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Desintegração criativa?

Posted by on 27/08/2018

Nos períodos “orgânicos”, socialmente coerentes e harmoniosos, os membros de uma sociedade são unidos por um acordo comum sobre a organização social e suas finalidades; as relações individuais e políticas são estáveis e aceitas, e a posse do poder reflete as diversas capacidades de contribuir para o bem-estar da sociedade. Os períodos “críticos”, por contraste, são marcados pelo colapso do consenso e pela desintegração da sociedade em fragmentos dissidentes e mutuamente hostis; o status é questionado, as relações se enfraquecem, e, na consequente luta pelo poder, as capacidades relativas das classes e dos indivíduos discordantes são esquecidas.

Trecho retirado do livro “Um Estudo da História”, de Arnold Toynbee, historiador britânico 1889-1975)

Jair Bolsonaro vai mesmo anunciar oito dos seus 15 ministros antes das eleições. Alguns já estão escolhidos, ou quase certos. […]No Ministério da Educação, o franco favorito é o diretor executivo da FGV Online, Stavros Xanthopoylos, especialista em educação à distância. Foi apresentado a Bolsonaro por Paulo Guedes.

Nota na coluna de Lauro Jardim, na edição do jornal O Globo de 26 de agosto.

   Prezados leitores, depois de uma longa ausência, eis que estou de volta. Não foram os acontecimentos recentes no Brasil motivos suficientes para que eu resolvesse voltar a escrever, ao menos por enquanto, mas minha leitura do livro acima citado. Nele, o autor, do alto do seu conhecimento enciclopédico sobre o que aconteceu ao longo de milhares de anos de atividades do homo sapiens em todos os quatro cantos do mundo, estabelece um padrão de como as civilizações desenvolvem-se, atingem o apogeu e fenecem. Para Toynbee, a liderança criativa da sociedade exerce o papel-chave no processo: é ela que, ao apresentar respostas satisfatórias aos desafios colocados pelo meio ambiente e pelas ameaças externas, ascende ao poder, controlando as massas, que aderem ao seu projeto por beneficiarem-se pela prosperidade trazida pelas decisões acertadas tomadas pela elite. No entanto, a vida em sociedade é dinâmica, e os desafios mudam ao longo do tempo. Pode ocorrer de aquelas respostas dadas pela liderança em um determinado momento não servirem mais depois. Se ela não for capaz de exercer a criatividade e encontrar novas soluções, a civilização começa a desintegrar-se, porque o que funcionava antes não funciona mais: a nata da sociedade que antes era criativa e ascendeu pelo mérito, transforma-se em um grupo fechado, preguiçoso, que se apega ao poder de qualquer forma, corrompido que foi pelos privilégios que a posição dominante lhe dá.

    Como todo esquema de interpretação da realidade, ele é simplista porque divide as eras em compartimentos estanques, o que quase nunca ocorre no lusco-fusco da miríade de interações humanas que fazem a história, e é mais facilmente aplicado a sociedades do passado, sobre as quais já sabemos o desfecho, ou a causa do óbito, como diriam os médicos-legistas. Difícil é fazer uso desse conceito dialético no momento presente, do qual participamos neste território brasileiro. Em que ponto estamos da linha de desenvolvimento? Estamos no começo da decadência, que levará à derrocada pelos múltiplos erros de julgamento da elite, ou estamos já na fase em que a incompetência da elite já está tão escancarada que ela está pronta para ser defenestrada e outros grupos na sociedade já se encontram capazes de dar respostas novas?

     Os sinais de que estamos em um período de grande discordância, como descreve Toynbee, são óbvios demais para serem ignorados. No Brasil de 2018, os especialistas não nos dão mais segurança, ao contrário, confundem-nos ainda mais. Afinal, prisão depois de sentença penal condenatória em segunda instância é constitucional ou não? Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, decidiram em 26 de junho soltar José Dirceu, condenado a 30 anos de prisão no âmbito da Operação Lava-Jato, sob a alegação de que a pena dele pode ser diminuída se os recursos que ele impetrou forem acatados. Um argumentando tortuoso para dizer o mínimo, que parece ter sido tirado da cartola para que os três partidários da presunção de inocência absoluta até o esgotamento de todos os recursos não tivessem que admitir claramente que estão se lixando para a decisão colegiada do STF que estabeleceu a prisão em segunda instância em 11 de novembro de 2016 por seis votos a cinco.  Decisão esta que embasou a colocação de Lula na prisão por decisão do colegiado do STF de 4 para cinco de abril neste ano. Tal inconsistência não é de espantar, considerando o que diz Conrado Hübner Mendes, professor do Departamento de Direito do Estado da USP: “é óbvio que o STF não funciona como órgão colegiado, não é um lugar que leva a colegialidade a sério.”

