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O semeador e o ladrilhador

Posted by on 20/06/2016

A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua atividade colonizadora. Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até o fim. Raros os estabelecimentos fundados por eles no Brasil que não tenham mudado uma, duas ou mais vezes de sítio, e a presença da clássica vila velha ao lado de certos centros urbanos de origem colonial é persistente testemunho dessa atitude tateante e perdulária.

Trecho retirado do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982)

Todos sabemos o que irá acontecer. Quando todo mundo estiver no estádio para a cerimônia de abertura haverá uma troca intensa de tiros em campo. Todos vão aplaudir, pensando ser um espetáculo cuidadosamente coreografado, mas será um tiroteio verdadeiro. Porque é o Rio. […] a elite global esperava que o Brasil, um país infestado de criminosos e corruptos, cuja economia está atrelada a mercados instáveis como o do petróleo e o de minérios, fizesse um bom trabalho ao sediar os Jogos Olímpicos. Tenho certeza que as festas no Rio serão boas, mas organizar as Olimpíadas exige mais do que champagne, roupas chamativas e sensualidade à flor da pele.

Trecho retirado do artigo “As Olimpíadas no Rio: outra confusão constrangedora dos globalistas incompetentes” de Milo Yannopoulos, publicado no site breibart.com

    Prezados leitores, um dos capítulos de um dos clássicos do ensaísmo brasileiro, Raízes do Brasil, intitula-se O Semeador e o Ladrilhador. Para Sérgio Buarque de Holanda, os colonizadores portugueses foram semeadores nas suas posses no Novo Mundo porque agiram por tentativa e erro, de maneira aventureira, esperando um golpe de sorte que lhes permitisse adquirir fortuna. A “diligência pertinaz, parcimônia, exatidão, pontualidade, solidariedade social” não eram virtudes caras aos lusitanos, que não vieram aqui para dedicar-se ao trabalho árduo e sistemático, que dá frutos modestos, mas seguros. O ladrilhador que vai vendo sua obra completar-se gradualmente pelo esforço diário nunca foi o ideal dos nossos descobridores, e para o historiador paulista nós brasileiros herdamos esse traço de caráter.

    E, no entanto, por mais que os portugueses não tenham realizado uma colonização propriamente dita no Brasil, mas uma “feitorização”, eles acabaram fundando um país, que bem ou mal organizou-se social, politica e economicamente. Sim, somos produtos de avacalhação e somos avacalhados, mas quem há de negar que temos uma civilização brasileira, celebrada pela primeira vez nos meios acadêmicos por Gilberto Freyre que a viu nascer nas relações entre a casa grande e a senzala estabelecidas no século XVI?

    Recorro a esses dois luminares do pensamento tupiniquim para rebater as críticas dos politicamente incorretos como o senhor Milo Yannopoulos, que denunciam o absurdo de o Comitê Olímpico Internacional ter dado a um país de Terceiro Mundo a incumbência de organizar a maior festa do esporte mundial. Os politicamente incorretos não celebram a diversidade, o multiculturalismo e para eles o sul do Equador não trouxe nenhuma contribuição significativa à humanidade porque seus habitantes autóctones não têm a capacidade intelectual para fazê-lo. Milo Yannopoulos corrobora seus argumentos contra a Rio 2016 com fatos inquestionáveis: nossa atual crise política, que se desenrola aos nossos olhos cansados sem que consigamos colocar os pés no fundo do poço; nossa crise econômica, causada pela dependência de commodities que atualmente estão com preços baixos no mercado internacional; nosso problema de saúde pública com o vírus zika, que aportou na terra do pau-brasil trazido pelos turistas em 2014 e proliferou com o calor e a sujeira que aqui encontrou; nosso problema ambiental, que para Yannopoulos é o mais grave em relação aos Jogos Olímpicos, que é o fato de o local em que as competições a vela serão realizadas ser um depósito de esgoto, a Baía de Guanabara, canta em prosa e verso; nosso problema da violência urbana, que o autor do artigo não corrobora com números, mas apenas cita (eu poderia ajudá-lo dizendo que 10% dos homicídios no mundo ocorreram no Brasil); finalmente nossa crise fiscal, exemplificada pelo fato de o Rio de Janeiro ter decretado estado de emergência por falta de dinheiro para cobrir despesas públicas básicas com saúde, educação e mobilidade urbana (para corroborar o alarmismo de Milo eu cito aqui o fato de que a previsão de receita para o Estado do Rio em 2016 é de 49 bilhões de reais, enquanto que sua dívida é de 102 bilhões, e dois calotes acabam de ser dados, no valor de 14 milhões, um na Agência de Fomento Francesa e outro no Banco Interamericano de Desenvolvimento).

