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Uma pitada de sal

Posted by on 27/10/2015

A estrutura de cooperação é insidiosa. Há muito tempo os promotores têm a capacidade de oferecer às testemunhas benefícios valiosos, incluindo dinheiro, em troca do testemunho que incrimina os cúmplices. Atualmente as diretrizes sobre o pronunciamento de sentenças na justiça federal (antigamente obrigatórias; ainda altamente sugestivas e bastante seguidas pelos juizes) recompensam os réus que declaram ser culpados e dão ao governo os depoimentos de que este precisa para processar outras pessoas. Leis com redação imprecisa exacerbam o problema tornando relativamente fácil para um comparsa testemunhar que um antigo colaborador é realmente um sujeito corrupto.

Trecho retirado do livro “Three felonies a day – How the Feds Target the Innocent” escrito por Harvey A. Silvergate

A pena será reduzida de 1(um) a 2̷ 3 (dois terços) e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos, que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos, ou valores objeto do crime.

Parágrafo quinto do artigo primeiro da Lei 9.613 de 3 de marçõ de 1998 sobre lavagem de dinheiro

  Prezados leitores, permitam-me apresentar-lhes Harvey A. Silvergate, um advogado criminalista americano que atua em Boston e autor da citação acima. Harvey é um feroz crítico da justiça federal penal dos Estados Unidos. Seu livro relata casos de processos penais movidos por promotores de justiça em que, no entender do autor, não foi dada aos réus a chance de defenderem-se de maneira adequada e portanto houve a condenação injusta desses indivíduos ou empresas. As principais armas utilizadas pelos promotores para aumentar seus índices de condenação e portanto tornarem-se mais populares (lembrem-se que nos Estados Unidos o cargo é eletivo e serve ainda como trampolim para carreiras políticas, como Rudolph Giuliani, ex-prefeito de Nova York não me deixa mentir) são duas, de acordo com Harvey: a exploração de tipos penais abertos e a delação premiada.

    Para entender o que é um tipo penal aberto vou dar-lhes um exemplo clássico de um crime na mais perfeita acepção da palavra que é o homicídio. Matar alguém exige uma ação no mundo físico, um ser humano como objeto e uma intenção de acabar com a vida de alguém, revelada pelos atos do autor, como pegar a arma e apontar em direção à vítima. Além disso, qualquer pessoa sabe que dar um tiro fatal é algo condenado moral e legalmente. Tudo muito claro, direto, completo, o que permite aplicar a pena de prisão àquele que praticou o ato, sem grandes dilemas. Ora, o tipo penal aberto embaralha as coisas porque exige uma interpretação a respeito do que ocorreu no mundo dos fatos, não é simplesmente um filme de ação a que o juiz, ou o júri, assiste com a vítima no meio de uma poça de sangue.

    Um exemplo desse tipo de crime é o descrito no artigo 177 do Código Penal Brasileiro, que condena afirmações falsas feitas a respeito da constituição de uma sociedade e a ocultação fraudulenta de fato relativo a ela. Perceberam como a coisa se complica? Como decidir o que é uma afirmação falsa? Como decidir o que significa na prática ocultar de maneira fraudulenta uma informação? O perigo de tais crimes cuja existência depende de um julgamento de valor é que o réu pode estar fazendo algo que ele pensa ser certo ou porque é uma prática corrente no seu meio profissional ou porque seus valores morais individuais não veem nada de errado naquilo. O parágrafo primeiro daquele artigo criminaliza a conduta de um diretor que conta mentirinhas sobre as reais condições econômicas da empresa. Ora, será isso manifestação de um desígnio maligno de enganar as pessoas ou uma prática adotada por aqueles que carregam as maiores responsabilidades pela condução dos destinos do negócio? Será que dar notícias negativas não pode afugentar investidores? Como decidir o que é fraude e o que é meia-verdade inocente contada por diligência profissional?

    É um fato da sociedade contemporânea que esses tipos penais abertos estão cada vez mais presentes nos códigospenais de todos os países, porque a vida tornou-se mais complexa e as possibilidades de causar prejuízos a outras pessoas multiplicaram-se. A voz do povo exige que mais e mais condutas sejam criminalizadas para que haja justiça, e no afã de satisfazerem aos desejos da população e de estarem antenados com as mudanças econômicas e tecnológicas, os legisladores muitas vezes aprovam leis que são imprecisas e mal escritas. Harvey mostra como os promotores federais americanos aproveitam-se disso para dar aos “statutes” uma interpretação criativa que permite condenar indivíduos desprevenidos que não imaginavam que destruir papeis de trabalho depois de uma auditoria para preservar a confidencialidade das informações do cliente e para diminuir custos de armazenamento de materiais é obstrução da justiça para os FEDs. Chega-se a uma situação kafkaniana em que o sujeito está cometendo crime sem o saber, daí o nome do livro.

    A segunda arma dos promotores é a delação premiada. Harvey condena esse instituto porque na mão dos promotores sedentos de condenação ela não é um instrumento de busca da verdade dos fatos, mas de coação do réu que normalmente é forçado a aceitar confessar algo para ter uma pena menor ou ficar isento de pena, livrando-se de um processo judicial que lhe custará tempo e dinheiro e terá desfecho incerto. Muitos que caem na mira dos promotores, mesmo considerando-se de boa fé inocentes, preferem barganhar para evitar o pior e não cair em desgraça com as autoridades. Em suma, a delação acaba sendo uma transação que potencializa as condenações pela pressão que exerce sobre a parte que tem tudo a perder no curto prazo se não ceder e pouco a ganhar no longo prazo se heroicamente resolver levar o processo às últimas consequências. Um caso típico relatado por Harvey é o da antiga firma de auditoria Arthur Andersen que auditava as contas da empresa americana Enron. A Arthur Andersen recusou-se a aceitar as condições draconianas oferecidas pelo Departamento de Justiça, que queria que a empresa divulgasse todos os seus registros e colocasse à disposição todos os seus funcionários para deporem no processo. O resultado é que a empresa foi condenada por obstrução da justiça em 2002 ao pagamento de uma multa de 500.000 dólares, teve sua reputação destruída, algo fatal para uma empresa do ramo, e quando conseguiu reverter a decisão na Suprema Corte, em 2005, já era tarde demais.

    Prezados leitores, abordar o que tem a dizer um advogado de defesa americano parece-me relevante porque o Brasil não só tem inúmeros tipos penais abertos – temos um crime tipificado no artigo 359-B de” inscrição de despesas não empenhadas em restos a pagar”, acreditem se quiser – como também adotou o instituto da delação premiada na lei citada acima, na lei 8.137 de 1990 que trata dos crimes contra a ordem tributária e na lei 7.492 de 1986, que trata dos crimes contra o sistema financeiro. Em um momento em que estamos no afã de fazer uso desses dois truques jurídicos na cruzada contra a corrupção, é bom estarmos cientes do seu lado negro. Uma pitade de sal no angu de caroço brasileiro não faz mal a ninguém.

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