browser icon
You are using an insecure version of your web browser. Please update your browser!
Using an outdated browser makes your computer unsafe. For a safer, faster, more enjoyable user experience, please update your browser today or try a newer browser.

Da ficção dos fatos e dos fatos da ficção

Posted by on 09/04/2021

Ninguém mais quer admitir que inventa. A única coisa que importa é o documento, que deve ser preciso, datado, provado e autêntico. Os frutos da imaginação estão banidos, porque são inventados… Para que o público possa acreditar no que lhe é dito, é preciso convencê-lo de que não está sendo “gozado”. A única coisa que conta hoje, é o “fato verdadeiro”. […] Faz parte do espírito desta era acreditar que qualquer acontecimento, não importa quão suspeito possa parecer, é superior a qualquer exercício de imaginação, não importa quão verdadeiro.

Trecho retirado da coleção de ensaios “De fato e de ficção”, de autoria do escritor americano Gore Vidal (1925-2012)

Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima de sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.

Trecho retirado do livro “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago (1922-2010)

 

Um escritor português, ateu confesso e comunista impenitente, como ele mesmo se apresenta, resolveu elaborar uma delirante vida de Cristo, na perspectiva da sua ideologia político-religiosa e distorcida por aqueles parâmetros. […] A apregoada beleza literária, a existir nesta obra, longe de atenuante e muito menos dirimente, constitui circunstância agravante da culpabilidade do réu, seu autor.

Comentário feito em 1992 pelo bispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueiras sobre a obra “O Evangelho segundo Jesus Cristo”

    Prezados leitores, há algumas semanas eu tratei do exercício de imaginação do escritor português José Saramago ao contar sob o seu ponto de vista de ateu a vida de Jesus Cristo, enfocando o pai de Jesus, José, que morre crucificado. Teci elogios ao autor pelo fato de a invencionice dele ter permitido mostrar as condições difíceis dos pobres, agora e sempre. Nesta semana, pretendo tratar do personagem principal, o Cordeiro de Deus, como o chama a Igreja Católica.

    O trecho que abre este humilde artigo faz referência a um encontro de Jesus Cristo com Deus em uma barca no meio do mar. Naquela ocasião, Deus revela a Jesus suas intenções em relação a ele, intenções estas que se revelam um puro e simples projeto de poder. O objetivo é conquistar novos crentes, aumentar a participação do Deus único no mercado de deuses e deusas, deixando assim o nicho do povo judeu para atingir outro público. A ideia de Deus é engenhosa para alargar sua base de devotos: fazer Jesus morrer de forma inocente e ignominiosa como mártir para causar comoção; contar parábolas e histórias e dar exemplos morais que não terão a taxatividade da lei mosaica e que servirão para obscurecer o entendimento dos possíveis fiéis, dando assim uma aura de mistério à religião e aumentando a admiração dos homens pela inescrutabilidade da divindade.

    Jesus, inquieto ante a morte na cruz que o espera, pergunta a Deus que sofrimentos e mortes serão necessários para que Deus seja vitorioso. Deus reticente, começa a contar então a história da Igreja Católica,  enumerando os santos que serão torturados e sofrerão mortes atrozes em nome da fé. Jesus insiste em saber mais detalhes e Deus revela que haverá guerras em nome DELE, as Cruzadas e haverá a Inquisição, em que pessoas serão queimadas vivas na fogueira.  Tendo dado as instruções a seu Filho sobre como deverá ser seu ministério, Deus vai embora, deixando Jesus insatisfeito com o papel que irá desempenhar.

    O Cordeiro de Deus não quer ser responsável por causar tanto sofrimento aos homens e ao longo de sua pregação pela Palestina elabora um estratagema. Ao ser apresentado perante os príncipes dos sacerdotes e escribas e depois a Pôncio Pilatos, o governador romano, Jesus identifica-se como rei dos Judeus, mas ao ser questionado se é Filho de Deus, ele nega considerar-se como tal, alegando que jamais afirmou isso. A ideia de Jesus é que se for visto como o rei dos Judeus e não Filho de Deus, ele poderá frustrar o projeto divino. Pôncio Pilatos acaba condenando-o à morte na cruz por ser inimigo de César e atende ao seu pedido de que uma placa seja colocada em cima de sua cruz dizendo: Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus. Como mostra a descrição de Saramago dos últimos instantes de vida do primeiro mártir da Igreja, a tentativa de burla de Jesus dá em nada, ao contrário só concretiza as intenções divinas, pois Deus mesmo sorri a ele mostrando sua satisfação que tudo tenha saído conforme ELE queria.

    Dessa forma, o fruto principal da imaginação do autor português é um Jesus Cristo que tem uma profunda compaixão pelo ser humano, e que se rebela contra o fato de ser um instrumento para a constituição de uma Igreja que será fonte de opressão e de sofrimento.  Sua rebeldia, no entanto, é inútil, em face da onipotência de Deus. Sob essa perspectiva, os destinos de José, o pai, crucificado por obra dos romanos, e de Jesus, o filho, crucificado por obra de Deus, se assemelham na narrativa materialista e antireligiosa de Saramago: ambos morrem nas mãos dos poderosos deste mundo, quer estes estejam no céu ou em algum palácio. Contra esses poderosos, os miseráveis nada podem porque os que estão em cima sempre vencem e trucidam os que estão embaixo.

    Prezados leitores, não é de estranhar que “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, lançado em 1991, tenha provocado reações virulentas como as do bispo de Braga citado acima, o que levou José Saramago a sair de Portugal e mudar-se para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde viveu até morrer. Gore Vidal, em suas reflexões sobre a arte da literatura nos ensaios que compõem “De fato e de ficção”, lamenta que ela não seja mais cultivada pelas pessoas mais talentosas porque atualmente as pessoas descartam a ficção por ser uma mentira e preferem meras descrições de fatos que comprovadamente aconteceram. Mas o ponto defendido pelo ensaísta americano é que a mentira ficcional é mais verdadeira do que todo o conteúdo das revistas, dos jornais e hoje em dia – algo que Gore Vidal não chegou a testemunhar – de toda a mídia social porque ao se propor como pura criação fruto de uma determinada técnica a literatura almeja a beleza, que para um cultor dos valores da antiguidade clássica como Vidal está associada à verdade.

    Sob essa perspectiva “O Evangelho segundo Jesus Cristo” é um delírio que distorce a vida de Jesus Cristo, tal como narrada nos livros  canônicos da Igreja, mas em sendo delírio, ele lança luz sobre a condição humana dos impotentes que compõem a esmagadora maioria da humanidade desde que o mundo é mundo. José Saramago pode ter se deixado arrebatar pelo seu ateísmo inflexível no último trecho de sua obra, e simplificado em demasia uma criatura complexa como Jesus Cristo, a meio caminho entre o mundo do espírito e o mundo da matéria, mas seu exercício de imaginação permanece de pé por nos fazer olharmo-nos no espelho e vermos em nós o indivíduo que luta de maneira quase sempre inglória contra a autoridade.

    Prezados leitores, Gore Vidal tinha razão: jamais duvidem do poder revelador da ficção, por mais mentirosa que ela seja.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *