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De Diógenes a Lukéria

Posted by on 21/09/2021

Mas meu querido patrão, quem é que pode ajudar o próximo? Quem consegue penetrar em sua alma? A pessoa tem de ajudar a si mesma!

Trecho retirado do conto “Relíquia Viva” incluído no livro de contos Memórias de um caçador, do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883)

 

A metafísica parecia também aos Cínicos um jogo vão; deveríamos estudar a natureza não para explicar o mundo, o que é impossível, mas de forma que possamos aprender a sabedoria da natureza como um guia para a vida. A única filosofia verdadeira é a ética. O objetivo da vida é a felicidade, mas será encontrada não na busca pelo prazer, mas em uma vida simples e natural, independente tanto quanto possível de todas as ajudas externas.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Era uma espécie de atitude oportunista em relação à vida, pegando com ambas as mãos as coisas quando estavam disponíveis, e ao mesmo tempo não reclamando quando os tempos eram de vacas magras, aproveitando a vida quando ela podia ser aproveitada, mas aceitando os caprichos da fortuna com um dar de ombros. É a partir dessa elaboração da doutrina que a palavra “cínico” adquiriu seu sentido pejorativo.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” do matemático e filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970)

    Prezados leitores, há duas semanas eu abordei a escola de pensamento dos sofistas da Antiga Grécia e tentei mostrar como eles plantaram a semente da dúvida sobre a possibilidade de explicações cosmológicas sobre a origem do mundo e sobre a existência dos deuses, considerando-as abstrações vagas, e propondo a retórica como um exercício de argumentação válido porque útil para agir na sociedade. Na semana passada, meu foco foi o escritor russo Ivan Turguêniev, mostrando exemplos do retrato que ele nos dá sobre a vida de servos e senhores na Rússia do século XIX. Nesta semana meu objetivo será valer-me dos ensinamentos de Will Durant sobre a escola de pensamento dos cínicos para mostrar o poder de Memórias de um Caçador no despertar da consciência dos russos sobre o que era a vida dos mujiques.

    Segundo Durant, depois que os sofistas abriram a porteira das especulações sobre se era válido falar sobre aquilo que estava além dos sentidos do homem (a metafísica), surge para a filosofia grega do século IV antes de Cristo um leque de possibilidades, dentre elas a visão dos cínicos, cujo grande expoente foi Diógenes (404 ou 412 a.C. – 323 a.C.). Conforme o autor de “The Life of Greece” explica no trecho que abre este artigo, para os cínicos a única investigação filosófica válida era sobre a ética. A metafísica não levava a nada, pois o homem jamais conseguiria explicar o mundo. A razão humana seria mais bem empregada se ela estabelecesse as regras do bem viver, e viver bem nada mais era do que aproveitar aquilo que a vida nos dá, o que não é muito, pois estamos sujeitos a forças que não podemos controlar nem entender, mas pode ser o suficiente se agirmos de forma a diminuir o sofrimento renunciando à busca desenfreada pelo prazer e contentando-nos com prazeres simples que para se concretizarem só dependem da ação individual, e não de o homem contar com uma confluência favorável de fatores externos a ele. Não admira que os herdeiros dos cínicos tenham sido os estoicos, que floresceram no período helenístico (323 a.C.-146 a.C.) e pregavam a coragem ante a adversidade e o perigo, e o desapego aos bens materiais, para não falar dos monges do Egito no início do cristianismo.

    Paciência para saber que não há mal que sempre dure e bem que nunca termine, força moral para seguir seus princípios sabendo que a virtude é sua própria recompensa, independentemente da existência de uma justiça divina. Diógenes estabeleceu as linhas mestras de uma ética que surgida na Grécia impregnará a religião cristã. É neste ponto que entra a personagem Lukéria, cujas palavras ao narrador-caçador, já descrito na semana passada neste meu humilde espaço, abrem este artigo.

    O narrador-caçador encontra Lukéria por acaso. Pernoitando em um sítio de sua mãe, ele passeia pelo jardim de manhã e acaba chegando a um galpão de vime, onde fica uma camponesa que tem ao redor de 28 anos. Devido à cor lívida da sua pele, ao pouco cabelo e à magreza o narrador não reconhece Lukéria que outrora fez parte da juventude do patrão, pois ela era então bonita, roliça, dançava bem e tinha uma grande alegria de viver. Depois de reconhecê-la por ela ter falado quem era, o filho e herdeiro da patroa, mostrando sempre a empatia pelo sofrimento alheio, ouve pacientemente a história da mujique.

    Sua saúde deteriorara-se depois que ela, estando prestes a casar-se, caiu de uma ribanceira e algo partiu dentro dela, levando-a a definhar a tal ponto que não consegue mais se movimentar. Lukéria passa 24 horas por dia dentro do galpão, dependendo de pessoas caridosas que lhe levem alguma comida. O patrão, bondoso, pergunta o que ele pode fazer por ela e se não seria o caso de chamar um médico para minorar-lhe o sofrimento. Lukéria responde – cinicamente, estoicamente ou de maneira cristã que só Deus sabe do que ela precisa, e por isso não vale a pena pedir. Na verdade, ela tem tudo de que precisa: paralisada e solitária, a camponesa outrora bela, jovem e ativa, com a vida pela frente, preenche o tempo ouvindo os barulhos da natureza e dos animais, deleitando-se com a mudança das estações e observando o comportamento dos seres vivos ao seu redor.

    Sem desejar nada que esteja fora do seu alcance e sem revoltar-se com o destino cruel que lhe foi reservado, de morrer sozinha, sem marido e sem filhos, Lukéria só pede uma coisa ao narrador-caçador: que ele convença a mãe dele que diminua os impostos que os mujiques pagam. O patrão promete que vai falar com a mãe, mas ao final do conto ele só nos informa que Lukéria morre algum tempo depois, mas não nos diz se de fato ele falou e se de fato a mãe diminuiu a carga de tributos sobre os pobres camponeses. Aí está a habilidade de Turguêniev: ao criar um patrão que mostra empatia, mas que jamais passou pelas tribulações por que passam os camponeses, contrapondo-o a uma mujique cuja enorme força espiritual é proporcional ao seu martírio em vida, o autor de Memórias de um Caçador não doura a pílula. Os patrões gozam da posição privilegiada de poderem ser bondosos e simpáticos, justamente porque jamais terão que trocar de papeis com seus mujiques, que carregam o fardo das injustiças e dos sofrimentos com a resignação que lhes é esperada, mas que no final das contas é a única alternativa possível em não havendo mudança nas condições sociais e econômicas.

    Prezados leitores, de Diógenes, um banqueiro falido de Sinope, na atual Turquia, a Lukéria, a camponesa russa criada por Turguêniev para mostrar o flagelo da servidão e a dignidade de pessoas que apesar de tudo aproveitam ao máximo as migalhas que a vida lhes dá, há um hiato de mais de 2.000 anos que não faz perecer os ensinamentos éticos dos cínicos. Ao contrário, livres das reviravoltas que a metafísica deu ao longo da História Ocidental, passando pela filosofia grega, pelo cristianismo, pela Revolução Científica, pelo Iluminismo e por nosso mundo pós-moderno e pós cristão, tais ensinamentos servem de guia para a vida e de chave para entender as nuances da descrição que o autor de Memórias de um Caçador nos legou sobre o que era ser na prática ser oprimido sob a servidão.

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