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Rússia para quê?

Posted by on 17/04/2024

Meus amigos – ensinava-nos – a nossa nacionalidade, se é que ela realmente “nasceu”, como eles agora asseguram nos jornais, ainda está na escola, em alguma Peterschule alemã, atrás de livro alemão e afirmando sua eterna lição alemã, enquanto o mestre alemão a põe de joelhos quando precisa. […] a Rússia é um mal-entendido grande demais para que nós o resolvamos sozinhos, sem os alemães e sem o trabalho.

Trecho da fala do personagem Stiepan Trofímovitch do romance “Os Demônios “ de Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

Andrew Napolitano: Qual é a atitude do povo russo, na medida em que você conseguiu percebê-la, sejam eles sindicalistas, autoridades governamentais, jovens profissionais, sobre o desejo dos Estados Unidos de fazer uso da violência contra a Rússia e a raiva das autoridades governamentais americanas contra suas contrapartes russas?

Alistair Cooke: Bem, essa reunião foi muito diferente, porque havia todo tipo de pessoa, era para os sindicalistas, mas estava cheia de acadêmicos, cientistas, professores de filosofia e pessoas do parlamento e do governo. Devo dizer que o sentimento geralmente expresso de maneira poderosa, não era somente de desapontamento, realmente era de desprezo, particularmente em relação à Europa. Essa fala era típica: “Nós acreditávamos no Ocidente, nós acreditamos por 25 anos. E agora nós desprezamos o Ocidente, o que eles estão fazendo conosco agora é como o cerco a Leningrado, eles estão nos assediando, fazendo tudo o que podem para nos prejudicar.” Mas no final das contas devo dizer que o que foi mais impactante foi que eles se orgulham dos seus valores, eles se orgulham do que a Rússia significa. Eles se orgulham do fato de que conseguiram passar por tudo isso de maneira a conseguir os valores deles de volta. Eles acreditam que os seus valores são verdadeiros e bons.

Trecho do podcast entre o juiz aposentado americano Andrew Napolitano e o ex-embaixador do Reino Unido Alistair Cooke

Atualmente Dostoiévski é um dos romancistas do século 19 mais lidos talvez porque ele dramatizou de maneira eficaz os problemas morais, religiosos e políticos que perturbaram as gerações entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e depois.

Trecho do verbete sobre o escritor russo na edição de 1974 da Enciclopédia Britânica.

 

    Prezados leitores, permitam-me apresentar-lhes um personagem tirado do livro Os Demônios, Stiepan Trofimovitch. Ele é enquadrado na categoria de liberal sem nenhum objetivo, que só era possível na Rússia. Meu objetivo será traçar um paralelo entre o estado de coisas que este personagem representava no século XIX, e o estado de coisas em pleno século XXI, conforme percebido por Alistair Cooke em sua recente visita a Sâo Petersburgo, onde participou de discussões sobre o futuro do mundo.

    O que era um liberal sem objetivo na Rússia do século XIX? Era um homem espirituoso, que se achava diferenciado por gostar de propagar ideias e por sentir-se no direito de fazê-lo, como ocorria no Ocidente, herdeiro da tradição racional e libertária do Iluminismo do século XVIII. Como ser especial que era, o liberal russo olhava seu país com condescendência e o criticava sempre, por não se enquadrar nos cânones ocidentais de liberdade de consciência e de expressão, afinal havia a censura imposta pelo governo tzarista, e de liberdade de trabalho, pois havia ainda servos na Rússia.

    Stiepan Trofímovitch mostra suas credenciais de liberal no trecho que abre este artigo. Quando falavam de nacionalismo e de nacionalidade russos ele mofava dessa ideia. Não havia como a Rússia ter identidade própria, porque esta só podia ser construída sob o crivo das civilizações europeias superiores. Afinal, muita coisa que se encontrava no país, a servidão, a repressão governamental, a censura, a falta de educação em geral e de educação científica em particular, não poderia ser aceita no Ocidente, porque seria uma violação do projeto Iluminista que então estava sendo implementado na Europa há quase um século, desde meados do século XVIII. Dessa forma, o que pudesse ser visto como tipicamente russo, fruto da sua experiência histórica de encontro e embate com mongóis, tártaros e outros povos asiáticos, deveria ser extirpado e não restaria muita coisa dessa tal identidade.

    Para fazer jus ao seu papel de homem ilustrado, Stiepan Trofímovitch entremeava seu discurso com frases inteiras em francês, mostrando sua cultura, e falava longamente. E qual era o efeito prático dessa profusão de pensamentos transmitidos a quem quer que estivesse disposto a ouvi-lo? Por acaso ele aplicava sua razão para resolver os problemas concretos dos russos? Para diminuir-lhes o sofrimento físico causado pelas doenças?  Para achar formas de atuação política em benefício dos servos? Para organizar empreendimentos econômicos que criassem empregos e prosperidade?

