De Diógenes a Lukéria

Mas meu querido patrão, quem é que pode ajudar o próximo? Quem consegue penetrar em sua alma? A pessoa tem de ajudar a si mesma!

Trecho retirado do conto “Relíquia Viva” incluído no livro de contos Memórias de um caçador, do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883)

 

A metafísica parecia também aos Cínicos um jogo vão; deveríamos estudar a natureza não para explicar o mundo, o que é impossível, mas de forma que possamos aprender a sabedoria da natureza como um guia para a vida. A única filosofia verdadeira é a ética. O objetivo da vida é a felicidade, mas será encontrada não na busca pelo prazer, mas em uma vida simples e natural, independente tanto quanto possível de todas as ajudas externas.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Era uma espécie de atitude oportunista em relação à vida, pegando com ambas as mãos as coisas quando estavam disponíveis, e ao mesmo tempo não reclamando quando os tempos eram de vacas magras, aproveitando a vida quando ela podia ser aproveitada, mas aceitando os caprichos da fortuna com um dar de ombros. É a partir dessa elaboração da doutrina que a palavra “cínico” adquiriu seu sentido pejorativo.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” do matemático e filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970)

    Prezados leitores, há duas semanas eu abordei a escola de pensamento dos sofistas da Antiga Grécia e tentei mostrar como eles plantaram a semente da dúvida sobre a possibilidade de explicações cosmológicas sobre a origem do mundo e sobre a existência dos deuses, considerando-as abstrações vagas, e propondo a retórica como um exercício de argumentação válido porque útil para agir na sociedade. Na semana passada, meu foco foi o escritor russo Ivan Turguêniev, mostrando exemplos do retrato que ele nos dá sobre a vida de servos e senhores na Rússia do século XIX. Nesta semana meu objetivo será valer-me dos ensinamentos de Will Durant sobre a escola de pensamento dos cínicos para mostrar o poder de Memórias de um Caçador no despertar da consciência dos russos sobre o que era a vida dos mujiques.

    Segundo Durant, depois que os sofistas abriram a porteira das especulações sobre se era válido falar sobre aquilo que estava além dos sentidos do homem (a metafísica), surge para a filosofia grega do século IV antes de Cristo um leque de possibilidades, dentre elas a visão dos cínicos, cujo grande expoente foi Diógenes (404 ou 412 a.C. – 323 a.C.). Conforme o autor de “The Life of Greece” explica no trecho que abre este artigo, para os cínicos a única investigação filosófica válida era sobre a ética. A metafísica não levava a nada, pois o homem jamais conseguiria explicar o mundo. A razão humana seria mais bem empregada se ela estabelecesse as regras do bem viver, e viver bem nada mais era do que aproveitar aquilo que a vida nos dá, o que não é muito, pois estamos sujeitos a forças que não podemos controlar nem entender, mas pode ser o suficiente se agirmos de forma a diminuir o sofrimento renunciando à busca desenfreada pelo prazer e contentando-nos com prazeres simples que para se concretizarem só dependem da ação individual, e não de o homem contar com uma confluência favorável de fatores externos a ele. Não admira que os herdeiros dos cínicos tenham sido os estoicos, que floresceram no período helenístico (323 a.C.-146 a.C.) e pregavam a coragem ante a adversidade e o perigo, e o desapego aos bens materiais, para não falar dos monges do Egito no início do cristianismo.

    Paciência para saber que não há mal que sempre dure e bem que nunca termine, força moral para seguir seus princípios sabendo que a virtude é sua própria recompensa, independentemente da existência de uma justiça divina. Diógenes estabeleceu as linhas mestras de uma ética que surgida na Grécia impregnará a religião cristã. É neste ponto que entra a personagem Lukéria, cujas palavras ao narrador-caçador, já descrito na semana passada neste meu humilde espaço, abrem este artigo.

