Leibniz, que tinha uma mentalidade cósmica, depois de estudar a filosofia chinesa, fez uma conclamação em prol da mistura e da fertilização mútua entre o Ocidente e o Oriente. “A condição das coisas entre nós,” ele escreveu, em termos que são úteis em cada geração, “é tal em vista do quanto a moral foi corrompida, que eu considero quase que necessário que missionários da China deveriam ser enviados a nós para nos ensinar o objetivo e a prática da teologia nacional … Porque eu acredito que se se um homem sábio fosse nomeado juiz … da bondade das pessoas, ele concederia o prêmio máximo aos chineses.
Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)
Em pesquisa inédita do Instituto Ipsos, que apresentou a pergunta “Você confia no próximo?” a 22500 pessoas em trinta países, o Brasil aparece em último lugar – só 11% responderam “sim”, muito abaixo da média global, de 30%. […] A pesquisa instala a China no primeiro lugar em confiança – lá, quase 60% da população põe a mão no fogo pelo próximo.
Trecho retirado do artigo “País de desconfiados”, publicado na edição da revista VEJA de 6 de abril
Prezados leitores, confesso que me encaixo perfeitamente no perfil de desconfiados detectado pela pesquisa da IPSOS, que é o objeto da matéria citada na abertura deste artigo. Exerço a desconfiança cotidianamente e o objeto primordial do meu pé atrás são os operadores de telemarketing ativo, que nos ligam oferecendo produtos, promoções e contratos especiais. Considero que são todos mentirosos, que usam linguagem enganosa para convencer-nos a fazer coisas que nos prejudicarão financeiramente, mas que fazemos o que eles nos propõem vencidos pelo cansaço causado pelo assédio incessante. Minha desconfiança é tamanha que nem quando me deparo com prova em contrário eu deixo de ter o pé atrás.
Há alguns meses a provedora da minha internet ofereceu-me mais velocidade de conexão pelo mesmo preço e quis marcar uma visita do técnico para mudar o roteador e instalar um equipamento mais potente. Como eu não tinha que assinar nada e nem fazer nenhuma opção pelo telefone, resolvi concordar com a visita e realmente fizeram o que prometeram. Hoje tenho uma internet melhor pelo mesmo preço. Isso não significa que meu preconceito tenha sido alterado. Quando há três semanas ligaram-me oferecendo uma linha telefônica fixa, um pacote melhor da TV a cabo e uma diminuição do preço fixo dos serviços, eu recusei terminantemente porque não acreditei que eu seria beneficiada. A diminuição do preço certamente é ilusória, eu pensei, eles darão um desconto com uma mão para tomar meu suado dinheiro com a outra. Na segunda vez em que a operadora ligou fazendo a oferta eu desliguei na cara do atendente dizendo que não tinha interesse.
Em suma, nem dou o benefício da dúvida à empresa e prefiro perder a oportunidade de um bom negócio a correr o risco de confiar e ser enganada. E assim somos nós brasileiros. De acordo com o artigo da VEJA, isso se deve à nossa formação histórica, em que não houve o estabelecimento de um projeto comum entre os indígenas e os portugueses, o que levou à desarmonia e ao clima de desconfiança generalizado que reina nas terras tropicais desde então. Já a posição da China, em primeiro lugar, não é explicada de uma forma histórica, talvez porque o autor da explicação, Marcos Calliari, CEO da IPSOS, não se debruçou sobre a história da China que lhe permitisse ver certas regularidades culturais. Calliari apenas menciona a presença do Estado forte proporcionado pelo regime ditatorial, e a consequente ênfase no coletivo e existência de uma estabilidade econômica e política que tem impacto sobre o modo como as pessoas constroem suas relações.
Mas será que a confiança mútua que os chineses têm é fruto simplesmente da mão forte do partido comunista que impõe o controle detalhado da vida dos cidadãos? Há algumas semanas eu descrevi neste humilde espaço o sistema de créditos sociais em vigor na China desde 2009 e sua relação com os princípios da ordem social estabelecida de baixo para cima proposta por Confúcio (551-479 a.C.). Talvez o segredo da prosperidade da China nas últimas décadas seja que os líderes comunistas estejam na verdade desfazendo-se discretamente do marxismo ateu importado do Ocidente e adotando princípios de comportamento elaborados ao longo de seu longo percurso civilizacional, princípios estes que o polímata e filósofo nascido em Leipzig Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) já havia detectado ao estudar a filosofia chinesa, conforme o trecho que abre este artigo.
Diante da decadência do cristianismo, que não mais conseguia atrair as mentes brilhantes da Europa e era por elas considerado quando muito um mero instrumento de controle social fundando na superstição, Leibniz, o inventor do cálculo matemático, via na teologia chinesa uma fonte de inspiração para que os Ocidentais se livrassem da corrupção que ele então via ao redor de si, uma fonte de regeneração moral. Sob essa perspectiva, independentemente da discussão sobre se regimes ditatoriais são mais eficientes do que democracias, o sucesso da China, está ligado ao fato de que Xi Jiao Ping, que em 2012 foi alçado ao posto de Secretário-Geral do Partido Comunista do país, tenha sabido recuperar o patrimônio cultural e espiritual acumulado ao longo de vários milênios e que foi admiração de um europeu de alto nível intelectual já na virada do século XVII para o século XVIII.
Os fatos econômicos falam por si: segundo dados da Economist, em 2010 havia 47 milhões de pessoas na classe média no Império do Meio. Em 2020 a estimativa é que haja 472 milhões de pessoas na classe média. Os resultados da pesquisa da IPSOS mostram que, recuperando a principal vertente da filosofia chinesa, o confucionismo, a liderança do país conseguiu estabelecer um círculo virtuoso de confiança mútua, que facilita as relações entre as pessoas, diminui a corrupção e viabiliza a prosperidade.
Já no Brasil, a situação é preocupante, de acordo com a cientista política Nara Pavão, citado no artigo de VEJA. Temos o círculo vicioso da desconfiança mútua que dificulta as relações entre as pessoas, tornando-as menos transparentes e mais sujeitas à manipulação e à corrupção, o que leva a um ceticismo generalizado em relação aos indivíduos e às instituições.
Assim, nem democracia nem ditadura esclarecida são garantia de prosperidade: se ter o direito de votar fosse suficiente, nós no Brasil não oscilaríamos entre a euforia e o ceticismo como tem acontecido conosco desde o fim da ditadura militar, em 1985; e se a ditatura esclarecida fosse suficiente para fazer as coisas acontecerem, os líderes do partido comunista chinês não teriam realizado uma mudança de rota livrando-se do marxismo revolucionário para se valerem das tradições da civilização chinesa, segundo as quais a única ordem social possível é aquela construída a partir do indivíduo, passando pela família até chegar ao Estado.
Prezados leitores, como o próprio Durant mostra em sua monumental História da Civilização, este ente cultural, social, espiritual e econômico é frágil, requer investimento permanente na sua manutenção e um evento inesperado pode abalá-la e destruí-la por completo. Independentemente do seu tempo de duração, as civilizações duram enquanto dura o empenho e o esforço das pessoas em preservá-las e isso só se consegue quando uns confiam nos outros para perseguir o objetivo comum. Oxalá, algum dia cheguemos no Brasil a este nível de coesão social. Enquanto isso, quando olharmos para a China não olhemos com inveja da mão forte do Estado que tudo pode, mas com admiração pelos ensinamentos filosóficos que deixaram uma marca positiva no modo como as pessoas se comportam e se relacionam.