    Nada disso. Trofímovitch apesar de seu olhar distanciado sobre a Rússia, de um europeu que vê quão bárbara e atrasada ela era, agia como um homem típico da sua classe. Não tinha ocupação nenhuma, além de conversar, era um rentista que vivia da mesada dada por uma amiga, Varvara Petrovna, e não perdia a oportunidade de beber enquanto divulgava suas ideias moderníssimas. Não conseguia nem colocá-las no papel, para melhor organizá-las. Pedir a um liberal sem objetivo que se dedicasse a uma atividade que tivesse alguma utilidade prática seria pedir muito.

    Nesse sentido, Stiepan Trofímovitch, o homem que brincava com as ideias para ter uma boa imagem de si mesmo e iludir-se que era algo mais do que um beberrão vagabundo, dramatiza uma corrente em voga na Rússia no século XIX, a daqueles que consideravam que o padrão ouro de civilização era o europeu e que o que deveria ser feito era depurar o país de suas características não europeias para que ele pudesse progredir. O problema, conforme mostra Dostoiévski por meio das peripécias desses liberais sem objetivo é que eles eram inconsistentes: professavam valores europeus como o uso da razão para melhorar a vida do homem por meio da educação, da ciência e da tecnologia; na prática nada mais faziam do que aproveitar-se do estado de coisas vigente em que uma minoria vivia do trabalho alheio, em benefício próprio. Estavam todos prontos a criticar a Rússia e sua identidade, mas não eram capazes de criticar-se a si mesmos.

    O que ocorreu com o liberal sem objetivo retratado por Dostoiévski? O que ocorreu com os admiradores do Ocidente na Rússia, que sempre colocaram a Europa como o paradigma a ser imitado, mesmo que fosse de maneira superficial? De acordo com Alistair Cooke, ex-embaixador do Reino Unido, os acontecimentos dos últimos 10 anos fizeram os russos darem uma guinada radical. Para aqueles que têm mais de 50 anos, lembrem-se que na década de 1990, após a queda do regime comunista, a Rússia importou receitas neoliberais para a implantação do capitalismo: privatização em massa de ativos estatais, desregulamentação, terapias de choque. Passados 25 anos, na segunda década do século XXI começam os problemas na Ucrânia, que se arrastam até hoje: a derrubada do governo com a chamada revolução Maidan de 2013-2014, a anexação russa da península da  Crimeia  em 2014, a invasão pela Rússia em fevereiro de 2022 da Ucrânia depois de reconhecer a independência de Lugansk e Donetsk, regiões onde predominam populações etnicamente russas, a anexação em setembro de 2022 pela Rússia de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporija.

    Para os russos, o Ocidente, capitaneado pelos Estados Unidos, está usando a Ucrânia como meio de destruir a Rússia, fornecendo-lhe armamentos, treinamento apoio logístico e de inteligência para que a guerra continue indefinidamente e não haja negociações de paz que permitam que russos e ucranianos cheguem a um acordo sobre como as populações de etnia russa que residem na Ucrânia devem ser tratadas. Daí que toda a vontade de emular o Ocidente que brotara novamente no final do século XX com a queda do comunismo se transformou agora, conforme explica Alistair Cooke no trecho que abre este artigo, em desapontamento.

    Desapontamento com a traição do Ocidente, que em troca da boa vontade mostrada pela Rússia em participar da ordem internacional liberal só lhe pagou com maldades: expandiu a aliança militar do Ocidente até as portas da Rússia, cercando-a de bases e de mísseis; insuflou o povo ucraniano, povo irmão, contra os russos, impôs sanções econômicas e não cessa de acusar a Rússia de ser um país ditatorial, comandado por um chefe de quadrilha, Vladimir Putin, que cometeu crimes de guerra nestes mais de dois anos de conflito.

    Longe de colocar-se de joelhos, como Stiepan Trofímovitch, rezava que a Rússia deveria fazer frente à superioridade alemã, os russos do século XXI dão as costas para o Ocidente, cheios de frustração pelas ilusões perdidas e de desprezo pela ideologia liberal ocidental de culto à homossexualidade, à transssexualidade, à mudança de sexo. Na sua visão o Ocidente está perdido, e só a Rússia transmitirá para as próximas gerações a moralidade cristã abandonada no mundo liberal pós-cristão.

    Prezados leitores, à pergunta colocada como título deste artigo: Rússia para quê? Tipos como Stiepan Trofímovitch vislumbraram que o país deveria vir a reboque do Ocidente, imitar-lhe as qualidades.  Hoje, os russos se veem como herdeiros de uma tradição civilizacional que se perdeu no Ocidente e que eles têm a obrigação de continuar. Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos e enquanto isso, apreciemos Fiódor Dostoiévski, que como poucos soube criar narrativas em que os grandes debates filosóficos do pós-Iluminismo puderam vir à tona nas falas e ações de seus personagens.

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