    O narrador-caçador encontra Lukéria por acaso. Pernoitando em um sítio de sua mãe, ele passeia pelo jardim de manhã e acaba chegando a um galpão de vime, onde fica uma camponesa que tem ao redor de 28 anos. Devido à cor lívida da sua pele, ao pouco cabelo e à magreza o narrador não reconhece Lukéria que outrora fez parte da juventude do patrão, pois ela era então bonita, roliça, dançava bem e tinha uma grande alegria de viver. Depois de reconhecê-la por ela ter falado quem era, o filho e herdeiro da patroa, mostrando sempre a empatia pelo sofrimento alheio, ouve pacientemente a história da mujique.

    Sua saúde deteriorara-se depois que ela, estando prestes a casar-se, caiu de uma ribanceira e algo partiu dentro dela, levando-a a definhar a tal ponto que não consegue mais se movimentar. Lukéria passa 24 horas por dia dentro do galpão, dependendo de pessoas caridosas que lhe levem alguma comida. O patrão, bondoso, pergunta o que ele pode fazer por ela e se não seria o caso de chamar um médico para minorar-lhe o sofrimento. Lukéria responde – cinicamente, estoicamente ou de maneira cristã que só Deus sabe do que ela precisa, e por isso não vale a pena pedir. Na verdade, ela tem tudo de que precisa: paralisada e solitária, a camponesa outrora bela, jovem e ativa, com a vida pela frente, preenche o tempo ouvindo os barulhos da natureza e dos animais, deleitando-se com a mudança das estações e observando o comportamento dos seres vivos ao seu redor.

    Sem desejar nada que esteja fora do seu alcance e sem revoltar-se com o destino cruel que lhe foi reservado, de morrer sozinha, sem marido e sem filhos, Lukéria só pede uma coisa ao narrador-caçador: que ele convença a mãe dele que diminua os impostos que os mujiques pagam. O patrão promete que vai falar com a mãe, mas ao final do conto ele só nos informa que Lukéria morre algum tempo depois, mas não nos diz se de fato ele falou e se de fato a mãe diminuiu a carga de tributos sobre os pobres camponeses. Aí está a habilidade de Turguêniev: ao criar um patrão que mostra empatia, mas que jamais passou pelas tribulações por que passam os camponeses, contrapondo-o a uma mujique cuja enorme força espiritual é proporcional ao seu martírio em vida, o autor de Memórias de um Caçador não doura a pílula. Os patrões gozam da posição privilegiada de poderem ser bondosos e simpáticos, justamente porque jamais terão que trocar de papeis com seus mujiques, que carregam o fardo das injustiças e dos sofrimentos com a resignação que lhes é esperada, mas que no final das contas é a única alternativa possível em não havendo mudança nas condições sociais e econômicas.

    Prezados leitores, de Diógenes, um banqueiro falido de Sinope, na atual Turquia, a Lukéria, a camponesa russa criada por Turguêniev para mostrar o flagelo da servidão e a dignidade de pessoas que apesar de tudo aproveitam ao máximo as migalhas que a vida lhes dá, há um hiato de mais de 2.000 anos que não faz perecer os ensinamentos éticos dos cínicos. Ao contrário, livres das reviravoltas que a metafísica deu ao longo da História Ocidental, passando pela filosofia grega, pelo cristianismo, pela Revolução Científica, pelo Iluminismo e por nosso mundo pós-moderno e pós cristão, tais ensinamentos servem de guia para a vida e de chave para entender as nuances da descrição que o autor de Memórias de um Caçador nos legou sobre o que era ser na prática ser oprimido sob a servidão.

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O círculo

O círculo é o convívio preguiçoso e indolente ao qual se dá significado e aspecto de algo racional; o círculo substitui a conversa pelo debate, acostuma à tagarelice infrutífera, distrai do trabalho solitário e benéfico, inculca a sarna da literatura; e é claro que priva do frescor e da força virgem da alma. O círculo é torpeza e tédio sob o nome de fraternidade e amizade, a união do equívoco e da pretensão sob pretexto de franqueza e colaboração; no círculo, graças ao direito dado a todo participante de enfiar os dedos sujos no interior de seu camarada em qualquer hora ou ocasião, não sobra lugar limpo ou intacto na alma de ninguém; no círculo são reverenciados os de lábia vazia, os sabichões cheios de si, os velhos antes do tempo, elevam os versejadores sem talento, mas com ideais “ocultas”; no círculo, jovenzinhos de dezessete anos falam de mulheres e de amor com astúcia e sofisticação, mas quando estão diante delas, ficam calados, ou se expressam como nos livros – e do que falam! No círculo floresce a eloquência artificial; no círculo um vigia o outro como policial…

