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Ordem e Progresso

Posted by on 06/04/2015

Um tribunal de Cingapura condenou dois alemães a três golpes de vara de bambu por picharem um vagão do metrô na cidade-estado notória por suas rígidas regras sobre vandalismo. Andreas Von Knorre, 22 e Elton Hinz, 21, foram condenados ao espancamento e a nove meses de prisão depois de confessarem terem realizado atos de vandalismo e invasão de propriedade.
Trecho de artigo retirado do jornal britânico Daily Mail de 5 de março de 2015

Lee Kwan Yew foi educado em Londres e Cambridge, e lembrava em tom de admiração a maneira pela qual os jornais noturnos eram empilhados na rua e as pessoas pagavam por eles deixando dinheiro sem que ninguém os obrigasse e sem nunca furtar aquilo que outros haviam deixado. Aquela, ele pensava, era uma sociedade ordenada e disciplinada, e ele decidiu levar essa ordem e disciplina à sua própria sociedade.
Trecho retirado de um obituário sobre Lee Kwan Yew (1923-2015), fundador da cidade-Estado independente de Cingapura, escrito por Theodore Dalrymple

    “Sem Ordem Não Há Progresso”. Este bordão, que pulula pela internet para justificar a insatisfação com o atual estado de coisas em nosso país, que muitos consideram de desordem, corrupção e decadência, é inspirado no dístico da nossa bandeira, “Ordem e Progresso”. Esse lema por sua vez é um resumo da frase do filósofo positivista francês Augusto Comte, “o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Os republicanos que derrubaram Dom Pedro II e os militares que deram o golpe em 1964 com certeza tinham esse pensamento em mente quando decidiram colocar um fim à “baderna” do governo de Jango Goulart pelo bem do Brasil.

     O exemplo de Cingapura, cidade-Estado localizada entre a Malásia e a Indonésia, no Sudeste Asiático, parece respaldar esse pensamento. Conhecida internacionalmente pela rigidez com que pune crimes que em outros países são considerados triviais, Cingapura é altamente próspera: o PIB per capita é de 62.400 dólares, a expectativa de vida de homens e mulheres em geral é de 84 anos, 96% da população é alfabetizada, sua pauta de exportações é composta de máquinas e equipamentos (incluindo eletrônicos e telecomunicações), produtos farmacêuticos e outros produtos químicos, típicos de economias avançadas. À dureza dos castigos conjuga-se a celeridade da justiça. O caso relatado acima ocorreu em novembro de 2014 e foi julgado em março de 2015, quatro meses depois, o que faz com que a punição, independentemente do seu conteúdo, torne-se muito mais eficiente, afinal como bem sabemos no Brasil, justiça tardia é injustiça.

     Cingapura exerce fascínio sobre nostálgicos como o psiquiatra e escritor britânico Theodore Dalrymple, que ao descrever Lee Kwan Yew como o “líder mundial mais inteligente e capaz dos últimos cinquenta anos”, lamenta que a Inglaterra que serviu de modelo para Yew fazer de Cingapura um modelo de organização e de respeito à lei, esteja atualmente em estágio terminal de decadência, no qual os ingleses não têm educação, não se comportam civilizadamente e não sabem mais falar sua própria língua. De fato, se formos consultar o Índice de Corrupção da Transparency International, Cingapura ocupa a sétima posição com pontuação de 84 em 2014 (100 seria a pontuação de um país totalmente livre da corrupção), ao passo que o Reino Unido ocupa a décima quarta posição com 78 pontos e nosso Brasil lindo e trigueiro vem na sexágesima nona posição, com 43 pontos. Em suma, a cidade-Estado fundada pelos ingleses como entreposto comercial em 1819 é a concretização do sonho dos positivistas: ordeira, estrita cumpridora da lei e altamente próspera. Por que não podemos transplantar essa receita bem-sucedida em um país tropical para nossos próprios trópicos ao sul do Equador?

    Essas questões vieram-me à mente quando mais uma vez estamos às voltas com modificações no Código Penal, especificamente a diminuição da idade de imputabilidade de 18 para 16 anos. Eu já me pronunciei neste meu humilde espaço a favor desta medida por uma questão de consistência com a lei civil, que permite que brasileiros dessa idade casem-se e tenham empresa, e com a lei eleitoral, que permite que votem. Mas é óbvio que há fortes argumentos contra, mesmo que a diminuição da maioridade ficasse restrita a crimes hediondos. Afinal, colocaremos jovens de 16 anos junto com criminosos experimentados nas nossas prisões que o próprio Ministro da Justiça chamou de medievais. Na prática elas, que já oferecem “pós-graduação” na criminalidade, passarão a oferecer cursos de “graduação” em comportamentos ilícitos a adolescentes imberbes ou nem tanto.

   Isso com certeza servirá para saciar nossa sede de vingança contra adolescentes claramente psicopatas como Champinha, que juntamente com comparsas estuprou seguidamente e por vários dias a estudante Luana Friedenbach em 2003, degolando-a ao final. Por outro lado, para jovens que matam em um assalto por exemplo, quando a vítima reage de maneira inesperada, a convivência na prisão com indivíduos mais velhos, com milhares de quilômetros rodados na bandidagem, pode inviabilizar qualquer possibilidade de recuperação que esses adolescentes teriam se convivessem só com pessoa da sua idade nas unidades onde as medidas sócio-educativas são aplicadas, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, aos que cometem os atos infracionais.

     Tudo isso para dizer que a redução da maioridade penal pode resolver um problema e criar outro ainda maior. Daí que a solução positivista de Cingapura parece ser atraente. E se começássemos modestamente a lidar com o problema da delinquência juvenil lidando com as infrações menores, como o vandalismo? E se estabelecêssemos varas criminais que as julgassem e punissem de maneira rápida? Será que se lidássemos de maneira eficiente com as coisas mais simples isso não teria um efeito benéfico de coibir os crimes mais complexos como estupros e assassinatos?
Prezados leitores, uso o condicional propositalmente, porque há diferenças gritantes entre Brasil e Cingapura, a começar pelo tamanho (Cingapura tem 697 quilômetros quadrados, o Brasil mais de 8 milhões e meio), para não falar da nossa história. Açoitar jovens delinquentes negros no Brasil, longe de ser símbolo de justiça célere e eficiente, seria uma desagradável reminiscência dos tempos da escravidão. De qualquer forma, independentemente da viabilidade de importar modos estranhos à nossa formação social e cultural, a lição que fica da tolerância zero às infrações, ao contrário da nossa relativa liberalidade, é que um ciclo virtuoso acaba sendo criado: a certeza da punição inibe os potenciais infratores, ao menos aqueles que se as circunstâncias não forem propícias, não saem da linha, e os cidadãos de bem dormem tranquilos, confiantes na lei, o que reforça o estímulo a continuar seguindo o caminho reto.

     Theodore Dalrymple, naquele mesmo obituário citado no início deste artigo, narra uma ocasião em que ele tentava pegar um táxi e não conseguia porque estava esperando no lugar errado, onde era proibido que os táxis parassem. Quando ele finalmente foi ao ponto exato e entrou no veículo, ao reclamar para o motorista, este respondeu-lhe em um inglês macarrônico, (traduzido por mim): “Cingapura, muita, muita lei.” Se nós brasileiros conseguíssemos imbuírmo-nos de um pouco deste espírito ordeiro ao menos subiríamos algumas posições no ranking da Transparency International…

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