    Se nossos especialistas em Direito Penal se digladiam a respeito do que significa ser culpado no ordenamento jurídico brasileiro, os doutos em Direito Internacional também o fazem em sua seara. Afinal, a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU em 17 de agosto, recomendando que o Brasil tome todas as medidas necessárias para assegurar que Lula possa exercer seus direitos políticos na prisão, como candidato às eleições presidenciais, é o quê? Vincula o governo brasileiro ou é simplesmente uma recomendação que pode ser ignorada sem grande peso na consciência do país? Um pouco antes, em 30 de julho o Ministério Público Federal reabriu as investigações sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog, depois que o Brasil foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos em junho por não punir os responsáveis pelo “suicídio” dele em 1975.

    É verdade que o Brasil em 10 de dezembro de 1998 reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos e que o Comitê da ONU não tem característica de tribunal. Por outro lado, aqui também há um quê de inconsistência das nossas autoridades jurídicas. Afinal, o STF, em 29 de abril de 2010, decidiu rejeitar o pedido da OAB para que anulasse o perdão dado aos policiais e militares que foram acusados de praticar tortura e modificasse a Lei da Anistia, de 1979. Naquele mesmo ano, em novembro de 2010, a CIDH ao julgar o Caso Gomes Lund a respeito da Guerrilha do Araguaia, considerou que “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana”. Em suma, o Brasil, de 2010 a 2018, quando o caso Vladimir Herzog, foi reaberto, não seguiu a ordem da CIDH de investigar e punir os torturadores do aparato estatal, apesar de estarmos vinculados a ela por tratado internacional. Será que a recomendação da ONU a respeito da garantia a Lula do direito de ser candidato está sendo solertemente ignorada porque é a conveniência política do momento ou por uma razão estritamente técnica?

    Esses são meros exemplos da cacofonia que reina em nosso Brasil. Cabe perguntarmo-nos se estamos no fundo do poço e se a eleição de 7 de outubro significa que elegeremos um presidente que derrubará a velha ordem e dará uma resposta nova aos desafios do século XXI, em que a socialdemocracia vislumbrada pela Constituição de 1988 parece não ter espaço. Será a solução Posto-Ipiranga de Jair Bolsonaro mais uma falsa solução ou um lampejo de criatividade que nos tirará da areia movediça em que nos encontramos? Os sinais são contraditórios. De um lado, a ideia dele de enxugar o número de ministérios e fazer escolhas de nomes para ocupar os cargos de primeiro escalão sem toma-lá-dá-cá com partidos vai ao encontro do desejo do povo brasileiro de acabar com o presidencialismo de coalizão que tanta corrupção tem gerado na gestão do Estado. De outro lado, a solução Paulo Guedes de privatização de tudo o que é possível soa como mais do nosso velho conhecido capitalismo dos amigos (ou crony capitalism como os anglo-saxões referem-se a esse tipo de sistema), que vende a parte boa das estatais e deixa as dívidas com o povo brasileiro, como foi feito com as distribuidoras de energia elétrica e como pretendia ser feito com a Eletrobrás por Michel Temer. E a reforma da previdência: Bolsonaro proporá uma regra única a todos, funcionários públicos e privados, ou protegerá o grupo ao qual pertence, os militares, que gozam de tantas regalias a respeito da aposentadoria? Será que o novo de Bolsonaro será uma mera cortina de fumaça para que a minoria dominante continue a usufruir dos seus privilégios mandando a conta para outros? Provavelmente, nem o genial Arnold Toynbee, professor do King’s College de Londres e membro da delegação inglesa presente na Conferência de Paz que levou ao Tratado de Versalhes, se estivesse a analisar a discórdia em que o Brasil se encontra, não conseguisse chegar a nenhuma conclusão.

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