Sobre crocodilos e o que eles comem

A meu ver, Ivan Matviéitch, como um verdadeiro filho de sua pátria, deve ainda alegrar-se e orgulhar-se com o fato de ter duplicado, ou talvez triplicado, com a sua pessoa, o valor de um crocodilo estrangeiro. Isto é necessário para atrair os capitais.

Isto é necessário para atrair os capitais.Trecho do conto “O Crocodilo” de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) sobre um funcionário público que é engolido por um crocodilo que estava sendo exibido em São Petersburgo

Dos 535 membros da Çâmara dos Representantes e do Senado, 530 votaram a favor de um projeto de lei que viola a separação dos poderes e impede o Presidente Trump de suspender as sanções contra a Rússia. Como a votação foi tão acachapante que impede o veto, a Casa Branca anunciou que Trump vai sancionar a lei, assim rendendo-se e abandonando seu projeto de restabelecer relações normais com a Rússia. A Casa Branca acredita que o projeto de lei está à prova de vetos, tudo o que Trump conseguiria vetando-o seria provar as acusações de que é um agente russo e que está usando seu cargo para proteger a Rússia, o que facilmente poderia levar a um processo de impeachment.

Trecho do artigo “As Escolhas de Trump” de Paul Craig Roberts, ex-subsecretário do Tesouro dos Estados Unidos de 1981 a 1982

    Prezados leitores, se quiserem rir um pouco leiam o conto O Crocodilo. Nele Dostoiévski descreve as reações dos moradores da então capital da Rússia, São Petersburgo, à chegada de um crocodilo trazido por um alemão que expõe a fera em uma galeria cobrando ingresso e faturando rios de dinheiro. A história é totalmente absurda, claro, pois o funcionário Ivan Matviéitch que vai fazer umas cosquinhas no crocodilo e acaba sendo engolido não morre e continua a falar com seu amigo de repartição das profundezas de onde está.  Mas como toda boa ficção ela lança luz sobre a realidade em que vivemos e sobre a natureza humana. No caso específico desse conto, o autor mostra o deslumbramento dos russos com os avanços europeus nas ciências, na tecnologia e nos costumes, e o complexo de inferioridade que os acomete por não estarem no mesmo nível. Tamanho é o complexo que ninguém vê nada de ruim no fato de o pobre Ivan permanecer na barriga do crocodilo e até achar vantagem nisso, como sinal de o progresso estar chegando nas estepes. Em muitas das obras de Dostoiévski há o embate entre os eslavistas, que queriam manter-se fiéis às tradições da Rússia, e os integracionistas, que queriam que o país se tornasse mais europeu.

    Essa discussão sobre que rumo tomar enquanto nação pode parecer ultrapassada, mas considerando que há exatos 100 anos, em 1917, os russos decidiram importar as ideias de Karl Marx e colocá-las em prática, o que repercutiu no mundo todo ao longo do século XX e ainda repercute no século XXI, falar sobre modismos crocodilianos parece mais pertinente do que nunca. Não há dúvidas de que estamos em plena Segunda Guerra Fria entre as potências nucleares. A primeira acabou em 1989 quando o Presidente Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev se entenderam sobre o desmantelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sobre a reunificação da Alemanha e sobre a emancipação dos países do Leste Europeu do jugo comunista. O toma lá dá cá, que valeu com Reagan e com seu sucessor George H. W. Bush, que foi presidente dos Estados Unidos de 1989 a 1993, era de que não haveria expansão da OTAN no Leste Europeu e de que os Estados Unidos respeitariam a zona de influência da Rússia.

    Desde o governo de Bill Clinton, passando por George Bush filho e por Barack Obama, não houve cumprimento do pacto por parte dos americanos. A Sérvia, histórica amiga da Rússia, foi bombardeada pela OTAN para que fosse criado o Kosovo na década de 1990. A OTAN expandiu-se para incluir países como Albânia, República Tcheca, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Croácia, Montenegro, Eslovênia, Polônia e Hungria. E mais, foram instaladas bases de mísseis na Polônia, na Romênia, na República Tcheca, e em 2016 tropas foram colocadas na Estônia, Letônia e Lituânia, com a explicação de que tal mobilização de material humano era uma resposta defensiva à anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Enfim, o crocodilo chegou na tina, como havia chegado em 1865, data em que o conto de Dostoiévski foi publicado. Qual será a reação que os russos terão neste início do século XXI? Acharão o crocodilo um avanço da civilização ou decidirão rasgar-lhe a barriga para salvar o pobre russo lá dentro?

