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Pátria

Posted by on 16/05/2021

Autocontrole, moderação, equanimidade na fortuna e na adversidade […]. Se é uma virtude obedecer às leis, os espartanos eram muito mais virtuosos do que maioria dos homens. Aqui foi, claro, onde Platão encontrou os esboços da sua utopia, um pouco obscurecida por uma estranha indiferença às Ideias. Cansados e amedrontados com a vulgaridade e o caos da democracia, muitos pensadores gregos refugiaram-se na idolatria da lei e da ordem de Esparta.

[…] os atenienses estavam construindo, a partir de mil injustiças e erros, uma civilização de amplo alcance e de atividade intensa, aberta a toda nova ideia e ávida por estabelecer interações com o mundo, tolerante variada, complexa, luxuosa, inovadora, cética, criativa, poética, turbulenta, livre.

Trechos retirados do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Euskadi Ta Askatasua (em basco: Pátria Basca e Liberdade), mais conhecido pela sigla ETA, foi uma organização nacionalista basca armada. […] Foi fundado em 1959 como um grupo de promoção da cultura basca. No final da década de 1960 evoluiu para uma organização militar separatista, lutando pela independência da região histórica do País Basco, cujo antigo território atualmente se distribui entre a Espanha e França. Ao mesmo tempo, o ETA assumiu uma ideologia marxista-leninista revolucionária […] Desde 1968, o ETA foi responsabilizado pelas mortes de 829 pessoas e por ferimentos causados a milhares de outras, além de dezenas de sequestros. Estima-se que mais de 400 membros do ETA estejam em prisões da Espanha, França e outros países.

Trecho do verbete da Wikipedia sobre a organização terrorista que foi declarada oficialmente extinta em 2 de maio de 2018

    Prezados leitores, os dois primeiros trechos que abrem este artigo farão todos que o lerem lembrar-se das suas aulas de História Antiga em que se tratava da civilização grega. Invariavelmente havia a comparação dos dois modelos políticos e sociais, o ateniense e o espartano. A descrição detalhada de Will Durant sobre as duas cidades permite tirar lições sobre acontecimentos históricos muito posteriores ao tempo em que Esparta e Atenas eram vivas e faziam parte da Hélade, isto é, dos valores e ideais da civilização grega. Nesta semana, meu foco será na primeira, por razões que ficarão claras ao final.

   Esparta era uma sociedade em que todo cidadão do sexo masculino era retirado da sua família aos sete anos para ser educado com outros homens até a idade dos 30 anos, quando então era-lhe permitido constituir família. A educação constituía-se basicamente de treinamento militar, uma necessidade considerando que a elite dominante, dona das terras adquiridas pela conquista realizada pelos invasores dóricos da Lacedônia e da Messênia, era em número sete vezes menor do que a classe dos hilotas, os escravos encarregados do trabalho pesado. Durant  define de maneira sucinta que tipo de formação dava-se aos espartanos: não se tratava de colocá-los em contato com teorias abstratas sobre o que é a virtude ou o bem, mas de inculcar hábitos virtuosos pela repetição contínua de comportamentos que seguissem o padrão: comer de maneira frugal, vestir-se simplesmente, aprender a lutar, privar-se de confortos materiais, em suma violentar a carne de todas as maneiras para fazer dos homens a personificação de um ideal e prepará-los para a guerra seja para esmagar revoltas dos escravos ou para destruir os inimigos externos. E morrer lutando por Esparta era a honra suprema, cujo contraponto era a ignomínia de voltar vivo de uma guerra perdida.

