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História e cinema

Posted by on 11/05/2013

Os etíopes pintam seus deuses com narizes chatos e pele escura; os trácios pintam os seus com olhos azuis e cabelos ruivos. Se ao menos os bois e cavalos tivessem mãos, e quisessem desenhar ou realizar outros trabalhos de arte que os homens fazem, então so cavalos desenhariam as figuras de seus deuses como cavalos, e os bois, como bois, reproduzindo os corpos divinos segundo seus próprios modelos.

Xenófanes, poeta e pensador religioso grego (560 a.C.-478 d.C.)

                O trecho acima foi retirado de um livro chamado “Um Estudo da História”, de Arnold Toynbee (1889-1975), um historiador britânico que se propôs a compreender o Homem e suas civilizações de uma perspectiva mais ampla, não estritamente ocidental. No primeiro capítulo do livro, denominado “Relatividade do Pensamento Histórico”, Toynbee mostra o quanto o pensamento histórico do seu tempo reflete o pensamento científico do século XIX, que por sua vez é expressão do modo de produção industrial:estudavam-se criaturas vivas, os homens, como se fossem inanimadas, como se elas pudessem ser isoladas do seu meio físico e cultural de modo a serem objetivamente apreendidas e dominadas. Tal perspectiva levava à elaboração da história dos países isolados, como se fossem entidades auto-suficientes, quando na verdade eles fazem parte de grandes movimentos de civilizações que se chocam e dialogam ao longo do tempo.

                Essa história catalogadora, criticada por Arnold Toynbee, feita da coleta laboriosa de fatos é muito chata e pouco criativa. Livros como “Um Estudo da História” são fascinantes justamente porque o autor se vale do seu conhecimento enciclopédico, muito além da “mera paisagem européia” para dar aos leitores um painel amplo das grandes tendências, sem focalizar em números e datas específicos. Por outro lado, corre-se um grande risco com tal abordagem: estudiosos menos dotados podem tomar o caminho mais fácil e esquecer totalmente os fatos, para apresentarem apenas sua filosofia da história, ou seja, sua versão dos acontecimentos, sem o cuidado de embasá-la.

                  Chegamos então no pólo oposto: da ditadura dos fatos para a ditadura da agenda política e cultural do indivíduo que se propõe a olhar o passado. Não falarei aqui sobre historiadores e livros por eles escritos, pois não sou historiadora profissional para poder julgar de maneira não leviana. Falarei de filmes, por uma razão simples: atualmente eles são o meio principal que as pessoas têm de saber sobre o passado.  E eu sempre me assusto com esse menosprezo pelos fatos e pela imposição de um conjunto de valores do presente sobre situações que não comportam tal enquadramento, justamente porque as pessoas que viveram àquela época, que fizeram a história do seu tempo,pensavam de outra maneira. Vamos aos exemplos, para minha ideia ficar mais clara.

                   Na semana passada assisti a um filme francês, “Les Adieux à la Reine”, que conta a históriade Sidonie Laborde, umaórfã de pai e mãe cujo ofício é ler para a rainha da França, Maria Antonieta. Estamos em julho de 1789 e a Revolução Francesa acaba de eclodir. Não me interessa aqui falar-lhes de todo o enredo, vou apenas deter-me sobre a cena em que a rainha manda a leitora sentar-se em frente à ela e lhe conta sobre seu amor pela Duquesa de Polignac, Gabrielle. Há muitos elementos risíveis nesssa cena. Em primeiro lugar, não há registro histórico de que Maria Antonieta fosse lésbica. Há registros de que tinha um amante, do qual já falei aqui neste espaço em “Os Aristogatas”, e da forte amizade que a unia a Gabrielle de Polignac, mas colocá-la sonhando com o perfume de Gabrielle é uma licença artística do cineasta e do autor do livro no qual se baseou o filme, Chantal Tomas, que se inscreve na tentativa moderna de atribuir homossexualismo feminino ou masculino a famosos personagens históricospara naturalizá-lo e até justificá-lo, como se tal condição levasse a grandes conquistas intelectuais ou materiais.