    Digo que o crocodilo chegou porque a essa altura parece claro que os Estados Unidos definitivamente querem ver a fera solta, ao impor novas sanções econômicas aprovadas por unanimidade no Congresso americano em 25 de julho. As boas intenções que Trump havia manifestado durante a campanha presidencial de 2016 de celebrar a paz com a Rússia parecem ter ficado definitivamente para trás. O que aconteceu com The Donald? Agiu como vendedor que promete algo que não pode entregar? Subestimou as resistências do complexo industrial-militar, que sempre precisa de um inimigo para justificar seus gastos estratosféricos? Escolheu mal seus assessores, que não compartilham sua agenda de colaborar com a Rússia para conseguir resolver a guerra na Síria? O fato é que o Aprendiz até agora não se mostrou à altura dos desafios que lhe foram postos desde o dia em que colocou os pés na Casa Branca. A pecha de ter sido ajudado pelos russos a ganhar a eleição o assombra e o impede de agir livremente, obrigando-o a colocar-se na defesa em relação às relações dos Estados Unidos com a Rússia e a dançar conforme a música que toca a bandados partidários da Segunda Guerra Fria . Na era dos pós-fatos, a história de que hackers russos invadiram os computadores do Partido Democrata e divulgaram fatos desabonadores sobre Hillary Clinton para facilitar a eleição do magnata do setor imobiliário colou, independentemente de qualquer evidência em contrário.

    Essas evidências em contrário chegaram dia 24 de julho, quando um grupo de ex-funcionários dos órgãos de inteligência dos Estados Unidos, denominado Veteran Intelligence Professionals for Sanity (VIPS), divulgou sua conclusão sobre o assunto depois de analisar os metadados do Guccifer 2.0, o ente cibernético que invadiu o servidor do Comitê Nacional dos Democratas. Esse grupo já publicou 50 memorandos, incluindo uma advertência em 2003 de que as informações confidenciais de que o Iraque tinha armas de destruição em massa eram fraudulentas. Segundo o VIPS não pode ter havido hackeamento, mas um vazamento realizado por alguém de dentro do Comitê, que simplesmente copiou na costa Leste dos Estados Unidos, as informações desairosas em um pen drive. Os especialistas cibernéticos chegaram a essa conclusão com base na velocidade com que as informações foram transmitidas, alta demais para que pudesse ter havido o acesso remoto de um hacker. Esse relatório de especialistas em cibernética (para quem tiver interesse, https://consortiumnews.com/2017/07/24/intel-vets-challenge-russia-hack-evidence/) enviado ao Presidente Donald Trump, não terá nenhuma repercussão, porque a história de que Trump é criatura de Putin já está consolidada.

    Prezados leitores, de acordo com o Boletim dos Cientistas Atômicos, a crescente tensão entre os dois países que têm a capacidade de destruir a vida na Terra com suas armas nucleares faz com que atualmente estejamos a dois minutos e meio da meia-noite, a hora do juízo final para nós, se houver a eclosão da Terceira Guerra Mundial, o pior índice desde a década de 80. De Donald Trump aparentemente não se pode esperar mais nada em termos de mudança dos rumos da política externa dos Estados Unidos, porque ele foi totalmente neutralizado pelos habitantes do pântano de Washington que ele prometera drenar. Quem sabe os europeus reajam a tais sanções econômicas que lhes prejudicam enormemente? Em dois de agosto, o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, afirmou que a União Europeia saberá defender seus interesses econômicos vis-à-vis os Estados Unidos. Quem sabe os europeus acordem e percebam que eles serão literalmente pegos no meio do fogo cruzado? Quem sabe eles enfrentem os Estados Unidos nessa questão? Caso os europeus permaneçam inertes só resta esperar que Putin de eslavista que é transforme-se num dócil integracionista e aceite cair na boca do crocodilo e submeter-se ao poder do Império Americano. Pois se ele não quiser cair e não se sinta confortável dentro da fera, o risco é que todos os habitantes desse lindo planeta azul acabem sendo levados de roldão. Catastrofismo de minha parte? Sim, mas se o pior acontecer não digam que uma humilde escriba não avisou.

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E o nosso Tattoo?

Assim, em que pese serem facilmente enganados, eles [os jovens] também são corajosos por causa do seu otimismo e confiança, e portanto não têm medo. Não tendo sido desgastados pela vida ou prejudicados por limitações, ele são magnânimos, que é “achar-se digno de grandes coisas, o que é característico das pessoas que nutrem grandes esperanças.” […] Presa fácil da exploração, em outras palavras por um fantasista como Corbyn que, com sua política de distribuir benesses e prometer um mundo ideal, caiu nas graças daqueles com potencial e muitas qualidades, mas nenhuma experiência (usus) ou memória (memoria), as duas qualidades que o poeta romano Lucius Afranius disse que eram os ‘pais da sabedoria’ (sapientia).

Trecho do artigo “O voto dos jovens em Corbyn” do classicista britânico Peter Jones

    Prezados leitores, aqueles que acompanham os acontecimentos internacionais sabem que no Reino Unido houve eleições em 8 de junho, convocadas pela primeira-ministra Theresa May. O objetivo dela era conquistar uma vitória esmagadora que lhe desse um mandato para negociar as condições da saída do país da União Europeia em uma posição de força. Parecia fácil a princípio, considerando que o líder do Partido Trabalhista era considerado como um aloprado, defensor do IRA, do Hesbollah e do Hamas, grupos considerados terroristas pela soi-disant comunidade internacional. Pois bem, a líder do partido Conservador deu com os burros n’água, pois levou os tories a perder 13 assentos no parlamento em relação ao que tinham antes, o que os obrigou a ter que compor-se com o Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte para formar um governo. Enquanto isso, o até então impensável Jeremy Corbyn conquistou 30 assentos no parlamento em relação ao que os trabalhistas tinham antes, o melhor desempenho do partido desde a vitória acachapante de Tony Blair em 2001.