    De acordo com Durant, essa ênfase no sacrifício do indivíduo em prol da Pátria foi facilitada e consolidada pela introdução do Código de Licurgo, lendário ou real rei de Esparta que foi responsável pela sistematização e harmonização de várias leis consuetudinárias que se tornaram sagradas ao serem codificadas. Os cidadãos obedeciam à lei estritamente, desempenhando seu papel na engrenagem que mantinha o controle de poucos sobre muitos. Daí a caracterização de Esparta como o império da lei, executada ao custo do corpo e do espírito do homem, já que as manifestações artísticas em sua maior parte, à exceção da música, eram consideradas nocivas aos objetivos militaristas, pois faziam o indivíduo desviar-se da norma.

    O balanço final do historiador e filósofo americano é claramente desfavorável a Esparta. Violentando a natureza humana, inclusive aquilo que ela tem de vicioso, o sistema do primado absoluto da lei e da ordem acabou sendo um fim em si mesmo que cegou a sociedade espartana, fazendo-a concentrar-se em sua própria sobrevivência como ente coletivo, à custa de tudo e de todos, o que levou à sua destruição pelos que ressentiam sua arrogância. Nesse sentido, em que pese Esparta ter sido alvo de admiração por parte de pensadores gregos, seu legado foi nulo, porque como afirma Durant no segundo trecho deste artigo, o espírito humano alimenta-se dos erros, dos vícios, da liberdade, do caos: perfeição corporificada só leva à estagnação.

    É impossível não ler sobre Esparta e a ideologia de Estado que ela colocava em prática, sem traçar paralelos, aliás essas comparações são uma das utilidades do estudo da História. Humildemente ofereço-lhes uma referência à trajetória do grupo separatista ETA que atuou entre 1959 e 2018 em prol da independência do País Basco, tal como retratada em uma minissérie da HBO chamada Pátria.

    Os personagens são todos bascos, mas dividem-se em turmas distintas: há aqueles que valorizam suas especificidades culturais e linguísticas, diferentes do resto da Espanha, mas que querem viver sua vida normal como cidadãos do país e trabalhar casar e ter filhos; há outros para os quais isso não basta e é preciso lutar pela independência do pequeno enclave, custe o que custar. Quem defende a entente com o Estado espanhol é considerado pelos membros do segundo grupo traidores, covardes, dignos de pena e até de morte, por serem obstáculos à causa. Assim é que na minissérie, Jesús Maria “Txato” Lertxundi Altuna, dono de uma transportadora no vilarejo onde se desenrola a ação, depois de passar semanas vendo seu nome sendo pichado nas ruas com insultos, e ser ostracizado por seus amigos por ser considerado inimigo da causa independentista, é assassinado por Joxe Mari Garmendia Uzkudun, que abandona sua família para tornar-se membro do ETA, e a quem Txato conhecia desde a infância do seu algoz. Para Joxe Mari tais relações pessoais não importam, e o principal critério de avaliação de uma pessoa não são suas qualidades morais, mas sua utilidade ou não para a criação do País Basco como entidade política autônoma.

    Esse assassinato de um basco por outro acaba servindo como emblema do dilema enfrentado pelo ETA e que talvez explique em parte sua derrocada. A morte ou a mutilação de pessoas inocentes acabaram alijando uma parte da população do País Basco, que embora se identificasse com a língua e a cultura, não considerava a independência política um ideal absoluto que devesse ser colocado em prática de qualquer maneira. No final das contas, hoje em dia o ETA é conhecido como sendo uma organização terrorista, com todas as conotações negativas que essa palavra tem. Será que o sacrifício de milhares de vítimas ao longo de quase 60 anos valeu a pena em termos daquilo que foi conquistado? Afinal a autonomia concedida pelo governo espanhol a três províncias da região basca – Álava, Biscaia e Guipúscoa – também foi concedida à Catalunha, que embora tenha desejos de separar-se nunca teve uma organização que tenha trilhado a rota radical do ETA.

    Prezados leitores, recomendo-lhes nestes tempos de falta de convívio pessoal assistir a Pátria.  Sob a luz da história de Esparta, que se consumiu no fogo da sua própria obtusidade ideológica, o destino infeliz do ETA e de seus membros torna-se mais inteligível.

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