Trecho retirado do conto “Hamlet do distrito de Schigrí” incluído no livro de contos Memórias de um caçador, do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883)

Em 1879, Turgueniêv foi chamado de “paladino da liberdade” ao receber o título de doutor honoris causa, em Oxford. Em ensaio do mesmo ano, Henry James saúda-o como ”the novelist’s novelist” e, para compreensão do leitor norte-americano, equipara-o a um senhor de escravos da Virgínia ou da Carolina que tivesse adotado pontos de vista “nortistas”. James compara a relevância das Memórias para o fim da servidão na Rússia cm o papel de A cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe (1852), na abolição da escravidão no EUA, “com a diferença, contudo, de não ter produzido agitação na época – de ter, em vez disso, apresentado o caso como uma arte insidiosa demais para reconhecimento imediato, uma arte que mexia mais com as profundezas que com a superfície”.

Trecho retirado do posfácio da edição brasileira de Memórias de um caçador, escrito pelo tradutor, Irineu Franco Perpétuo

    Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre os sofistas gregos e seu papel fundamental no desenvolvimento da democracia grega, para o bem e para o mal, isto é, tanto contribuindo para dar uma voz articulada e convincente aos que defendiam os interesses do povo na Assembleia, quanto para dar a oportunidade a políticos ambiciosos e imorais de apresentar seus interesses particulares com um verniz de racionalidade que acabava levando os cidadãos a fazer escolhas que em última análise contrariavam seus interesses. Para o filósofo Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), o problema da democracia é que ela acaba sendo dominada pelos políticos, e não pelo povo.

    Nesta semana, meu foco não será na influência da filosofia, mas da literatura, sobre a vida política. O livro do qual foi retirado o trecho acima foi considerado tão subversivo que o autor ficou um mês preso em São Petersburgo e depois foi mandado para Spasskoye, em uma espécie de exílio interno como punição por ter criticado a servidão. Meu objetivo aqui será humildemente mostrar porque Memórias de um Caçador tem esse poder.

    Turguêniev não expõe em nenhum dos 25 contos do livro uma filosofia política ou econômica, quer seja a defesa de uma maior participação do povo nas decisões sobre o destino da nação, ou a defesa de uma redistribuição da riqueza. Longe disso, como bem define Henry James no trecho que abre este artigo, o caçador, que narra suas experiências de vida e seus encontros com mujiques e com outros proprietários de terras e donos de mujiques como ele, é um nobre que vive a vida de um membro da sua classe: diverte-se caçando no verão, compra cavalos, frequenta a casa de outros nobres, participa de festas e banquetes.

    Por outro lado, embora legítimo representante do círculo de bem nascidos, o caçador-narrador é um observador que sai da sua redoma, vê o que acontece com as pessoas, as ouve e tem uma profunda simpatia por elas como seres humanos, simpatia esta que ele demonstra rememorando seu encontro com elas, os desejos, frustrações e sentimentos que elas expressaram ou que elas mostraram em determinado momento.

    Assim é que em “O encontro”, o caçador flagra uma bonita camponesa colhendo flores para dar ao seu amado. Seu nome é Akulina e ela é apaixonada por um mordomo, Viktor Aleksándritch, que a trata com arrogância e desprezo. Viktor recebe o humilde presente de mal grado, e como as flores só têm valor estético e não monetário, ele as joga fora, pois não quer identificar-se com a pobreza de Akulina. O narrador, testemunha involuntária da interação do casal por estar no campo descansando, percebe o quanto a moça sofre com a indiferença do mordomo, que está prestes a seguir seu patrão para Moscou. Ele vê beleza e pureza de sentimentos na camponesa e quando Viktor vai embora, surdo às súplicas da amada, o caçador colhe flores e as oferece à moça, para consolá-la.

    Em outro conto, o narrador serve de confessor a um homem que se encontra em uma casa de posta, Piotr Petróvitch Karataíev, que vive durante um tempo em mancebia com Matriona Fiódorovna. Ele tenta comprá-la de sua patroa, Mária Ilínitchna mas esta, uma velha rabugenta, não admite vendê-la porque para ela alforriar servos é “indecoroso”, “é a desordem”. Depois de frustrada sua tentativa e incapaz de tomar a decisão de casar com a moça, Piotr vive com Matriona às escondidas até que a serva é descoberta e levada de volta à patroa. Cabe ao leitor do conto imaginar o que deve ter sido a vingança de Mária Ilínitchna contra a moça que tentou ser dona do seu humilde destino. Piotr conta sua história ao narrador porque a culpa lhe pesa, mas fica claro que se a história se repetisse ele seria o mesmo covarde e desastrado e causaria a ruína da mujique novamente, porque essa é a sua personalidade.

    O primeiro trecho que abre este artigo é de autoria de um nobre falido, cujo nome não é mencionado, mas que calha de estar hospedado na mesma casa que o narrador e de estar dormindo no mesmo quarto de hóspedes. Ele precisa desabafar com alguém e mais uma vez o narrador é escolhido para escutar um drama humano: herdeiro de uma propriedade, o Hamlet do conto frequenta a universidade em Moscou e lá entra no grupo de membros da elite que adquirem um verniz de educação que lhes serve para pertencer ao círculo, isto é, para distingui-los da massa de servos porque conseguem citar um ou outro autor importante e falam sobre literatura mostrando que são refinados. Ao mesmo tempo, pertencer ao círculo é pertencer a um grupo de pessoas que se perde em argumentos retóricos tirados de pensadores europeus que elas sabem – conforme o próprio nobre confessa ao caçador-narrador, jamais serão aplicados para analisar a realidade da Rússia e aplicar o conhecimento e a ciência à vida dos russos.

    Daí o caráter insidioso da arte de Turguêniev: ao mostrar um momento na vida de mujiques e senhores de terra, ele expõe as injustiças sociais de maneira flagrante, porque recorta da rotina de ambas as classes um instante em que a verdade sobre a natureza das relações sociais em uma sociedade de senhores e servos é revelada: aquele em que o servo é tratado como objeto do qual o patrão põe e dispõe, aprisionando-o e destruindo-lhe os sonhos, como no caso de Matriona, ou aquele em que o nobre se compraz em depreciar-se como o Hamlet de Schigrín, que sabe ter nascido em berço esplêndido, e que desperdiçou sua vida por preguiça e indolência não fazendo nada nem por si nem pelos outros, mas consegue ir vivendo porque suas faltas lhe são facilmente perdoadas.

    Não é de estranhar que aquele cotidiano retratado por Turguêniev, feito de pequenas crueldades, covardias, gestos prepotentes, condescendência e racionalizações sobre a ordem e o amor do pai aos filhos, tenha tido o efeito de chamar a atenção da sociedade russa sobre a servidão e suas mazelas. A descrição do autor de Memórias de um Caçador da vida como ela era prescindia de grandiosos discursos políticos ou econômicos sobre as virtudes da liberdade. Bastava que o gênio do autor fizesse o leitor sentir o que sentiu Akulina ao ser preterida pelo amor da sua vida por ser serva ou o que Matriona sentiu ao ser devolvida à patroa para que a literatura fosse mais do que sinal distintivo de pertencimento ao círculo dos privilegiados e se transformasse em instrumento de conscientização moral.

    Prezados leitores, nem só de ideias se fazem as transformações sociais e políticas. Como mostra a influência da obra de Turguêniev sobre o movimento de emancipação dos servos na Rússia do final do século XIX, basta romper a bolha do círculo e fazer cada indivíduo encontrar-se com a humanidade que há em todos nós.

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Rupturas

[…] e a Igreja Cristã considerou prudente, no quinto século de nossa era, associar os resquícios desse culto a Maria, e transformar o festival da colheita que celebrava a deusa Ártemis e era realizado em meados de agosto na festa da Assunção. Dessa maneira, o velho é preservado no novo, e tudo muda, exceto a essência. A história, como a vida, deve ser contínua, sob pena de morrer; o caráter e as instituições podem ser alterados, mas de maneira lenta; uma grave interrupção do seu desenvolvimento joga-as na amnésia e na insanidade nacionais.  

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Em 18 de setembro, d. Pedro e José Bonifácio assinaram e rubricaram diversos decretos instituindo a nova bandeira e o novo brasão de armas, que levava as cores verde, da casa de Bragança, e amarela, da casa dos Habsburgo. O desmonte histórico praticado pelos republicanos recodificaria essas cores e as transformaria no verde de nossas matas e no amarelo de nosso ouro, nossa riqueza.

Trecho retirado do livro “D. Pedro – A História não Contada” de Paulo Rezzutti

 

“Se fôssemos um país institucionalmente maduro, aprimoraríamos o modelo,” afirma Lazzarini. “Ao invés disso nós o jogamos fora.”

Trecho retirado do artigo sobre corrupção e crime no Brasil intitulado “Voltando Atrás”, publicado na revista The Economist de 5 de junho de 2021

    Prezados leitores, uma característica marcante da história da civilização escrita por Will Durant da qual “The Life of Greece” é o segundo volume, é que na parte final de um capítulo sobre alguma corrente política ou religiosa, sobre algum artista, filósofo ou estadista, sobre um tema qualquer Durant sempre faz uma avaliação do legado deixado na história de tal corrente, pessoa ou tema, fazendo uso do conhecimento que ele tem do que aconteceu depois, especialmente na parte Ocidental do mundo, seu foco pelo fato de a ela pertencer não só ele mesmo como a maior parte de seus leitores. O seu capítulo sobre a religião na Grécia concretiza tal método, pois nele o historiador e filósofo americano dá inúmeros exemplos de como as práticas religiosas gregas foram sub-repticiamente incorporadas ao Cristianismo, que acabou se tornando a religião dominante no Ocidente.

    Conforme explicado no trecho que abre este artigo, o culto da fertilidade e do poder da fêmea reprodutora estava presente na Grécia em festivais que celebravam Ártemis ou Diana, a Deusa da caça. De maneira muito hábil, a igreja incorporou esses rituais que se repetiam desde tempos imemoriais dando-lhes uma nova roupagem na figura da mãe de Cristo, tornando assim a nova religião mais aceitável a pessoas que pertenciam a sociedades não judaicas.

    A própria história de Jesus Cristo, do filho de Deus que é ele mesmo divino e que é sacrificado e renasce, deve muito às concepções da seita filosófico-religiosa do Orfismo. Na descrição de Durant, Cristo é o herdeiro místico do Deus Dionísio, pois este também morreu e ressuscitou: filho de Zeus e de sua filha Perséfone, Dionísio, que em sua primeira vida era chamado de Zagreus, foi esquartejado e fervido pelos Titãs. Atenas salvou o coração de Dionísio e o entregou a Zeus que o deu a Semele, a qual o gestou e deu-lhe uma segunda vida, na qual ele passou a ter o nome pelo qual nós o conhecemos em contraposição a Apolo, o Deus da luz e da razão.

    A lição que fica é que o Cristianismo foi tão bem-sucedido porque os Pais da Igreja souberam amalgamar as várias concepções filosóficas então correntes no mundo do Mediterrâneo dando-lhes nova roupagem para adaptá-las às condições do momento, em que a civilização grega tinha se tornado coisa do passado, mas ao mesmo tempo preservando a continuidade cultural de modo que a nova religião não fosse uma violência contra práticas arraigadas. Em suma, construir o novo sobre as bases do passado de modo que a história adquira um sentido para as pessoas que a estão fazendo no calor do momento.

    Sob essa perspectiva, longe de desmerecer o Cristianismo por tirar-lhe o ineditismo e relativizá-lo, a contextualização feita por Durant serve para realçar o fio condutor da história da civilização, qual seja, a necessidade do homem de lidar com os mistérios do mundo por meio de mitos, rituais e sacrifícios e em fazendo-o achar um senso de direção para seu próprio percurso individual. Ao vislumbrar um fim para a jornada, com base na experiência dos que viveram antes dele, o homem, enquanto ser social, consegue criar a cultura e a civilização, conectando o passado, o presente e o futuro num todo consistente. Na visão de Durant, conforme explicada no trecho reproduzido acima, o perigo do esquecimento e da ruptura total é a insanidade e a destruição das instituições: a vida experimentada pelo homem perde o significado e as instituições que expressam esse significado tornam-se vazias de conteúdo.

    Prezados leitores, esse introito explicando o paralelismo traçado pelo filósofo americano entre a religião na Grécia e o Cristianismo serve para inspirar-me a tirar uma lição dessa ênfase na continuidade como pré-condição para a criação. Dois exemplos tirados da história do Brasil mostram nossa falha nesse quesito.

    O primeiro é o da ruptura que a República deliberadamente realizou em relação ao Período Monárquico do Brasil. O desmonte histórico a que Rezzutti refere-se não é simplesmente uma nova roupagem que se deu a uma instituição antiga, como Maria foi a nova versão de Ártemis, símbolo da feminilidade, e Jesus Cristo foi a nova versão do Deus imolado e ressuscitado Dionísio. A história que passou a ser contada após 1889 sobre a origem das cores da bandeira brasileira é simplesmente mentirosa e teve por objetivo fazer os brasileiros esquecerem que tiveram dois imperadores e que bem ou mal o Estado brasileiro havia sido fundado e tivera seu imenso território consolidado por um regime monárquico.

    O segundo exemplo é mais recente e diz respeito à Operação Lava-Jato de luta contra a corrupção engendrada pelas relações promíscuas entre os políticos e o empresariado. Conforme explicou Sérgio Lazzarini à revista The Economist, os excessos persecutórios dos procuradores e juízes da Lava-Jato levaram a muitas decisões injustas e ilegais. No entanto, ao invés de preservarmos o legado do esforço em punir as práticas de pagamento e recebimento de propina e fazermos correções de rumo, simplesmente optamos em jogar a Lava-Jato pela janela, como se tudo que ela tivesse feito tenha sido execrável.

    Num e noutro caso, nossa opção pela ruptura nos fez perder o senso de direção. Não reconhecendo os méritos da Monarquia, a República brasileira incorreu em erros, tais como o excesso de intervencionismo militar na vida política, que teriam sido evitados se os Republicanos tivessem tirado lições do exercício do Poder Moderador por D. Pedro II. Quanto ao desmonte da Lava-Jato, ainda é muito cedo para julgarmos os efeitos que isso trará para a vida pública brasileira, mas certamente a perda do efeito dissuasório que ela trouxe fará com que os políticos e empresários amigos do poder continuem realizando as práticas que tornam a democracia sinônimo de conchavos e de esquemas para a grande maioria da população brasileira.

    Prezados leitores, o resumo da ópera é este: preservar as instituições e atualizá-las para mais bem fazê-lo é garantir as bases para a construção da ordem social. Insistir sempre na ruptura sob o pressuposto de que o novo é sempre melhor só nos leva a dar passos em falso e ficar sem rumo. Oxalá um dia consigamos aprender a lição.

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Vanity Fair

Eu acredito que o remorso é o menos ativo de todos os sentidos morais do homem – o que mais facilmente pode ser morto quando despertado; e em algumas pessoas nunca é despertado. Nós lamentamos sermos descobertos e a ideia da vergonha ou da punição, mas o mero senso de transgressão faz muito poucas pessoas infelizes na Feira das Vaidades.