    Como explicar a vitória de Jeremy Corbyn? Seu principal feito foi ter tocado o coração dos jovens, prometendo universidade de graça para eles. A identificação com o líder trabalhista aumentou o comparecimento às urnas dos eleitores na faixa etária de 18 a 24 anos, em que os trabalhistas deram uma lavada de 35 pontos sobre os conservadores. Além disso, a realidade econômica do país, não muito favorável aos jovens, faz com que a conversa socialista de Corbyn seja música nos ouvidos daqueles para os quais está cada vez mais difícil entusiasmar-se com o capitalismo quando não é possível ser capitalista. De fato, nos últimos 20 anos a idade média daqueles que adquirem casa própria no Reino Unido aumentou 10%, de forma que se 1994-1995 era aos 30 anos que isso ocorria, em 2014-2015 passou a ser aos 33 anos, sendo que o número de pessoas com casa própria está no nível mais baixo desde 1986.

    Esse papel surpreendente e crucial dos jovens britânicos na transformação de um político que parecia fora de compasso em um candidato factível ao posto de primeiro-ministro dá o que pensar se considerarmos o Brasil e as eleições de 2018. Atualmente a taxa de desemprego daqueles entre 18 e 24 anos está em 31,8% em nosso país, ante a média geral de 13,7% no primeiro trimestre de 2017. Essa geração já tem um nome aqui, é chamada nem-nem, formada por um contingente de pessoas que nem estuda nem trabalha. Mas vota, e pode decidir a eleição presidencial se ela for apertada como foi a de 2014, o que deixou um rastro de rancor e desejo de vingança cujos desdobramentos estamos testemunhando desde o impeachment da “pedaleira” Dilma Rousseff. Em que pese constituírem só 16% dos eleitores brasileiros, os indivíduos de 17 a 24 anos de idade, que estão sendo os mais atingidos pela recessão no país, podem, se atuarem de maneira consistente, serem os fiéis da balança eleitoral de 2018.

    Como descreveu Lucius Afranius no século I a.C., os jovens não têm experiência e nem memória e por isso não são sábios, o que os leva a serem mais propensos a encantarem-se com alguém que lhes prometa uma Ilha da Fantasia, à la Jeremy Corbyn, onde benesses são distribuídas a quem não tem. Nos Estados Unidos, nas eleições de 2016, Bernie Sanders desempenhou esse papel, conquistando a maioria dos votos dos jovens americanos (mais de dois milhões deles nas primárias) mas a máquina política capitaneada pelos Clinton passou sobre ele como um trator e destruiu suas chances de ser o candidato democrata. Quem poderá ser o Tatoo da política brasileira, o personagem que dará as boas-vindas aos hóspedes da Ilha da Fantasia? E que tipo de Ilha da fantasia ele irá prometer aos jovens brasileiros?

    Essas perguntas são pertinentes considerando as palavras de Lula, que já se lançou candidato, depreciando Jair Bolsonaro, o maior expoente da bancada da bala no Congresso brasileiro. Talvez Lula considere Bolsonaro risível considerando sua própria história de vida, sua formação política na sombra da ditatura militar, sua participação na campanha das Diretas Já em 1984. Mas quem tem até 24 anos de idade nasceu em um Brasil em que as eleições acontecem normalmente, não sendo mais novidade. Apontar o fato de que Jair Bolsonaro é claramente um defensor dos militares que estiveram no poder de 1964 a 1985 não é tão relevante para esse grupo de pessoas quanto é para aqueles que têm alguma memória do período, seja porque já eram conscientes quando João Baptista Figueiredo era Presidente da República, seja porque tiveram pais que viveram nos anos 70. Se Lula puder ser candidato em 2018 e continuar batendo na tecla de que uma de suas credenciais para ser líder do povo é ter combatido a ditadura, ele corre o risco de fazer papel de idiota para a geração dos nem-nem, cujos problemas mais prementes são a falta de oportunidade de estudo e a falta de emprego, não a falta de eleições.

