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Almas mortas

Posted by on 04/03/2021

D. Pedro II era brasileiro, carioca, mas fruto de uma cultura e educação europeias. O intelectual que morava dentro de um monarca, muitas vezes não era compreendido pelos brasileiros, mesmo os bacharéis, muitos dos quais ele assistiu aos exames de graduação. […] Ao mesmo tempo em que tentava entender o Brasil que governava, o monarca intelectual queria saber das literaturas, das línguas, das múmias, das invenções mais modernas, como a fotografia. Buscava conhecimento, a sua história, incentivava a busca por documentos da nossa história pelo mundo para conseguir compreender a nossa formação. Ele era dual, um intelectual dividido entre o país continental que governava e a sede de saber, de conhecer tudo, e buscar o espírito das luzes que jamais deixaria de procurar.  

Trecho retirado do livro “D. Pedro II, A história não contada” de Paulo Rezzutti

Conteúdos da sociedade russa tradicional sobreviveram nas formas sociais novas. Padrões de relações sociais nativos, e de raízes seculares, passaram a conviver com valores e padrões novos, gerando conflitos que se tornaram a substância de uma experiência histórica singular. Na literatura, os problemas da adaptação das formas importadas à experiência local concentravam as energias dos escritores, alimentavam os ricos debates intelectuais e atiçavam as expectativas do público.

Trecho retirado do prefácio escrito por Rubens Figueiredo para sua tradução de “Almas Mortas”, de Nikolai Gógol (1809-1852)

 

Tal capricho da natureza, aliás, ocorre em diversos quadros históricos, sem que se saiba em que tempo, de onde e por meio de quem foram trazidos para nós, na Rússia, se bem que às vezes nossos nobres, amantes da arte, comprem tais obras na Itália, a conselho de seus guias.

Trecho retirado de “Almas Mortas”, de Nikolai Gógol (1809-1852)

 

    Prezados leitores, na semana passada eu abordei neste meu humilde espaço a visão que Jorge Caldeira dá da politica econômica do Segundo Reinado em seu livro “História da Riqueza no Brasil”. Para ele, o governo central, comandado por D. Pedro II, condenou o Brasil à estagnação e a perder o bonde do capitalismo no século XIX por ter priorizado a austeridade fiscal e monetária, o pagamento da dívida pública, o balanço das contas do governo, em detrimento dos agentes econômicos privados, que não tinham acesso a crédito e nem tinham a sua disposição um arcabouço jurídico que viabilizasse a criação de empresas. O veredito negativo do autor é tão taxativo que na abertura do capítulo II do seu livro, para reforçá-lo, Caldeira coloca uma figura, retirada da Revista Ilustrada, mostrando D. Pedro II sentado em uma cadeira, rodeado de jornais, e cochilando, com a cabeça pendendo.

    É inegável que D. Pedro II tirava seus cochilos durante as reuniões do Conselho de Ministros e nas sessões do Parlamento em que estava presente, mas isso era devido aos seus problemas de saúde, notadamente ao diabetes, que se agravou com o avanço da idade do monarca. Por outro lado, como mostra Paulo Rezzutti em sua biografia do nosso segundo e último imperador, D. Pedro II era um homem culto, leitor compulsivo que falava várias línguas, que interagia com grandes artistas, escritores e cientistas da época, como o compositor alemão Richard Wagner, o romancista francês Victor Hugo e o cientista Louis Pasteur. Profundamente preocupado com a educação, ele inspecionava escolas e fazia alunos e professores prestarem contas de suas atividades. Se compararmos a curiosidade intelectual que o estimulou até os últimos dias de sua vida com a boçalidade arrogante dos que atualmente nos governam, houve definitivamente uma perda na nossa transição do Império para a República em termos de civilidade, de cultura, de padrões éticos.

