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Ciência para quê?

Posted by on 27/03/2024

Consciência! Consciência! Instinto divino, voz imortal dos céus; guia seguro de uma criatura ignorante e finita de fato, mas ao mesmo tempo inteligente e livre, infalível, juiz do bem e do mal, fazendo o homem parecer Deus! Nisso consiste a excelência da natureza do homem e a moralidade das suas ações; além disso não encontro nada em mim mesmo que me faça estar acima das bestas – nada, além do triste privilégio de vagar de um erro para o outro com a ajuda de um intelecto e uma razão descontrolados que não conhecem nenhum princípio.  

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando o livro Émile do filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

Jordan Peterson: Eu diria que o que a ciência permite que nós façamos é driblar e transcender nossos próprios vieses particulares. Mas ela não pode acontecer de jeito nenhum na ausência de uma orientação embutida nesse espírito generoso de reciprocidade e abstração. Imagine que você seja um pesquisador do câncer. Você está aceitando um conjunto de valores axiomáticos antes de analisar os dados. Um conjunto de valores que inclui princípios como “seria melhor se houvesse menos sofrimento”; “seria melhor se houvesse menos vítimas de câncer”; “seria melhor se soubéssemos mais sobre as doenças em geral”; e “os resultados da minha investigação idônea serão um benefício para as pessoas independentemente das relações delas comigo”. Todos esses princípios são comprometimentos intelectuais prévios que têm que ocorrer antes mesmo que você possa abordar de maneira adequada os dados na planilha. Se o seu espírito é o de considerar que “vou extrair desta planilha a história que beneficiará ao máximo a mim e a minha família economicamente no curto prazo você instantaneamente se torna um cientista carreirista e conspurca todo o empreendimento. Então eu diria que a ciência só funciona se ela está embutida no conjunto de valores rumo ao qual estamos caminhando. Eu tento separar esse argumento em pedaços, mas não consigo. Não consigo alterar esse argumento.

Bret Weinstein: Nâo, você está totalmente certo e por mais que meu argumento anterior seja válido no sentido de que as oportunidades devam ser o mais amplamente distribuídas quanto possível, uma vantagem daquele período glorioso da ciência em que ela era feita por cientistas cavalheiros era que eles não tinham incentivos perversos de carreira. Eles satisfaziam seus interesses estando certos no longo prazo. É assim que eles se tornavam imortais. E essa é uma boa motivação. E o que temos agora é algo que parece exatamente com a ciência, mas é algo que a colocou de pernas para o ar, é algo obsceno. A COVID nos ensinou esta lição aos montes. Vimos pela primeira vez o nível em que isso é uma forma refinada de corrupção que é tão perniciosa que toma um veneno e o rotula como uma cura e toma uma cura e a rotula como veneno, e faz isso sem piscar.

Trecho retirado do podcast entre o biólogo evolutivo americano Bret Weinstein e o psicólogo canadense Jordan Peterson.

    Prezados leitores, na semana passada mencionei as opiniões de Jean-Jacques Rousseau sobre a influência perniciosa que a arte do drama e da comédia poderia ter sobre o comportamento das pessoas. Ao mostrar repetidas vezes os personagens sendo velhacos, libertinos ou cruéis sem que ao final fossem punidos de alguma forma pelo enredo, seja terminando na miséria ou na cadeia, haveria uma naturalização dos vícios, que acabariam se transformando em modelos de comportamento pelo seu caráter de realidade. Nesta semana explorarei mais uma faceta do mais famoso genebrino da História, especificamente as ideias que ele tinha sobre educação, as quais expôs no livro Émile, de 1762. O objetivo é o de mostrar como elas ecoam no século XXI na concepção que dois intelectuais da atualidade – Bret Weinstein e Jordan Peterson – têm sobre o modo como a ciência deve ser praticada e como ela não deve ser praticada.

    Conforme o trecho que abre este artigo, para Rousseau o que nos diferencia dos outros animais e nos torna especiais é o fato de termos uma consciência que nos permite escolher entre o bem e o mal. A capacidade mental não nos torna humanos por ela mesma porque se deixada desenvolver-se sozinha, sem uma consciência subjacente que forneça a ela princípios morais, ela atirará para todos os lados, tentando toda e qualquer coisa, emitindo qualquer opinião em uma perseguição infinita de uma miragem que nunca se concretizará na forma de bons frutos. Portanto, o aluno Émile que é o objeto da educação ideal de Rousseau não recebera educação intelectual antes de receber formação moral. A consciência precede a inteligência, estabelecendo a estrutura na qual esta operará.

    Mais de 260 anos depois e essa ênfase em certos valores fundamentais para que o intelecto possa florescer é a base da conceituação da ciência realizada no podcast citado na abertura deste artigo, em que Bret Weinstein e Jordan Peterson discutem e chegam a uma visão compartilhada do que deve ser a ciência. A ciência é um empreendimento que requer a colaboração com pessoas que não fazem parte do círculo imediato de relações pessoais do cientista, escolhidas com base na competência que mostram e não na base dos interesses que possam compartilhar. Essa colaboração gira em torno da busca do ideal da verdade por trás das aparências e da complexidade do mundo e essa busca da verdade requer pessoas que atuem com isenção, isto é, sem favoritismos, sem vieses particulares que as façam, por exemplo, criticar um artigo de um colega cientista porque não gostam do indivíduo. Para ser válida, a crítica precisa estar respaldada no que o trabalho científico conseguiu ou não mostrar sobre a realidade, independentemente das predileções ou ojerizas que o revisor possa ter em relação ao autor.

    Nesse sentido, como Jordan Peterson explica, para que seja praticada, a ciência pressupõe uma série de princípios, a que ele dá o nome de ethos em inglês. No caso da medicina por exemplo, a busca da verdade está aliada ao ideal de melhorar a vida das pessoas, de diminuir-lhes o sofrimento, de não lhes causar mal. Se não houver esses ideais de objetividade, verdade, conhecimento, beneficência, não maleficência, a ciência será uma atividade realizada por carreiristas, cujo foco é o seu interesse econômico imediato, o que o levará a abdicar de caminhos mais árduos em busca desses ideais para seguir os caminhos mais fáceis da adesão à opinião da maioria, da fama e do dinheiro disponíveis para aqueles cujas atividades pseudocientíficas dão credibilidade a procedimentos e produtos que nada mais fazem do que respaldar os interesses dos que têm o poder de estabelecer os consensos por serem os donos do dinheiro que fazem a roda girar.

    Daí a frase de Weinstein sobre a corrupção da ciência que acontece no mundo de hoje de forma que o valor da verdade é totalmente desvirtuado em prol da mentira lucrativa: o que é veneno é representado como cura e vice-versa, porque essa subversão faz carreiras prosperarem, faz empresas terem lucro, mesmo que no longo prazo os efeitos para a população em geral, usuária e objeto dos produtos e das práticas científicas, sejam catastróficos.

    Prezados leitores, a lição de Rousseau em seu esforço pedagógico consubstanciado no romance Émile do século XVIII continua relevante nos dias de hoje, que tem a seu dispor uma ampla gama de recursos tecnológicos. Sem a consciência para dar ao homem diretrizes, a tecnologia se torna um brinquedo perigoso nas mãos de uma criança que não sabe como fazer o bem com ele. Oxalá aprendamos a suprir essa defasagem entre nossa capacidade intelectual e nossa capacidade moral antes que nos destruamos.

    Ciência para quê? Se não for para a perseguição dos ideais mais altos que a humanidade pode cultivar ela no final das contas não nos servirá para nada que garanta a sobrevivência da nossa espécie a longo prazo.

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