    Será que Bolsonaro apelará a essa faixa etária, prometendo-lhes esquemas de facilitação do primeiro emprego, empréstimos estudantis ou cotas nas universidades públicas? Ou ele acabará focando nos eleitores entre 25 e 44 anos de idade que correspondem a 42% do eleitorado e como têm mais a perder dos que os nem-nem querem mais é segurança? Menciono Jair Bolsonaro porque ele vem viajando pelo Brasil e fazendo comícios há algum tempo, e até o momento parecer ser o fato novo das eleições do ano que vem. João Dória, o prefeito de São Paulo, tem sido inflado pela mídia como o político da eficiência administrativa, mas será que ele tem carisma suficiente para criar uma Ilha da Fantasia aos olhos dos eleitores? Até outubro de 2018 poderá surgir um Tattoo na política brasileira a partir do local mais inusitado, a depender do que ocorra na economia. O que parece certo é que os políticos que até 2014 vendiam-se como legítimos democratas que ou combateram a ditadura, como Lula, FHC, Serra, Cristovam Buarque – para mencionar alguns candidatos a presidente nos últimos anos – ou estiveram relacionados de alguma forma àqueles que combateram a ditadura, como Geraldo Alckmin, herdeiro políticos de Mário Covas, ou Aécio Neves, herdeiro político de Tancredo Neves, em 2018 terão que remodelar seus discursos se quiserem ter uma chance. Atacar Bolsonaro como fez Buarque ao chamá-lo de excrescência da democracia não fará muito sentido para brasileiros cuja experiência da democracia não foi como uma conquista longamente almejada, mas como uma condição dada em que a corrupção, a irresponsabilidade fiscal, o baixo crescimento econômico e o desemprego são atualmente as características mais marcantes.

    Prezados leitores, os detratores de Jeremy Corbyn no Reino Unido reclamam do fato de que a nova geração que se encantou com as platitudes socialistas dele não terem noção do que foi o socialismo real nos países em que foi praticado. Talvez em 2018, os jornalistas brasileiros versados na história do país estarão denunciando aqueles que elegeram para presidente um candidato que relativiza a importância da democracia, que não a coloca como bem absoluto, como tem sido feito desde que voltamos a eleger nossos representantes. Veremos se um Tattoo surgirá no nosso cenário político.

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Pós-verdades

Dinheiro é fungível e a denúncia não afirma que há um rastro financeiro entre os cofres da Petrobrás e os cofres do ex-Presidente, mas sim que as benesses recebidas pelo ex-Presidente fariam parte de um acerto de propinas do Grupo OAS com dirigentes da Petrobrás e que também beneficiaria o ex-Presidente

Trecho da sentença do juiz federal Sérgio Fernando Moro, prolatada em 12 de julho de 2017 que condenou Lula

 Este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente

Decisão prolatada em 18 de julho por Sérgio Moro rejeitando os embargos de declaração propostos pelos advogados de defesa de Lula contra a sentença que o condenou por corrupção passiva

No entanto, os especialistas estão começando a nos dizer que algo mudou nos últimos anos. Não é que os políticos pararam de mentir ou de fingir que os fatos são outros; o que ocorre é que eles começaram a falar como se não houvesse distinção entre fatos e invenções. Vivemos em um mundo da pós-verdade este é o mantra.

Trecho do artigo “Pós-verdade, pura bobagem” do filósofo inglês Roger Scruton, de 73 anos

    Prezados leitores, não posso deixar de retomar o assunto de que tratei na semana passada, e perdoem-me se insisto nisso, especialmente considerando que um grupo de juristas elaborará comentários sobre a sentença de Moro. No entanto, os efeitos dessa sentença terão repercussões ao longo dos próximos meses e certamente nas eleições presidenciais do ano que vem. Há os que comemoraram a sentença como um marco na luta contra a corrupção no Brasil, outros que a denunciaram como perseguição política contra o mais legítimo líder da esquerda brasileira. Quem tem razão aqui? Ou será que o embate Lula x Moro é um exemplo perfeito do mundo da pós-verdade, em que, como disse Nietzsche “não há fatos, mas interpretações”. Será que estamos condenados a nos dividir em guetos, os golpistas, os petistas, os que não estão nem aí, sem possibilidade de diálogo? Será que o debate político no Brasil ficará restrito a uma questão de fé? Daqueles que acreditam no Lula, que se negam a ver seus defeitos, e daqueles que consideram o Lula a encarnação de tudo o que há de ruim na política brasileira?

    A minha própria fé pessoal é que é possível e desejável chegarmos a um meio-termo. Possível se tentarmos estabelecer os fatos sobre o que aconteceu e sobre o que está acontecendo. Desejável porque, a partir da constatação dos fatos podemos projetar nossos interesses e aspirações em relação ao futuro por meio da ação política. Assim falou Aristóteles em Arte da Retórica no quarto século antes de Cristo. Não é minha intenção aqui destrinchar a sentença de Moro, o que estaria além da minha humilde capacidade jurídica. Apenas quero chamar a atenção para aquilo que atualmente é um dos principais focos da comoção e da detração dos argumentos do juiz curitibano pelos defensores de Lula.

    Não há como não concordar com Ciro Gomes, ex-Ministro da Fazenda e ex-governador do Ceará, de que não há prova cabal contra Lula. Prova cabal, para configurar o crime de corrupção passiva de maneira inquestionável, seria o recebimento de uma vantagem indevida e a realização de um ato próprio do funcionário visado pela oferta da vantagem indevida. No caso específico de Lula, não há nem um nem outro de maneira inequívoca. Não foi achada uma conta em algum paraíso fiscal em nome de Lula, cujo dinheiro tenha origem inexplicada, que possa ser atribuída a pagamento de propina. Quanto a ato próprio do cargo, se houve fraude nas licitações de contratos da Petrobrás, Lula não era diretamente responsável por tais processos.

