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Religião para quê?

Posted by on 03/04/2024

Você não consegue orientar-se com o conhecimento dos fatos e a razão disso é que há um número infinito de fatos. Você tem que organizar os fatos. Assim que você os organiza você está em uma hierarquia de valor. Então os pós-modernistas descobriram isso, e essa é a razão pela qual – e isso é tão interessante – a maior parte deles era formada de críticos literários, críticos de histórias. Eles sabiam que havia uma chave de interpretação de uma história. O problema com os pós-modernistas – eles acertaram nisso e foi uma grande conquista –, mas eles foram logo presumindo, por causa do seu marxismo, que a história fundamental diz respeito ao poder. […] A história é sobre o sacrifício supremo. Essa é a história. O mito cristão acertou nisso. A razão para isso é a que a própria  comunidade é uma operação de sacrifício. Para tornar-se membro de uma comunidade você se sacrifica. Essa é a definição de comunidade. Você pode sacrificar-se de maneira que seja benéfica a você e a comunidade. Essa é a mais alta forma de sacrifício.

Trecho da fala do autor e psicólogo canadense Jordan Peterson em um podcast com o autor e jornalista Michael Shellenberger

Ele os aconselhava a permanecer na religião da sua juventude ou a voltar a ela, a despeito de todas as dificuldades que a ciência e a filosofia haviam sugerido; aquelas incredibilidades não eram a essência e poderiam ser colocadas de lado silenciosamente; o que importava era a confiança em Deus e na imortalidade; com essa fé e esperança a pessoa poderia superar os desastres ininteligíveis da natureza, todas as dores e desgostos da vida.

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando os conselhos que o filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) dava àqueles que lhe escreviam em busca de aconselhamento espiritual

Minha Pedra Cristalina, que no mar foste achada, entre o Cálice e a Hóstia consagrada. Treme a Terra, mas não treme Nosso Senhor Jesus Cristo no Altar. Assim, tremem os corações dos meus inimigos quando olharem para mim. Eu te benzo em cruz e não tu a mim, entre o sol, a lua e as estrelas, as três Pessoas da Santíssima Trindade. Meu Deus, na travessia, avistei meus inimigos. Meu Deus, que faço com eles? Com o manto da Virgem Maria sou coberto e, com o sangue de Meu Senhor Jesus Cristo, sou valido. Tens vontade de atirar , porém não atiras; se atirar, água do cano da espingarda correrá; se tiveres vontade de me furar, a faca da mão cairá; se me amarrar, os nós desatarão e, se me trancar, as portas se abrirão.

Oferecimento:  salvo fui, salvo sou, salvo serei, com a chave do sacrário eu me fecho. Um Padre Nosso; três Ave Marias; três Glórias ao Padre, e ofereço às Cinco Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo

Oração encontrada com Virgulino Ferreira da Silva, vulgo o Lampião (1898-1938) quando de sua execução pelas forças governamentais na Gruta do Angico

    Prezados leitores, na semana passada explorei a ideia defendida por Jean-Jacques Rousseau de que a consciência precede a inteligência no sentido de a primeira dar a segunda as diretrizes para operar no mundo e com isso fiz uma reflexão sobre o modo como a ciência de hoje é produto de uma inteligência sem consciência, conforme o diálogo entre Bret Weinstein e Jordan Peterson.  Nesta semana enfocarei outro podcast do psicólogo e autor canadense para novamente traçar um paralelo com as ideias de Rousseau, no caso sobre a religião. O objetivo é descobrir alguma função para ela no século XXI, no qual a experiência do Iluminismo no Ocidente completa 300 anos.

    A maior parte dos Iluministas, à exceção de Rousseau, que era a ovelha negra do movimento e foi hostilizado pelo núcleo duro dos philosophes, considerava a religião perniciosa. Ela era um obstáculo ao progresso do conhecimento que permitiria melhorar a vida material das pessoas através da ciência e de suas aplicações práticas, pois insistia em mitos e milagres que não tinham suporte na realidade tal como o homem podia determinar por meio da sua razão. Nesse sentido os dogmas da religião eram os antípodas do esforço racional, porque exigiam a suspensão do julgamento baseado naquilo que o homem experimentava e concluía com base na experimentação.

    Para Jordan Peterson chegou o momento de decretarmos a morte do Iluminismo e sua defesa da ideia de que religião e ciência são coisas irreconciliáveis. Conforme ele explica no seu podcast, os Iluministas estavam errados em supor que aquilo que percebemos da realidade era algo objetivo que poderia ser tratado pela mente humana para produzir conhecimento válido universalmente. Conforme o trecho que abre este artigo, o ser humano, ao interagir com a realidade que o cerca, o faz imbuído de um conjunto de valores que lhe permite estabelecer uma hierarquia do que é importante, que deve ser considerado, e do que não é importante, que deve ser descartado.