              Em segundo lugar, há um elemento anacrônico mais sutil: colocar a rainha da França tomando uma serva como confidente num diálogo de igual para igual, em que as duas estão sentadas,é apresentar algo improvável. Não que as rainhas não tivessem confidentes, afinal a história está cheia de exemplos de pessoas de origem humilde que tiveram uma bem-sucedida carreira em alguma corte real, seja como conselheiros ou amantes. Meu problema com a cena era o tom coloquial da conversa, como se aquilo fosse algo feito entre duas amigas, como se faz hoje em dia entre pessoas que se consideram do mesmo nível.

                      E não era: em uma sociedade hierarquizada em que os reis eram representantes de Deus na Terra, em que havia regras muito claras sobre as relações entre as pessoas, sobre quem deveria obedecer e quem deveria mandar, os reis deveriam manter sempre o ar de mistério em torno de sua pessoa, de intocabilidade. A rainha Maria Antonieta mostrada neste filme tem como modelo muito mais a princesa Diana que fazia confissões na BBC sobre o triângulo amoroso entre ela, Charles e Camilla, do que a Maria Antonieta histórica, que era criada desde a mais tenra infância imbuída do senso do dever de representar o papel que Deus havia dado a ela.

                 Tal papel, ao mesmo tempo que lhe dava imensos privilégios, impunha-lhe sacrifícios e o principal deles eraser uma pessoa cuja vida era absolutamente pública, pode-se dizer até mesmo um instrumento para reforçar a ordem natural das coisas.Mostrar a rainha da França como mulher entregue ao cultivo de sentimentos privados de amor, lamentando sua vida tolhida pelas obrigações é uma visão que nós, filhos da revolução burguesa, que colocou o indivíduo no centro do mundo e que fez da felicidade um objetivo de vida legítimo, transplantamos para o século XVIII.Como se as pessoas daquela época tivessem as crises existenciais típicas de um indivíduo do século XXI,para quem é inconcebível que Deus possa ter-lhe colocado na Terra para sofrer e que isso possa ser justo. Afinal vivemos sob a égide da filosofia Paulo Coelhiana do “quando você quer, o mundo conspira a seu favor”.

               Eu poderia dar-lhes outros exemplos: mulheres feministas avant la lettre que em plena Idade Média tratavam seus esposos com a condescendência de mulheres esclarecidasque sabem que “boys will be boys” (isso eu vi em um filme de Robin Hood estrelando Kevin Costner), ou um filme como Bastardos Inglórios, que mostra os nazistas como vilões de história em quadrinhos. Tais distorções dos fatos são consideradas normais, fruto do relativismo cultural a que me referi em meu artigo “Ilusões perdidas e reconquistadas, mas eu vejo um risco muito grande em tratarmos a história assim, sem nenhuma preocupação com a fidelidade. O resultado disso é que acabamos considerando natural nosso próprio comportamento capitalista, defensor dos direitos humanos e das minorias e esquecemos que ele é apenas uma etapa no movimento das civilizações, para copiar Toynbee.

               Para finalizar, gostaria de citar um exemplo de como a agenda política é mais importante atualmente do que o entendimento da história em seus próprios termos. Assistindo no youtube ao último episódio da saga Les Rois Maudits, baseada no livro de Maurice Druon, eu ri à beça quando em uma cena o rei da França, Filipe VI, descobre que a mulher tinha surrupiado à noite seu selo real e dado uma ordem de prisão a uma inimiga. A rainha confessa e ele imediatamente a chama de “putain” e dá-lhe umas chapuletadas. Nada mais previsível: ela o havia desobedecido, ele era o homem, o pater familias, era preciso mostrar ao ser inferior quem era a autoridade. A mulher depois de receber os tabefes não chora nem se lamenta, resignada ante a ordem natural das coisas e vai embora.

             Esse filme foi feito no ano em que eu nasci, em 1972, e na minha opinião é muito mais esclarecedor para as geraçõespresentes do que se mostrasse uma mulher desafiando o marido ou tratando-o como imbecil, porque o mundo não funcionava assim. Infelizmente, essa fidelidade aos fatos hoje em dia é vista com maus olhos e para as pessoas cujo conhecimento passa ao largo de livros, o mundo torna-se um eterno presente, como se nosso modo de vida e nossos valores fossem os únicos possíveis ou prováveis. É uma pena. Meus prezados leitores, da próxima vez que forem ver Quantin Tarantino, reflitam sobre o quanto de suas histórias são aquilo que ele queria que tivesse acontecido e não o que de fato aconteceu.

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