    Daí a defesa de Lula ter apontado como um ponto fraco da decisão de 12 de julho o fato de que o algoz de Lula ter admitido que não há como afirmar que os valores obtidos pela OAS nos contratos com a Petrobrás terem sido pagos a Lula, ao menos em parte. Se houvesse tal demonstração, haveria uma clara configuração de uma vantagem recebida em troca de um contrato com uma empresa de economia mista, cujo controle acionário pertence à União, isto é, ao governo federal, à época presidido por Lula, que poderia ter exercido uma influência indevida sobre aqueles que eram diretamente responsáveis pelos processos licitatórios da estatal. Em que pese o crime de corrupção passiva ser de mera atividade, para usar o jargão jurídico, o que significa que o ato de ofício do agente público corrompido não precisa ter sido realmente praticado, é necessário “que se possa deduzir com clareza qual a classe de atos em troca dos quais se solicita ou se recebe a vantagem indevida,” conforme ensina Luiz Regis Prado, em seu Curso de Direito Penal Brasileiro.

    Por outro lado, é inegável que Moro soube fazer uso de argumentação jurídica para tornar sua condenação sustentável ante essa falta de prova cabal de que o dinheiro dos contratos da Petrobrás foram parar no colo de Lula. O fundamento ele buscou nas delações premiadas que narram a história do esquema de pagamentos realizados ao longo dos anos para políticos do PT, na reforma de um apartamento que pode ser ou ter sido de Lula bancada pela OAS e principalmente em uma quebra dos paradigmas para a configuração do crime de corrupção passiva, quebra esta que ele ajudou a introduzir em nossas terras tropicais tomando emprestado o direito americano. Se antes era preciso um ato individualizado em troca da vantagem indevida, que já houvera sido praticado ou que com toda a probabilidade seria praticado, hoje os tribunais brasileiros, aceitando os argumentos desenvolvidos por Moro em suas condenações ao longo da Operação Lava Jato, deve-se reconhecer, estão aceitando a tese de que é suficiente para caracterizar a corrupção passiva “uma pluralidade de atos de difícil individualização” conforme afirmou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Gurgel de Faria em uma decisão proferida em 17 de março.

    Em suma, Moro condenou Lula por ele ter mantido ao longo dos anos relações incestuosas com empreiteiras que prestavam serviços à Petrobras em forma de cartel ajustado entre elas e que pagavam propinas a uma rede de políticos que incluía membros do partido do Presidente. Essa é uma versão dos fatos sustentada por indícios mais ou menos fortes de que as empreiteiras faziam agrados para Lula e pela presunção de que tais agrados estavam ligados ao esquema montado dentro da Petrobrás para superfaturar contratos e financiar campanhas políticas com os valores em excesso pagos pela Petrobras. É uma história crível, levando em consideração o histórico brasileiro em matéria de licitações de obras públicas para inglês ver. Minha primeira memória a esse respeito data do governo de José Sarney (1985-1989) e a construção da Ferrovia Norte-Sul, cuja licitação foi fraudada.

    Prezados leitores, a lição que fica deste imbróglio em torno da Lava Jato é que todas as condenações da lavra de Moro foram possíveis porque ele inovou em matéria de argumentação e fundamentação jurídica, inovações essas inspiradas naquilo que aprendeu do que se faz nos Estados Unidos. Pode-se argumentar que tais novos conceitos foram especialmente tropicalizados para criminalizar a ação política do PT, e que há interesses não estritamente jurídicos por trás da condenação de Lula com base em provas não cabais e meramente indiciárias. Oxalá que as inovações jurídicas introduzidas por Sérgio Moro se consolidem nos tribunais brasileiros e não sejam um mero modismo, de forma que possam pegar peixes graúdos à direita do espectro político. Do contrário, em 2018 os ânimos estarão tão acirrados que em vez de discutirmos os problemas que nos afligem e propormos soluções para o futuro, acabaremos envolvidos em um plebiscito sobre quem é a favor ou contra Lula, o que para o país será uma desgraça.

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Crime Castigo

Basta para a configuração [do crime de corrupção passiva] que os pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam. Citando Direito Comparado, “é suficiente que o agente público entenda que dele ou dela era esperado que exercitasse alguma influência em favor do pagador assim que as oportunidades surgissem”. […] Tal compreensão é essencial em casos de macrocorrupção envolvendo elevadas autoridades públicas, especialmente quando o crime de corrupção envolve não um ato isolado no tempo e espaço, mas uma relação duradoura, o que é o caso quando o pagamento de vantagem indevida é tratado como uma “regra de mercado” ou uma “obrigação consentida” ou envolve uma “conta corrente informal de propinas” entre um grupo empresarial e agentes públicos.

