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Espinhos maquiavélicos

Posted by on 09/11/2020

A moralidade cristã enfatizava as virtudes femininas [gentileza, humildade, não resistência] porque os homens tinham as qualidades opostas de maneira ruinosamente abundante; algum antídoto e contra ideal tinha que ser pregado aos sádicos romanos do anfiteatro, aos bárbaros grosseiros que estavam entrando na Itália, aos povos sem lei que lutavam para se misturar à civilização. As virtudes que Maquiavel desprezava permitiam a construção de sociedades ordenadas e pacíficas; aquelas que ele admirava (e, como Nietzsche, porque ele não as tinha) permitiam a construção de Estados fortes e bélicos e a existência de ditadores capazes de matar milhões para impor a conformidade e manchar de sangue o planeta para expandir seu domínio. Ele confundia o bem do governante com o bem da nação; ele pensava demais a respeito da preservação do poder, raramente das obrigações inerentes a ele e nunca da corrupção a ele associada.  

Mas seu [de Rodrigo Bórgia] insight foi inspirado pela falta de moralidade política; ele não tinha nada da sabedoria mais elevada que compreende as características e prevê a tendência de uma época, e ele não sabia o que era um princípio.

Trechos retirados do livro “The Renaissance, A History of Civilization in Italy from 1304-1576 A.D.” de William James Durant (1885-1981), filósofo, historiador e escritor americano

   

    Prezados leitores, na semana passada falei neste meu humilde espaço de Catarina de Médici e do retrato favorável elaborado por Balzac no ensaio escrito em 1828 a respeito de sua atuação na preservação da monarquia francesa. Aos olhos do escritor, o fato de a florentina ser uma mãe desnaturada e não ter escrúpulos morais, mesmo porque não tinha nenhuma fé religiosa, era irrelevante à luz do seu gênio político, da sua vocação para o exercício do poder.

    Nesta semana, meu foco será em uma obra muito mais volumosa, de 728 páginas, escrita em 1953, com vocação enciclopédica, que pretendeu contar a história do Renascimento na Itália em todas as regiões em que ele se desenvolveu, Milão, Toscana e Úmbria, Mântua, Ferrara, Veneza, Emília-Romanha e Nápoles. Além de ter escrito capítulos sobre cada área geográfica, Will Durant também elaborou retratos específicos dos grandes personagens da época, papas, artistas, príncipes, duques, condottieres, filósofos. Para não deixar de lado a rainha da França, escolhi, como primeiro assunto de análise nessa fonte inesgotável de erudição que constitui a quinta parte da História da Civilização do historiador americano, o retrato que ele pinta de Nicolò Machiavelli (1469-1527).

    A ligação entre Catarina e Nicolò se dá pelo fato de ela ter levado o livro para a França quando para lá foi para casar-se com o segundo filho do rei Francisco I, de acordo com o que nos informa “A História da Civilização  na Itália de 1304 a 1576 A.D. Não é difícil ver traços maquiavélicos na atuação política de Catarina, no dividir para governar, na violência como método deliberado de manutenção do poder (Noite de São Bartolomeu). Mas se no ensaio balzaquiano a mulher implacável e fria se redime pelos esforços heroicos em prol da manutenção da unidade política da França em torno do regime monárquico, na “História da Civilização na Itália” os governantes que foram maquiavélicos na prática não recebem elogios desenfreados, porque a ótica do filósofo, historiador e escritor que passou a infância em Massachusetts e Nova Jersey e frequentou escolas católicas, é diferente.

    Durant traça em linhas gerais o âmago do pensamento político de Maquiavel, de que a moral individual cristã, de comportamento pacífico, de respeito ao próximo,  é incompatível com a conquista e manutenção do poder, os quais requerem força, malícia, astúcia, a famosa virtù que permite ao homem sobreviver aos caprichos da fortuna e ser bem-sucedido, conquistando a glória. Em suma, o príncipe de Maquiavel nas suas relações privadas pode ser um bom cristão, mas na sua atuação pública deverá ter um comportamento adequado para a preservação do Estado e a manutenção da lei e da ordem. Nesse sentido, primeiro o líder deve ser forte, cruel, implacável, usar de todas as armas para destruir seus inimigos e estabelecer seu regime, depois uma vez seu poder consolidado, ele deve exigir que a lei seja respeitada por todos os cidadãos para que haja paz e prosperidade.

    Essa é a receita maquiavélica, mas Durant na sua avaliação crítica da filosofia política do florentino levanta os problemas de tal abordagem, conforme o trecho citado na abertura deste artigo. Até que ponto a moral cristã deve ser abandonada em prol das virtudes romanas de força física e intelectual e da coragem? Pois se em certos momentos a boa fé, a gentileza, a compaixão, o perdão tornam o indivíduo fraco e vulnerável aos mais ambiciosos e inescrupulosos, por outro não há como haver justiça nem estabilidade sem que as pessoas possam confiar umas nas outras. Será que a doutrina maquiavélica de abandono total da moral religiosa não leva à fetichização do poder? Será que o exercício da violência para a criação e manutenção do Estado pelo príncipe acaba sendo simplesmente um meio de manter no poder um líder que ao agir amoralmente acabará corrompendo-se e abandonando qualquer ideia do bem comum? Como atingir o equilíbrio entre a necessidade do príncipe de afirmar seu poder e de deixar um legado para as gerações presentes e futuras em termos de ordem, paz, prosperidade e instituições sólidas?

    Durant não apresenta respostas, claro, mas ao mostrar a trajetória, dentre outros, de Cesare Bórgia (1475-1507) e de seu pai Rodrigo Bórgia (1431-1503), que foi o papa Alexandre VI, mostra os dilemas enfrentados pelos homens do Renascimento que colocaram as lições de Maquiavel em prática. Liberando-se das amarras do cristianismo, eles abraçaram o culto do intelecto e do gênio, dos ideais pagãos da Fortuna, do Destino e da Natureza em detrimento da ideia cristã de Deus. Mas em fazendo isso, muitos se perderam na violência, na cobiça e acabaram não deixando nada como legado. O caso do papa Alexandre VI é emblemático: preocupado em manter o poder temporal da Igreja Católica na Itália contra as investidas das potências estrangeiras, Rodrigo Bórgia negligenciou as reformas de que o catolicismo necessitava para continuar como bússola moral da sociedade e em fazendo isso deu margem à ascensão da Reforma Protestante, que faria a Igreja Católica perder um terço dos seus fiéis. Obcecado em manter o poder pelo poder, em fortalecer os Estados papais por meio das guerras travadas por seu filho, Rodrigo negligenciou por completo a origem do cristianismo nos pescadores pobres da Galileia. No longo prazo, essa falta de princípios morais contribuiu para o enfraquecimento da Igreja.

    Prezados leitores, os espinhos da coroa de louros maquiavélica são apenas um exemplo do instrutivo e equilibrado panorama proporcionado por Will Durant. O próximo assunto de análise será a arte no Renascimento. Aguardem.

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