Trecho retirado do livro “Fogueira das Vaidades” de William Tackeray (1811-1863), jornalista e escritor nascido em Calcutá, Índia e radicado na Inglaterra

 

Se ele não fosse um grande príncipe, possivelmente muito poucos o teriam visitado, mas na Fogueira das Vaidades os pecados de grandes personagens são vistos com um olhar indulgente.

Trecho retirado do livro “Fogueira das Vaidades” de William Tackeray (1811-1863), jornalista e escritor nascido em Calcutá, Índia e radicado na Inglaterra

Vocês gostam é do bem duro, né? Ninguém é de ferro

Trecho de vídeo em que o médico e influenciador digital brasileiro Victor Sorrentino faz brincadeira com uma vendedora em Luxor, no Egito, comparando o papiro duro e comprido vendido na loja ao órgão sexual masculino

 

Eu estou gravando este vídeo para pedir desculpas […] Para deixar claro que tenho o maior respeito pelo povo egípcio em geral, especialmente as mulheres egípcias

Trecho de vídeo gravado pelo médico ao lado da vendedora que foi objeto da sua brincadeira depois de passar alguns dias na prisão no Egito, acusado de assédio sexual

 

   Prezados leitores, na semana passada eu usei um trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, para exemplificar o comportamento dos membros das nossas elites em relação aos negros. O objetivo era mostrar como os grandes escritores em seus exercícios de imaginação revelam a essência da realidade. Inspirada pela leitura do bruxo do Cosme Velho, eu fiz uma previsão errada: acreditei que Eduardo Pazuello, aquele que fez um soldado negro puxar uma carroça em 2005 e em 2021 participou de um ato político ao lado de Jair Bolsonaro em sendo general da ativa, seria de alguma forma punido, mesmo que fosse punição de fachada.

    Nem isso ocorreu: ao contrário de Brás Cubas que era repreendido pelo pai na frente de todos quando era cruel, sádico ou traquinas, e às escondidas recebia a admiração do pai por sua demonstração de energia, Pazuello foi oficial e escancaradamente perdoado em 2021 como havia sido perdoado em 2005, porque suas explicações foram aceitas de maneira benevolente pelo Exército tanto no passado como agora. Daí que nesta semana, procuro um outro escritor que explique para mim esses desdobramentos, porque talvez Machado de Assis não dê conta de todas as nuances da realidade brasileira do século XXI. E o escritor por mim escolhido é William Thackeray, que chegou a ser considerado pelos críticos melhor que Charles Dickens. Eu o escolho por causa de sua obra Vanity Fair, que ele publicou em capítulos entre 1847 e 1848 e o alçou à fama. Como mostram os trechos citados na abertura deste artigo, Tackeray usa Vanity Fair como uma expressão para referir-se à sociedade do seu tempo, seus usos e costumes, de maneira irônica e reveladora. À época em que se passa a história, no chamado período da Regência no Reino Unido, de 1795 a 1837, as relações sociais eram estabelecidas fisicamente em jantares, festas, passeios de carruagem no parque.

   Atualmente a Vanity Fair desenrola-se virtualmente nas mídias sociais: é lá que as pessoas se encontram, conversam, trocam elogios e insultos. Por isso, para adaptar as observações de Tackeray à nossa realidade do século XXI, é preciso voltar os olhos para o que se passa lá. Nesta semana que passou o incidente envolvendo o médico Victor Sorrentino, brasileiro que estava em férias no Egito e que tem mais de um milhão de seguidores, pode ser entendido aplicando o conceito de que somos seres sociais, participantes desta Feira das Vaidades e que estamos sempre desempenhando um papel.

    Para um médico as mídias sociais são um bom canal de divulgação: eles podem postar conteúdos sobre saúde e caso sejam seguidos recebem um dinheiro de acordo com o número de curtidas que recebem. E para manter a atenção dos seguidores é preciso postar novidades o tempo todo. Nada mais natural que estando num país exótico como o Egito das pirâmides, Victor Sorrentino procurasse explorar a oportunidade. Afinal, exagerar no conteúdo técnico sobre medicina pode cansar a mente dos internautas cuja capacidade de atenção é cada vez menor. É preciso variar. Por que não um vídeo em que o médico grava uma pegadinha com uma incauta vendedora que não fala nada de português – e portanto não entenderia as piadas – e deixaria que a historinha se desenrolasse de maneira autêntica?

