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Vários pesos e várias medidas

Posted by on 16/04/2018

Milhares de crianças morreram na Guerra do Iêmen, a maioria morta pelos sauditas e seus aliados. Esses crimes de guerra foram documentados pelas Nações Unidas a despeito de um esforço diplomático conjunto dos Estados Unidos e do Reino Unido nas Nações Unidas para minimizar os crimes dos sauditas. Bombas de fragmentação, fósforo branco e outras armas ilegais foram usadas frequentemente. As crianças mortas no Iêmen raramente são manchete nos grandes veículos de comunicação, ao passo que as crianças sírias sim.

Trecho retirado do artigo “Rastreando a origem da corrida para a guerra” de Craig Murray, ex-diplomata britânico e atualmente ativista dos direitos humanos, publicado em 15 de abril

Em 7 de abril, quase três mil palestinos ateus, cristãos e muçulmanos encontravam-se feridos, mais de trinta e seis estavam em condição crítica, e pelo menos 25 manifestantes desarmados foram assassinados por centenas de atiradores de elite israelenses e tropas fortemente armadas que atiravam projéteis de tanques em grupos de civis que protestavam contra décadas de prisão pelo Estado Israelense racista. […] Esses massacres grotescos começaram na Semana Santa dos cristãos na Sexta-feira Santa e no Domingo de Páscoa, coincidindo com a Páscoa judaica.

Trecho do artigo “As 52 maiores organizações judaicas americanas e Israel celebram a Páscoa com o massacre de 25 palestinos, muçulmanos, cristãos e ateus” publicado pelo sociólogo americano James Petras em 8 de abril

Assim como o cidadão que infringe o direito civil em vista de sua utilidade presente, destrói o germe que contém seu interesse futuro e o de toda a sua posteridade, assim também o povo violador do direito da natureza e das gentes derruba para sempre os anteparos que protegiam sua própria tranquilidade.

Trecho retirado do livro Do Direito da Guerra e da Paz do jurista holandês Hugo Grotius (1583-1645), fundador do direito internacional

Hugo Grotius pintado por Michiel Jansz van Mierevelt em 1631

    Prezados leitores, há uma outra guerra civil ocorrendo no Oriente Médio, além daquela na Síria, amplamente divulgada pela mídia. Refiro-me ao conflito no Iêmen que se desenrola desde 2015 entre os rebeldes Houthis, apoiados pelo Irã, pela Coreia do Norte e pelo Hezbollah, e os Hadis, apoiados pela Arábia, Saudita, pelo Catar e pelos Emirados Árabes Unidos, dentre outros. A guerra já matou quase 14.000 iemenitas, deixou quase 50.000 pessoas feridas e obrigou mais de 3 milhões de pessoas a sair de suas casas. Uma epidemia de cólera atingiu o país em 2016 como resultado direto dos bombardeios aéreos realizados pela Arábia Saudita da infraestrutura do país, privando os habitantes de acesso à água tratada e ao saneamento básico. Há uma tentativa atualmente de banir a venda de armas do Reino Unido para a Arábia Saudita, por meio de uma ação intentada pela CAAT (Campanha contra a Venda de Armas) no Poder Judiciário britânico. Há poucas chances de sucesso, porque a Arábia Saudita conta com o apoio do governo dos Estados Unidos, que realizou bombardeios aéreos no Iêmen e obviamente do Reino Unido.

    Por outro lado, esses mesmos países que apoiam a Arábia Saudita em sua intervenção militar no Iêmen mostraram-se indignados com um ataque de armas químicas supostamente perpetrado pelo governo sírio em Duma em 7 de abril. Nada foi provado ainda sobre se houve de fato o uso de armas químicas. Somente no dia 14 de abril é que a Organização para a Proibição de Armas Químicas enviou um grupo para averiguar o que ocorreu em Duma. E no entanto, os mesmos países que se importam muito pouco com as crianças no Iêmen que estão morrendo de fome e de sede por causa do bloqueio imposto pela Arábia Saudita, de quem são aliados incondicionais, tomam as dores das supostas vítimas inocentes do sanguinário ditador Bashar al-Assad, apoiado pelo outro famigerado Vladimir Putin. Tanto assim que os líderes da comunidade dos países do bem, Estados Unidos, Reino Unido e França, usaram esse episódio como justificativa para um ataque aéreo em 13 de abril. Mesmo assumindo que Assad de fato ordenou o uso de armas químicas contra civis, que diferença moral os países ocidentais encontram entre morrer de cólera, de fome, de sede ou por armas químicas? O resultado não é o mesmo?