Trecho da sentença do juiz federal Sérgio Fernando Moro, prolatada em 12 de julho de 2017, que condenou o ex-presidente Lula a nove anos e seis meses de reclusão, ao pagamento de reparação por danos de 16 milhões de reais e ordenou o confisco do apartamento tríplex no Guarujá

    Prezados leitores, quem há de acusar-nos de sermos uma república das bananas, onde impera a lei do caudilho de plantão? Um país em que o juiz de direito redige uma sentença de 216 páginas, em que inocenta o réu em parte e o condena em parte é certamente um Estado de Direito. Independentemente da preferência de cada cidadão brasileiro, preferência essa estabelecida a despeito de o detrator ou o defensor do fundador do Partido dos Trabalhadores ter lido ou não o cartapácio produzido pelo juiz de Curitiba, deve ser motivo de orgulho para nós que o julgador realizou seu trabalho com esmero.

    Esse esmero revela-se no modo como teceu seus argumentos com base em vários depoimentos e no cruzamento das diferentes versões, na investigação de como foi realizada a reforma do apartamento no Guarujá, e de como ele foi adquirido pelo casal Lula. Em suma, as conclusões de Moro são robustas, baseadas na instrução de um processo que ele acompanhou do início ao fim, o que permitiu que a delação premiada fosse apenas uma das peças do quebra-cabeças e não a coluna-mestra. O santo guerreiro de Curitiba respaldou-se em um leque variado de provas documentais (notas fiscais, registros de imóveis) e orais. É reconfortante saber que ele agiu como juiz, rebatendo os pontos da defesa, ponderando as provas, o que o levou a inocentar o ex-presidente da acusação de corrupção e lavagem de dinheiro relativamente ao armazenamento do acervo presidencial custeado pela empreiteira OAS. e que teve o bom senso de não decretar a prisão preventiva de Lula, considerando o clamor que isso causaria.

    De fato, Sérgio Moro parece agora menos açodado do que quando revelou o conteúdo dos telefonemas entre Dilma Rousseff e o ex-presidente, parece ter aprendido com seus erros de então e não está dando munição aos seus inimigos. Isso revela um amadurecimento da parte dele, que parecia à época em que deu combustível para o impeachment de Dilma Rousseff deslumbrado com a atenção midiática sobre a sua pessoa e extrapolou suas funções jurídicas, tecendo opiniões sobre o caso em suas mãos no Facebook, arvorando-se em defensor da democracia brasileira contra a corrupção. Esperemos que Sérgio Moro continue nesta trilha menos Ilha de Caras e mais Avenida Anita Garibaldi, 888, 2º andar, sede da 13ª Vara Federal de Curitiba.

    Por outro lado, a condenação de Lula por crime de corrupção com base em uma relação continuada de pagamentos de grupos empresariais a agentes públicos, e não em determinado ato de favorecimento do corruptor pelo corrompido, conforme a citação que abre este artigo, coloca certas questões espinhosas para nós brasileiros e nosso sistema democrático. Se a sentença da primeira instância for confirmada pelo Tribunal Regional Federal e ficar consolidado o entendimento de que basta o pagamento reiterado de dinheiro a políticos e partidos para caracterizar corrupção, porque se presume que haverá um toma lá dá cá escuso em um momento ou outro, como fica a arte de fazer política no Brasil? Como nossos candidatos a postos públicos receberão dinheiro de doadores sem risco de serem acusados de corrupção passiva? Deveremos proibir doações a políticos absolutamente? Ou deveremos permiti-las até determinado valor? Caso tomemos alguma dessas medidas isso será suficiente para que pagamentos a políticos não ocorram? E se ocorrerem, isso torna a atividade política necessariamente corrupta pelo fato de os políticos financiarem suas campanhas com dinheiro de doações? O que devemos considerar uma tentativa legítima de influenciar políticas públicas pelo financiamento da campanha de políticos e o que devemos considerar atividade de corrupção? Devemos então proibir totalmente as doações de particulares a políticos e estabelecer o financiamento público de campanhas? Será que temos dinheiro para isso e devemos gastar dinheiro com isso quando não temos nem como reajustar o benefício do Bolsa Família por falta de recursos?

    Todas essas questões são muito prementes, considerando que o nosso presidencialismo de coalisão, em vigor desde o advento da Nova República em 1985, está em frangalhos. Estamos em uma situação em que fizemos o recall de uma presidente em 2016 por meio de um doloroso processo de impedimento que deixou em muitos o gosto amargo da revanche política daqueles que perderam as eleições. Convenhamos, condenar Dilma por pedaladas fiscais em um país em que a responsabilidade pela higidez das finanças públicas é dos três poderes atuando simultaneamente foi no mínimo uma grande hipocrisia. É louvável a ideia de nos livrarmos de chefes de governo incompetentes, mas então que adotemos o parlamentarismo para que esse processo seja mais transparente e menos sujeito a críticas. Perdendo a confiança do parlamento, o primeiro-ministro seria defenestrado sem que houvesse margem para disputas jurídicas que levem a uma influência excessiva do Judiciário no processo político brasileiro, o que a meu ver não é boa para tentarmos aumentar a credibilidade e a relevância do Legislativo.