    Contra fatos, não há argumentos. Como convencer pessoas como Milo Yannopoulos a ter uma visão mais benigna sobre a possibilidade de realização de um evento global no lado de baixo do Equador? Faço uso das constatações históricas, antropológicas e sociológicas de Sérgio Buarque de Holanda e de Gilberto Freyre para responder a Yannopoulos, que obviamente nunca lerá minha resposta. Sim, somos um país “governado por palhaços” que fala uma língua desconhecida, mas a rota por nós escolhida de “semeadores” que planejam pouco, deixam tudo para a última hora correndo o risco de tudo dar errado poderá oferecer aos bilhões de espectadores que assistirão no conforto do lar às competições um espetáculo único.

    É verdade que provavelmente a conexão wi-fi não ficará disponível de maneira ininterrupta aos jornalistas que cobrirão o evento, é verdade que o deslocamento dos atletas será demorado e motivo de irritação e angústia para quem precisa ficar 100% focado em vencer, é verdade que aqueles que se aventurarem a conhecer a Cidade Maravilhosa poderão sofrer assalto, fruto do descuido. Mas falar na possibilidade de tiroteio no Estádio Olímpico é não conhecer a verdadeira alma do Brasil: cordial, contemporizadora, fruto da entente cordial entre a Casa Grande e a Senzala, tal como descrita pelo sociólogo pernambucano, que relaciona em seu livro as variadas maneiras em que os dois espaços trocavam experiências, saberes e dengos.

    Senhor Milo Yannopoulos, os traficantes de drogas não vão descer o morro e barbarizar o asfalto assassinando turistas. Provavelmente a cúpula do “movimento” já entendeu-se expressa ou tacitamente com as autoridades constituídas do Rio de Janeiro, num toma lá dá cá que deve garantir a paz durante os jogos. Afinal, Nicolas Labre Pereira de Jesus, o Fat Family não foi resgatado do Hospital Souza Aguiar pelos seus fiéis companheiros nas barbas da polícia? Como não ver aí uma salutar concessão dos poderes republicanos que o mantinham sob sua guarda? As relações incestuosas entre polícia e bandidos, tão brasileiras, ao mesmo tempo sintoma e causa do despreparo das forças da ordem, e que leva muitas vezes a execuções sumárias de pretos e pobres para acerto de contas, pode permitir que nos Jogos Olímpicos os próprios traficantes assegurem que não haja sérios problemas para limpar a barra da polícia e assim garantir que ela deixe o pessoal da comunidade seguir a vida.

    Quanto à falta de dinheiro para terminar o metrô do Rio que garantirá o meio de transporte para os atletas e turistas olímpicos, neste 20 de junho de 2016 o descalabro das finanças públicas foi temporariamente resolvido por um acordão entre o Presidente Michel Temer e os governadores, pelo qual decidiu-se suspender o pagamento de dívidas à União. Ninguém ainda sabe como cobriremos o rombo descomunal, fruto do nosso completo desapego à Lei de Responsabilidade Fiscal, que havia sido celebrada como a salvação das contas nacionais quando de sua promulgação. O importante é que nós brasileiros sabemos costurar conchavos à margem da lei, pelo qual todos saem ganhando ao menos no curto prazo. Deixemos para pensar em como cortar despesas e aumentar receitas em 2017.

    Por fim, quanto à poluição da Baía de Guanabara haverá redes de contenção ao redor do local das provas a vela e, além do mais, o lixo que se acumula há décadas no fundo do mar carioca não virá à tona, podem ter certeza. O que os espectadores globais verão pela televisão é a paisagem deslumbrante do Pão de Açúcar ao fundo e tenho certeza que ficarão maravilhados como Mem de Sá, Estácio de Sá e Nicolas Durand de Villegagnon ficaram no século XVI.

    Prezados leitores, nosso ex-presidente Lula semeou a ideia das Olimpíadas em um páis tropical em 2007, em um momento em que o Brasil orgulhava-se de ser membro de um grupo geopolítico importante, o dos BRICs, e em que a riqueza do pré-sal estava ao alcance da mão. Não previmos todas as desgraças que cairiam sobre nossa cabeça e como é do nosso feitio, nunca tivemos um plano de contingências. Já que a nossa vocação é de sermos semeadores, que o cenário do Rio de Janeiro, especialmente pintado por Deus, permita que possamos mostrar a rabugentos como Milo Yannopoulos que os Jogos Olímpicos em um país de Terceiro Mundo não serão um exemplo de organização e eficiência, mas não serão apocalípticos como querem fazer crer os preconceituosos. Eles simplesmente serão brasileiros e farão todos sonhar com o sol, o mar e todas as belezas naturais da Cidade Maravilhosa. Viva a Rio 2016!

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