    Em última análise, combinando a descrição que Jorge Caldeira faz da política econômica retrógrada de D. Pedro II com o retrato pintado por Paulo Rezzutti ao narrar a vida de um homem consciencioso, que cumpriu seu dever até o fim, que quando foi deposto pelo golpe de um punhado de militares decidiu não resistir para evitar o derramamento do sangue de brasileiros, o que fica é a ambiguidade de um brasileiro que do ponto de vista racial e cultural era um branco europeu, mas que viveu e atuou num país que foi constituído sob o signo da diversidade racial e cultural.

    O padrão-ouro de D. Pedro II, que ele adotou materialmente na política monetária e espiritualmente no seu modo de agir como homem e como governante, era a cultura de países como a França, a Itália, a Alemanha, a Inglaterra. Talvez seu maior erro, responsável por deixar uma má impressão geral de sua atuação como governante, tenha sido não perceber a impossibilidade de aplicar o molde europeu à realidade tropical sem fazer adaptações e até grandes concessões. Não percebendo tal discrepância essencial, o legado de D. Pedro II acabou sendo superficial, resumindo-se ao Colégio que leva seu nome, à cidade imperial, Petrópolis, em suma um verniz de resplandescência aplicado à realidade de um povo em sua maioria analfabeto, pobre e escravizado.  É neste ponto que introduzo o tema da literatura russa e a relevância específica que ela pode ter para nós, brasileiros, independentemente de suas qualidades universais, que eu já abordei aqui em outras ocasiões, ao falar, por exemplo, de Dostoiévski.

    Como descreve Rubens Figueiredo em seu prefácio, a Rússia sofreu ao longo de sua história do mesmo embate entre forças antagônicas, de um lado o desejo da elite de ter comportamento e gosto europeus e de tornar o país o mais parecido possível com os países da Europa Ocidental, e de outro lado o substrato étnico e cultural eslavo, além é claro da realidade material da servidão, que só foi abolida em 1861, um pouco antes de nós mesmos abolirmos nossa instituição igualmente vergonhosa, a escravidão. Essa dialética foi objeto de reflexão dos escritores russos, e cada um mostrou a inconsistência entre os sonhos europeizantes e a realidade local a seu modo. No caso de Nikolai Gógol, ele o faz em um tom irônico e satírico, como mostra o terceiro trecho que abre este artigo.

    No universo retratado em “Almas Mortas” há os senhores da elite que fazem rapapés uns aos outros, que viajam à Europa e fazem as coisas certas para absorverem a civilização-modelo, como por exemplo comprar obras de arte na Itália. Pável Ivánovitch Tchítchikov, o herói do livro, encaixa-se no molde do homem educado, que fala bem, que é agradável, mas debaixo do verniz que satisfaz todos os incautos sobre sua retidão de caráter, esconde-se um autêntico picareta, que dá um golpe nos senhores de terra de uma província valendo-se da falta de registro oficial da morte de servos. Esses servos falecidos que dão a Tchítchikov a possibilidade de locupletar-se dão nome ao livro de Gógol.

    Em suma, um personagem equivalente aos nossos bacharéis letrados, que como afirma Paulo Rezzutti, raramente estavam à altura intelectual de D. Pedro II mas que, considerando as circunstâncias da vida brasileira, eram o melhor que tínhamos a oferecer para nos habilitarmos a fazer parte do clube europeu. Tal anseio de pertencimento, compartilhado, tanto pela elite da Rússia quanto pela do Brasil, era minado lá e aqui pela realidade das almas mortas, da servidão e da escravidão que perenizavam a desigualdade, a exploração, a indignidade contrárias às luzes da civilização almejada.

    Prezados leitores, Pedro de Alcântara e Pável Ivánovitch Tchítchikov simbolizam, um no modo de governar, o outro no modo de enganar trouxas, as contradições de países como Brasil e Rússia, sempre envolvidos em relações de amor e ódio com o modelo ocidental que no século XXI acaba sendo corporificado pelos Estados Unidos. Felizes os russos que tiveram artistas que deram expressão a essas ambiguidades e felizes os brasileiros que podem ler a tradução de livros como “Almas Mortas” e ver o quão nossa elite que agora sonha com os Estados Unidos parece-se com a elite da época tsarista que sonhava com a Europa.

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