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Contorcionismos barroco-jurídicos

Posted by on 21/12/2020

[…] uma interpretação adequada das normas regimentais ora impugnadas não se contenta com o simples cotejo da literalidade do texto do Regimento Interno com a literalidade do texto de dispositivo da Constituição de 1988; antes, exige reconstrução normativa sistemática, que promova e amplie […] as “potencialidades monogenéticas” de ambos os textos.

Trecho retirado do voto do Ministro Gilmar Mendes na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº 6.524, julgada em 6 de dezembro deste ano

Art. 5º Na segunda sessão preparatória da primeira sessão legislativa de cada legislatura, no dia 1º de fevereiro, sempre que possível sob a direção da Mesa da sessão anterior, realizar-se-á a eleição do Presidente, dos demais membros da Mesa e dos Suplentes dos Secretários, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.

  • 1º Não se considera recondução a eleição para o mesmo cargo em legislaturas diferentes, ainda que sucessivas.

Trecho do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, objeto da ADI nº 6.524 movida pelo Partido Trabalhista Brasileiro, que alegou sua inconstitucionalidade

Art. 59. Os membros da Mesa serão eleitos para mandato de dois anos, vedada a reeleição para o período imediatamente subsequente (Const., art.57, § 4º)

Trecho do Regimento Interno do Senado Federal, objeto da ADI nº 6.524 movida pelo Partido Trabalhista Brasileiro, que alegou sua inconstitucionalidade

  • 4º Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.

Parágrafo quarto, artigo 57 da Constituição Federal

    Prezados leitores, na semana passada prometi neste meu humilde espaço que lhes daria mais um exemplo deste equilíbrio precário entre opostos característico do barroco, tal como mostrado nos argumentos rocambolescos do padre Vieira para justificar a escravidão de negros africanos. O exemplo que tentarei explicar será o do voto de Gilmar Mendes acerca da reeleição dos presidentes do Senado e da Câmara Federal.

    Depois de 75 páginas de reflexões sobre como outros países regulam a matéria, sobre a história do Brasil e sobre o modo como as normas jurídicas devem ser extraídas dos textos legislativos, Gilmar chega à conclusão de que a melhor interpretação do artigo 59 do Regimento Interno do Senado Federal e do artigo 5º, parágrafo primeiro do Regimento Interno da Câmara dos Deputados à luz da Constituição é a de que a reeleição deve ser permitida uma única vez em qualquer caso, ou seja, em se tratando de reeleição na mesma legislatura ou de uma legislatura para outra.

  Para entender melhor este ponto, basta explicar que Rodrigo Maia é presidente da Câmara dos Deputados desde 2016 porque naquele ano ele foi eleito presidente para o biênio de 2016 a 2018 e pelo fato de 2018 ter iniciado uma nova legislatura e ele ter sido reeleito deputado, à luz do parágrafo 1º do artigo 5º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados ele pôde ser eleito para um novo mandato porque sua primeira eleição ocorreu no último biênio da legislatura anterior de 2014 a 2018. O objetivo do Diretório Nacional do PTB, autor da ADI 6524, foi o de obter uma declaração do STF de que toda e qualquer reeleição para qualquer cargo na Mesa do Senado e da Câmara é inconstitucional, de modo a preservar o processo democrático e evitar que caciques políticos se perpetuem no poder.

    Gilmar Mendes, na qualidade de relator, foi voto vencido e a reeleição, tanto de Rodrigo Maia quanto de David Alcolumbre, acabou sendo proibida pelo STF. O que causou espanto a respeito da opinião proferida por Gilmar Mendes foi o modo como ele conseguiu contorcer o sentido de “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente” do parágrafo 4º do artigo 57 e acabou chegando à conclusão de que a Constituição Federal permite a reeleição. O eminente jurista, com phD pela Universidade de Münster, na Alemanha, obtém este resultado sob três abordagens.

    Em primeiro lugar, o relator da ADI 6524 tira exemplos de países de democracia consolidada, como Estados Unidos, Reino Unido e Espanha, para corroborar a tese de que a reeleição nas casas legislativas é praticada sem “qualquer limitação”. Arthur Onslow foi presidente da Câmara dos Comuns em Westminster (cargo a que se dá o nome de Speaker na língua inglesa) de 1728 a 1761. Tip O´Neill foi Speaker do Congresso dos Estados Unidos de 1977 a 1987 e John W. McCormack o foi entre 1962 e 1971. Félix Pons foi Presidente do Congresso dos Deputados na Espanha entre 1986 e 1996 e Pío Garcia-Escudero foi Presidente do Senado naquele país entre 2011 e 2019.