    Essa estranha preferência por crianças sírias em detrimento de crianças iemenitas repete-se em relação a outro conflito no Oriente Médio, entre Israel e Palestina. Os atos perpetrados na Páscoa em Gaza, o gueto onde vivem de maneira precária um milhão e oitocentos e cinquenta mil palestinos na terceira região mais densamente povoada do mundo, tiveram pouca repercussão na mídia e na comunidade internacional. A tentativa de investigação das atividades do exército israelense foi barrada pela embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Nikki Haley, que as qualificou como uma “ação defensiva contra terroristas”. Para Haley, palestinos que atiram pedras e recebem em troca tiros na cabeça para matar ou nos joelhos para aleijar são terroristas perigosos e receberam uma resposta proporcional.

    Prezados leitores, todos os países têm interesses geopolíticos, os quais muitas vezes sobrepõem-se a considerações sobre o bem-estar das populações que se veem no fogo cruzado dos grupos que estão disputando recursos naturais e econômicos. Não há dúvida de que tanto os Estados Unidos quanto a Rússia querem vender gás para os europeus e essa é uma das razões por que há essa presença militar das duas potências no Oriente Médio, por onde passam importantes gasodutos. Mas seria tranquilizador que as partes que estão se enfrentando ao menos discutissem de verdade, utilizando argumentos com base nas leis do direito internacional em vigor, aplicáveis a todos. Isso está longe de ocorrer no momento.

    Os países capitaneados pelos Estados Unidos que atacaram a Síria em 13 de abril o fizeram sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, sem respaldo em nenhum tratado internacional, infringindo a soberania do país. Bem ou mal, se a Rússia tem presença militar lá é porque além de ter interesse em defender suas bases navais de Tartus e Latakia, foi convidada a fazê-lo pelo líder da Síria, Assad, que monstro ou inocente é o governante de um país que tem direito à autodeterminação, como preconiza a Carta das Nações Unidas. O Reino Unido justificou sua ação militar dizendo ser uma resposta proporcional ao sofrimento enorme causado pelo uso de armas químicas pelo governo sírio.  Tal justificativa poderia começar a fazer sentido quando a força-tarefa enviada pela OPAQ constatasse a extensão do dano, se é que essa organização tem imparcialidade suficiente para relatar o que de fato constatar em campo. Além do mais, que proporcionalidade existe entre o dano, mesmo que seja real, e a resposta a ele nesse caso específico? De que adianta realizar um ataque aéreo sobre instalações com armas químicas se tal ataque aéreo liberará mais substâncias químicas? Se não há respaldo legal para o ataque nem razoabilidade em termos da relação entre o que se pretende atingir com a inciativa militar relativamente aos seus efeitos colaterais por que essa superioridade moral da “comunidade internacional”?

    Em 17 de março passado o porta-voz do Estado Maior das forças armadas da Rússia, general Sergey Rudskoy, anunciou que tinha informações de que os Estados Unidos estariam treinando terroristas takhfiri no sul da Síria para realizarem ataques químicos que seriam imputados ao governo de Assad. Não podemos saber nessa guerra de informações o que é verdade ou meia-verdade: será que houve ataque químico, mas não de autoria do governo sírio? O fato é que é mais um episódio para acirrar os ânimos depois do envenenamento de ex-espião russo e de sua filha Júlia que já está fora de perigo, mas permanece incomunicável. É de esperar que haverá um boicote à Copa do Mundo na Rússia como parte da estratégia de marginalizar o país. E assim caminhamos celeremente rumo a um grande conflito entre as grandes potências, em meio aos vários pesos e às várias medidas que a comunidade internacional dá a diferentes eventos, de acordo com os interesses predominantes. Pobre do direito das gentes, como o definiu Hugo Grotius. E mais pobre ainda aqueles que o desprezam, porque sofrerão as consequências.

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