    A esse respeito, essa criminalização que em certos momentos a Operação Lava Jato parece estar realizando da atividade política é algo amedrontador para 2018. Qual será a reação dos brasileiros a esse vendaval de condenações quando formos às urnas em 2018? Haverá número recorde de abstenções, votos nulos e brancos? A qualidade dos parlamentares eleitos ficará ainda pior do que já é? A ideia de que todo político é ladrão enterrará de vez a possibilidade de introduzirmos o parlamentarismo no Brasil, regime que a meu ver daria mais estabilidade à nossa democracia?

    Prezados leitores, a arte da política é a arte da negociação e a arte do possível. As nomeações para cargos em estatais como a Petrobras fazem parte do processo de formação de maiorias que permitem ao chefe do Executivo governar em um sistema em que o nosso Legislativo não têm poder para governar e assumir as responsabilidades pelas decisões tomadas no exercício do governo, mas tem poder para tornar a tarefa do chefe do Executivo difícil ou impossível. Em outras palavras, o Legislativo no Brasil é o filho adolescente que faz estripulias, mas sabe que o pater famílias, isto é, o Presidente, Governador ou Prefeito, estará lá para estabelecer a ordem e a disciplina e fazer as coisas andarem. Oxalá que o furacão causado pela Lava Jato, nos leve ao aprimoramento do nosso sistema de governo e não que o Executivo, além de ter que ceder às chantagens emocionais do filho adolescente ainda tenha que ter medo das lições de moral e do chicote do Judiciário. Que o crime de Lula e o castigo infligido ao maior líder popular do Brasil nos amadureça como nação e nos leve a optar pelo parlamentarismo. Quem sabe nós brasileiros não encontremos a redenção como encontrou Raskolnikoff, o personagem principal da obra-prima de Dostoiévski?

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Fazendo a coisa certa

Aristóteles explicou o porquê. Um líder político verdadeiro atende três condições: (i) ele tem a capacidade de fazer o serviço (ethos); (ii) ele entende as necessidades do povo e é capaz de dar-lhes uma resposta (pathos); e (iii) os argumentos dele fazem sentido (logos)

Trecho do artigo Corbyn vs Sócrates de Peter Jones, jornalista e escritor inglês

Eu pratiquei a medicina no setor privado por muitos anos, mas no geral eu não gosto da medicina privada. Ela é sempre mais cara e há uma grande quantidade de tratamentos desnecessários. Você tem uma dor de cabeça e logo pedem uma tomografia. Infelizmente uma grande quantidade de médicos corrompe-se pela facilidade com que se pode fazer dinheiro dessa maneira. A medicina não é um negócio, porque os pacientes não são consumidores normais – eles estão tremendamente vulneráveis.

Trecho de entrevista do neurocirurgião e escritor britânico Henry Marsh dado à jornalista Mary Wakefield em 6 de maio de 2017

Os chineses, sempre e em todos os lugares, foram avessos a dívidas e o governo chinês, o qual, diferentemente do nosso, deve assumir responsabilidade de longo prazo pela economia, não é diferente. Mao deu o exemplo e fez o PIB crescer 6,2% por ano durante vinte e cinco anos, sem ter contraído um centavo de dívida, um feito provavelmente inédito na história. Seus sucessores foram menos avessos à dívida, mas a economia elaborada mais sobre bases holísticas – todos os recursos estratégicos, dos recursos financeiros à terra são de propriedade comum – permite à China contrair 90% da sua dívida emprestando dela mesma, sem intermediários, para criar ativos produtivos, de propriedade coletiva.

Trecho do artigo intitulado “A dívida financeira da China: tudo o que você sabe está errado, escrito por Godfree Roberts, um americano que mora na Tailândia, em 5 de julho

    Prezados leitores, para quem não sabe, a China está construindo trens de alta velocidade por todo o país, conectando as grandes cidades às médias e pequenas cidades. Esses investimentos em infraestrutura acabaram criando um círculo virtuoso: ao redor das estações, o governo, que é o proprietário das terras, organiza a construção de aglomerações urbanas, incluindo centros de compra, fábricas e condomínios, estimulando a economia e gerando receita de impostos que ajudam a pagar os empréstimos tomados para construir as linhas de trem. Como o dinheiro é emprestado internamente dos bancos, que são públicos, os custos são menores, o que permite manter as tarifas a preços acessíveis.

    Tanto é assim que, de acordo com o artigo citado acima, a linha Pequim-Shangai é altamente lucrativa, porque como o salário médio dobrou desde 2011 um número duas vezes maior de pessoas consegue pagar o preço das passagens. Os responsáveis pelas obras de infraestrutura na China estimam que para cada 30 milhões investidos em projetos de metrô, há um aumento de $ 80 milhões no PID da cidade servida e a criação de 8.000 empregos. Ao chegar a cidades remotas, os trens de alta velocidade incentivam a coesão social, a mobilidade da mão de obra, a criação de um mercado nacional e melhoram o meio ambiente, pois não têm o petróleo como fonte de energia. De acordo com o livro Is Government Spending a Free Lunch? Evidence from China preparado pelo Banco Central de Saint Louis, nos Estados Unidos, estima-se que o governo chinês obtenha um retorno de 200-300% sobre seus investimentos.

