desde que a outra condição Baltasar satisfaça, que é a de ser ainda mais pobre do que agora conseguiu ser, e à condição terceira, que é escolherem-no por virtuoso e cliente da virtude.

Trecho retirado do romance Memorial do Convento, do escritor português José Saramago (1922-2010)

 

[…] tais cerimônias, e a exibição de vasos preciosos e relíquias miraculosas nas igrejas, eram o principal fator na manutenção da ordem social entre os pobres.

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as procissões do Santíssimo Sacramento que ocorriam em Lisboa no século XVIII eram testemunhadas pelos ingleses

Então as classes médias deram as boas-vindas às Luces – ao Iluminismo que vinha da França e da Inglaterra – ao mesmo tempo que seus empregados, que lotavam as igrejas e beijavam os santuários, confortavam-se com a graça divina e a esperança do paraíso.

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre recepção do movimento filosófico do Iluminismo na Espanha

[…] ele tinha nojo da destituição das massas, sua consequente ignorância e superstição, e a aceitação pela igreja da pobreza generalizada como uma consequência da natureza e da desigualdade entre os homens.

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o pintor espanhol Francisco de Goya y Lucientes (1745-1828)

    Prezados leitores, garanto que já ouviram falar da cerimônia do lava-pés. É um ritual cristão realizado em memória do ato de Jesus Cristo de lavar os pés dos seus apóstolos na quinta-feira antes da Páscoa. Os reis da Europa começaram a realizar esse rito na Idade Média. Atualmente, em um país como o Reino Unido, que vive sob uma monarquia, o rei participa de uma missa na chamada Maundy Thursday e transmite uma mensagem aos súditos.

    É essa cerimônia a que José Saramago se refere no trecho que abre este artigo, mas o faz com ironia, como é a tônica do Memorial do Convento, um livro em que o Prêmio Nobel de Literatura dá vazão com verve e maestria a todo o seu anticlericalismo. Para ter a honra de ter os pés lavados pelos reis de Portugal não bastava ser pobre, era preciso ser muito pobre e isso Baltasar, o personagem do romance, ainda não consegue. Lavar os pés dos pobres era um gesto de generosidade dos monarcas, mas considerando que eles o praticavam há centenas de anos, e que pretendiam fazê-lo pelas próximas centenas de anos, isso significa que governavam sociedades que  reproduziam a pobreza indefinidamente, que precisavam desses rituais para reforçar o status quo, mostrar à população que sempre haveria pobres e que sempre haveria reis que magnanimamente lavariam-lhes os pés uma vez por ano, mesmo que não pudessem ou não quisessem mudar as condições materiais da vida desses humildes descalços.

    Memorial do Convento é anticlerical por oferecer um retrato das contradições engendradas e reforçadas pela religião. O rei Dom João V assistia à missa todos os dias, seguia as procissões, mandou construir o convento de Mafra em agradecimento ao nascimento de um filho, todas atitudes de um rei muito católico. Ao mesmo tempo era um polígamo assumido, que mantinha um séquito de freiras para satisfazer seus desejos carnais. Apreciava a música e fez de Mafra uma jóia arquitetônica, mas apoiava o Santo Ofício em sua perseguição aos heréticos, isto é aqueles que opunham-se por gestos ou palavras aos dogmas católicos. É queimado na fogueira pelo Santo Ofício que o herói do romance Baltasar terminará seus dias. Moral da história: a Igreja era santa e seguia rituais que ilustravam o ideal cristão da caridade. Ao mesmo tempo, o pobre que de alguma forma se rebelasse contra sua condição na vida era tratado sem dó.

    Daí a importância desses rituais religiosos: conforme as observações dos ingleses citadas por Will e Ariel Durant, a beleza das procissões, das vestimentas dos santos, dos objetos de culto, como o Santíssimo Sacramento, mesmerizava os pobres e impedia que se transformassem em contestadores como Baltasar. Em tal contexto, a chegada do Iluminismo na Península Ibérica trazido da França pelo Conde de Aranda (1718-1799) à Espanha e pelo Marquês de Pombal (1699-1782) da Inglaterra a Portugal tinha objetivos mais modestos que os movimentos filosóficos nos países de origem. Se na França e na Inglaterra o objetivo era acabar com a superstição, fomentar a tolerância, a educação, a ciência de modo a achar soluções para melhorar a vida material das pessoas, na Espanha e em Portugal o objetivo era diminuir o poder da Igreja e da Inquisição e aumentar o do Estado.

    Nesse sentido, já era suficiente que as classes médias adotassem os princípios iluministas. Elas não precisavam de religião, porque não precisavam de um consolo espiritual para a miséria material que afligia os pobres. Estes poderiam continuar a beijar relíquias e estátuas de santos, a ajoelhar-se ante a passagem de uma procissão. Aliás, isso era até uma necessidade, porque o projeto iluminista ibérico não era radical o suficiente para vislumbrar incluir as massas no esforço progressista e tirá-las do medo, das crenças infundadas, da penúria, da fome e das doenças.

    Era esse conformismo com o status quo que o pintor espanhol Goya condenava na Igreja Católica, conforme o trecho que abre este artigo. Seus paramentos, seus incensos, seus cantos ofereciam consolo, mas ao mesmo tempo levavam as pessoas a aceitar as enormes desigualdades entre as classes sociais como algo inevitável. O que a  Igreja Católica fazia pelos destituídos era o suficiente para que não passassem fome e continuassem cultuando e honrando Deus, mas não era suficiente para lhes dar oportunidades reais de desenvolvimento. Goya havia sido pobre e tivera a chance de desenvolver seu talento servindo à nobreza. Mas ele sabia que esse caminho de prosperidade física e intelectual estava interditado para a maioria das pessoas, por interesses dos ricos e por conivência da Igreja com os ricos.

    Prezados leitores, essa explicação da função dos rituais religiosos nas sociedades não bafejadas pelo Iluminismo nos mostra o porquê de o cristianismo ter caído em descrédito total na Europa, que aparta-se cada vez mais de qualquer princípio religioso para a organização da sociedade. Quando os livres-pensadores perceberam que a religião era simplesmente um conjunto de ritos destinados a manter os pobres na linha e os privilégios dos ricos, eles a descartaram totalmente como algo incompatível com o exercício da razão para melhorar as condições materiais das pessoas. As repercussões dessa negação total refletem-se até hoje. Talvez algum dia, quando a civilização ocidental que hoje existe pereça, os sobreviventes poderão ter uma atitude mais serena em relação à religião e adotar alguns de seus princípios éticos. Oxalá então que o ritos possam adquirir um novo significado e não ser apenas expressão de hipocrisia e de opressão dos que nada têm pelos que tudo têm.

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