   Assim o Sr. Sorrentino fez, com a ajuda de um amigo. Enquanto a vendedora, de lenço nos cabelos como boa muçulmana, fazia a demonstração do produto vendido, o papiro, Victor e seu colega de gravação comparavam o comprimento e a dureza do dito cujo com a preferência das mulheres por determinado tipo de órgão sexual masculino. Tudo muito engraçado, especialmente porque a vendedora desempenhava o seu papel de fazer a demonstração das qualidades do papiro sem saber que também demonstrava as qualidades que toda mulher, de acordo com os ensinamentos do médico brasileiro, procuram no homem.

    O que o doutor não podia prever é que haveria brasileiros que moram no Egito e que traduziram a pegadinha do papiro-pênis ou do pênis-papiro para o árabe, o que permitiu que as autoridades egípcias ficassem sabendo e enquadrassem a conduta de Victor como assédio sexual, o que o levou à prisão, já que ele mesmo fez prova contra si. Depois de alguns dias, o médico gaúcho foi solto, provavelmente depois de pagar uma bela propina, considerando que o Egito está na posição 117 de 180 países relacionados no Índice de Corrupção da Transparency International, com 33 pontos, ao passo que o Brasil está na posição 94, com 38 pontos. E mais, ele seguiu o ritual da Vanity Fair do século e pediu desculpas às mulheres egípcias, a quem ele respeita muito.

    Aqui a sabedoria de Tackeray vem a calhar, conforme mostrada na abertura deste artigo. Será que a retratação e a gravação do vídeo fazem parte do acordo com as autoridades egípcias para ele ser solto ou ele realmente arrepende-se do que fez? E se ele se arrepende, será que é porque foi pego em flagrante delito e passou um medo danado em uma prisão egípcia? Ou será que esse respeito que ele afirma ter pelas mulheres faz apenas parte do ritual a ser cumprido para ele não ser defenestrado das redes sociais e perder sua fonte de receitas? O mínimo que se pode dizer sobre seu comportamento é que ele não tem sensibilidade nenhuma em relação às diferenças culturais e de costumes de países muçulmanos, ou talvez seja totalmente ignorante sobre o que significa ser uma mulher em um país muçulmano e sobre o que uma mulher muçulmana almeja na vida, o que é muito diferente do que uma mulher sexualmente liberada e empoderada do Ocidente almeja.

    No final das contas, o episódio pode ter sido vantajoso para Sorrentino para aumentar seu público de seguidores. Teve sorte de ter feito uma pegadinha no Egito, um país em que o turismo reponde por 11% do PIB e que emprega 12% da força de trabalho do país. Talvez se ele tivesse gravado esse vídeo em países do Golfo Pérsico, como Arábia Saudita ou Emirados Árabes que nadam de braçada em petrodólares, a pena teria sido mais severa. Para voltar a ser membro atuante na Vanity Fair do século XXI bastou ao médico desempenhar em frente às câmeras o papel de homem contrito respeitador do povo egípcio e de suas mulheres. E como ensinou Tackeray há mais de 170 anos, perdoa-se mais facilmente a um indivíduo poderoso como ele, com um milhão de seguidores, assim como perdoou-se ao grande Pazuello os pecadilhos de humilhar um soldado negro e de servir de cabo eleitoral de Bolsonaro na qualidade de membro da ativa do Exército.

    Prezados leitores, tanto o general quanto o doutor continuarão a desfilar pela Feira das Vaidades, cada qual ao seu modo: Pazuello mostrando sua reconhecida competência em gestão e logística que demonstrou quando esteve à frente do Ministério da Saúde, Sorrentino sua reconhecida competência nos meandros da sexualidade feminina. Sejamos indulgentes com a fina flor das nossas elites porque elas têm muitos produtos a mostrar na Vanity Fair.

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