    Todo esse introito para dizer que a China que, assim como o Brasil, pertence ao clube dos emergentes, está conseguindo colocar em prática uma visão estratégica sobre como o país deve caminhar nas próximas décadas. Dívida pública, por que não a ter? Desde que sirva para o bem comum, para dinamizar a economia e melhorar a qualidade de vida da população. O interessante sobre os chineses é que eles têm tido a capacidade de organizar sua economia de maneira autônoma, sem se deixar enfeitiçar por modismos teóricos que os países centrais do Ocidente adoram impor aos países menos desenvolvidos para seu próprio proveito. O Consenso de Washington que a América latina abraçou na década de 90 foi um exemplo disso. A China é capitalista, ma non troppo, ou talvez socialista, ma non tropo. O importante é que ela tem avançado mais ou menos incólume à onda de financeirização que varre o mundo, e que baseia todas as decisões em um cálculo simplista de eficiência que não leva em conta fatores como a importância da satisfação das pessoas, em termos de qualidade de vida, de aumento da renda média, de oferta de produtos e serviços que atendam às necessidades da população.

    Um exemplo dessa obsessão pela otimização econômica que só olha o custo e lucro em termos numéricos é a defesa que nossos órgãos de imprensa “sensatos” fazem da reforma trabalhista, tão desejada pelos empresários, aliás tanto que as entidades patronais estão mudas a respeito das acusações de corrupção contra o padrinho da reforma da CLT, Michel Temer. É óbvio que ela diminuirá os custos da mão de obra, mas será que ela permitirá que nós, trabalhadores, sejamos mais bem treinados e assim tornemo-nos mais eficientes e aumentemos a satisfação do consumidor? Ou as novas leis trabalhistas levarão a uma precarização do vínculo entre o empregador e o empregado, aumentarão a rotatividade e diminuirão o treinamento oferecido no trabalho? Infelizmente a ideia da reforma trabalhista nos é vendida como se o trabalho pudesse ser reduzido a um cálculo de quanto custa para o empregador e do máximo que o empregador pode pagar para ter lucro. E, no entanto, o trabalho é muito mais que um custo de produção, diz respeito à dignidade humana, à autoestima da pessoa que tem uma ocupação e que serve de exemplo a seus filhos.

    Esse tipo de mentalidade que só vê planilhas financeiras é seguido à perfeição pelas operadoras de saúde no Brasil. De acordo com o jornal O Globo de 2 de julho, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar, apesar de elas terem perdido 1,5 milhão de clientes em 2016, as receitas das empresas cresceram 12% e o lucro aumentou 66%, graças às operações financeiras que acabaram se tornando sua principal fonte de renda. Agora respondam-me: quem no Brasil que usa planos de saúde está totalmente satisfeito com os serviços prestados?; quem não se impacienta com os trâmites burocráticos necessários para um procedimento? quem acredita que o modo como a medicina privada é gerida no Brasil contribui para uma melhora na saúde da população em geral? A saúde financeira das operadoras de saúde vai de vento em popa, mas os benefícios que elas proporcionam à sociedade brasileira estão muito aquém do sucesso econômico delas.

    E, no entanto, ao que tudo indica, nossa opção pelo viés financista parece consolidar-se cada vez mais. A solução que a ANS está burilando para aumentar o acesso dos brasileiros a cuidados médicos é elaborar, juntamente com as operadoras de saúde, planos mais baratos e com muito menos cobertura do que os atualmente disponíveis, ou seja, a saída é simplesmente aumentar o mercado das empresas, permitindo-lhes oferecer serviços meia-boca a quem não pode pagar muito. Quanto à reforma trabalhista, a saída será abrir as portas à terceirização, tornando os trabalhadores peças anônimas, perfeitamente substituíveis, em uma engrenagem em que os protagonistas serão as empresas que contratam entre si a prestação dos serviços.

    Prezados leitores, transplantar receitas prontas de países estrangeiros nunca é uma boa ideia, considerando que cada sociedade tem uma cultura, uma história, um perfil demográfico próprios. Mas aprender uma ou outra lição da China, cujas lideranças parecem atender aos três critérios aristotélicos de boa governança (fazem o que é certo e lógico para atender as necessidades do povo), e adaptá-las às nossas condições não seria de todo mal. Em um país como o Brasil, em que, de acordo com a Receita Federal, a renda média da classe A é 32 vezes maior do que a renda média das classes D e E, o que nos coloca no posto desonroso de 10º país mais desigual do mundo, tomar decisões com base em cálculos financeiros de custo e lucro é no mínimo temerário. Oxalá que até 2018 o desgaste político de Temer ao menos impeça que essa reforma trabalhista seja aprovada a toque de caixa e que possamos discutir nas próximas eleições que tipo de economia do trabalho é a mais adequada para resolver nossos problemas.

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