    Os filósofos pós-modernistas enxergaram a falha no pensamento Iluminista que descartava os valores e dava à razão humana uma aura de impessoalidade e universalidade que ela não tinha. Por outro lado, para o psicólogo canadense eles cometeram uma falha ao descartar o mito da racionalidade absoluta e substituí-lo pelo mito da irracionalidade absoluta, isto é, a crença de que todas as relações humanas são mediadas pelo poder e portanto tudo aquilo que o homem faz, seja no campo da economia, da sociedade ou da cultura, é manifestação desse poder, que por definição é arbitrário.

    Peterson propõe uma síntese para superar a tese Iluminista e a antítese pós-modernista/marxista.  O empreendimento humano é sempre valorativo, mas tal valor pode ter uma pretensão universalista e escapar da armadilha do poder se esse empreendimento tiver como foco central o sacrifício, tal como exemplificado na história de Jesus Cristo. O valor que dá sentido à vida é o do sacrifício do indivíduo em prol da comunidade, o homem abdica de prazeres e de idiossincrasias subjetivas para adequar-se à vida em sociedade, cumprir suas obrigações e em fazendo isso beneficia a si mesmo, ao produzir algo que lhe traz vantagens – seja o trabalho, seja o conhecimento científico –, e à comunidade, ao conquistar algo que serve aos propósitos de todos.

    Sob esse aspecto, Peterson defende a religião como o meio que cria uma narrativa que motiva o indivíduo a se tornar membro de uma comunidade fazendo os devidos sacrifícios para tornar isso possível.  A religião cria uma grande comunidade, daqueles que já não estão mais aqui, daqueles que ainda estão e daqueles que virão no futuro em torno da ideia do Deus onipresente e atemporal. Sem essas relações estreitas que cobrem diferentes tempos e espaços, as pessoas não têm compromisso com nada do que veio antes e do que virá depois.

    Para nós, no século XXI, que vemos os efeitos da razão sem consciência na degradação do meio ambiente, na corrida armamentista desenfreada entre as grandes potências, na utilização do discurso científico como fachada para a defesa de interesses escusos é relativamente fácil para um autor como Jordan Peterson expor a necessidade de dar um fim ao Iluminismo e de retomar uma visão religiosa. Mas no século XVIII, quando a razão dava seus frutos extraordinários nas descobertas científicas e a religião era representada por uma instituição poderosa e corrupta como a Igreja Católica, não era fácil expor os riscos dos abismos a que a razão poderia levar o ser humano. E mesmo assim Jean-Jacques Rousseau o fez.

    Conforme o trecho que abre este artigo,  Rousseau aconselhava aos que o procuravam para fugir do ateísmo que então espalhava-se pela Europa Ocidental devido ao descrédito da Igreja enquanto instituição, que não fizessem das contradições entre a ciência e as proposições de fé religiosa um motivo suficiente para abandonar a religião. A narrativa religiosa fundada na ideia de imortalidade e de que o bem ao final predomina continuava a ser o melhor instrumento para lidar com as injustiças e as vicissitudes da vida. Voltem à igreja! – conclamava Rousseau – não para acreditar em tudo o que o padre ou o pastor falavam, não para pedir vantagens para si mesmo, mas para ser confortado por uma história que dava sentido a tudo e com isso dava ao indivíduo resiliência para continuar, apesar dos pesares.

    Uma religião racional, poderíamos dizer, esta que pregam Peterson e Rousseau, uma religião que prescinde de milagres e favores especiais para ter um papel na vida espiritual do homem. Nesse sentido, a oração do Rei do Cangaço no Brasil, Lampião, citada na abertura deste artigo, pedindo proteção a Jesus Cristo e à Virgem Maria contra seus inimigos é uma aberração, pois cai no domínio da superstição que os Iluministas combateram: a religião que favorece uns em detrimento dos outros, que justifica assassinatos, crueldades e outras imoralidades, que faz da oração um meio de cooptação dos entes superiores pela força da palavra do suplicante ou pela força das suas armas.

    Prezados leitores, à pergunta – religião para quê no século XXI? – podemos responder, à luz dos diálogos de Jordan Peterson com seus convidados e dos ensinamentos de Rousseau: para carregarmos cada um nossa cruz particular e termos ímpeto para completarmos a maratona.

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