    Em segundo lugar, Mendes detém-se sobre a história das relações do governo militar com o Congresso Nacional, para mostrar a gênese do item h), parágrafo único do artigo 30 da Constituição de 1969 (“será de dois anos o mandato para membro da Mesa de qualquer das Câmaras, proibida a reeleição”). Este artigo 30 confere à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal a competência para elaborar seus respectivos regimentos internos, mas ao mesmo tempo no parágrafo único impõem certas normas que obrigatoriamente devem constar desses regimentos. Na leitura de Gilmar, em vista das críticas manifestadas em tribuna por vários membros do Congresso às arbitrariedades do regime, essa interferência na elaboração do regimento é uma forma de apequenar os parlamentares, tolhendo uma prerrogativa que lhes é precípua, qual seja estabelecerem como irão autogovernar-se. Nesse sentido vedar a reeleição dos congressistas a cargos nas respectivas Mesas é uma ofensa à democracia, e não como quer o PTB, que ajuizou a ADI, um reforço do princípio democrático.

    O terceiro e último foco da abordagem do relator da ação é estritamente jurídico, baseando-se nos conceitos do Direito Constitucional, do qual Mendes é um dos maiores especialistas no Brasil. Conforme o trecho que abre este artigo, ao contrário do que um cidadão comum faria num esforço de interpretação da Constituição, não basta ler os respectivos artigos impugnados nos Regimes Internos do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, depreender o significado gramatical das sentenças e fazer o mesmo com o artigo que trata do mesmo assunto na Constituição Federal.  É preciso ir mais além, porque à luz da hermenêutica jurídica, o texto legislativo não é o mesmo que a norma jurídica a ser depreendida.

    Neste presente caso, o artigo 57 da Carta Magna deve ser interpretado de maneira sistemática, isto é, cotejando-o com outros artigos da própria Constituição, especificamente aqueles que dão ao Congresso a prerrogativa de elaborar seu Regimento Interno e com os artigos dos dois Regimentos Internos. Só a partir desse cotejamento é possível construir uma norma jurídica compatível com todos os textos objeto de apreciação. A partir dessa combinação de textos e considerando, com base na observação do direito comparado, que o lugar adequado do “detalhamento de processos e da organização interna dos Parlamentos” é o regimento interno, Gilmar Mendes estabelece que o parágrafo 4º do artigo 57 da Constituição Federal deve ser interpretado como uma permissão à reeleição dos membros da Mesa do Senado e da Câmara dos Deputados.

    Neste ponto cabe a pergunta: como fica o humilde brasileiro que lê a nossa Carta Magna e se depara com os dizeres “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente” e os considera como uma proibição? A boa leitura do documento que dá as linhas gerais da organização econômica, política e social do nosso país só pode ser feita por especialistas em Direito Constitucional, munidos que estão dos conceitos hermenêuticos necessários? Ou seria mais sensato que os nossos doutos Ministros do STF procurassem ater-se o mais possível à literalidade do texto para que nossa Constituição pudesse de fato ser mais acessível ao comum dos mortais e de fato concretizada por cada um dos cidadãos do Brasil na sua prática diária?

    Prezados leitores, ao final de seu caudaloso voto, Gilmar Mendes, citando seu colega Luiz Fux, fustiga “alguns grupos de poder que não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões” e “que acabam por permitir a transferência voluntária e prematura de conflitos de natureza política para o Poder Judiciário”. Sábias palavras. Uns partidos indo ao STF para ganhar no tapetão (no frigir dos ovos é isso o que o linguajar sofisticado de Fux quer dizer), os Ministros mostrando sua erudição jurídica e tornando a Constituição- Cidadã um texto esotérico para iniciados. E no meio do fogo cruzado, os brasileiros que, se no século XVII ouviam o padre Vieira falar que a escravidão dos negros redimiria a sociedade, hoje, em pleno século XXI, ouvem Gilmar Mendes dizer que “vedada a reeleição” quer dizer que ela é permitida. A convivência entre o sim e o não, entre o ser e o não ser, característica do barroco está mais vivo do que nunca entre nós. E nosso regime político cada vez mais desnorteado com tantos contorcionismos.

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