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Ressalvas democráticas

Posted by on 07/09/2022

Se a estrutura básica é injusta, esses princípios [o princípio da diferença e o princípio da eficiência] autorizarão mudanças que poderão diminuir as expectativas de alguns dos membros das classes mais abastadas; então, a concepção democrática não é consistente com o princípio da eficiência se esse princípio é interpretado como significando que somente mudanças que melhoram a situação de todos são permitidas.

Trecho retirado do livro Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)

O que o país gasta com educação era para ter um aprendizado muito melhor, a mesma coisa no saneamento, infraestrutura. Há um descuido muito grande, não só com a gestão, mas também com o resultado da política pública. Como se apenas realizar o gasto fosse necessário.

Trecho de uma entrevista dada pelo economista Marcos Lisboa, ex-secretário de política econômica e atual diretor-presidente do INSPER ao jornal O Globo e publicada em 4 de setembro

Quanto à Abolição, as iniciativas do imperador no sentido de extinguir gradualmente o sistema escravista provocaram fortes ressentimentos entre proprietários rurais, e não só entre eles. Os fazendeiros de café do Vale do Paraíba desiludiram-se do Império, de quem esperavam uma atitude de defesa de seus interesses. Com isso, o regime perdeu sua principal base social de apoio.

Trecho retirado do livro “História do Brasil”, do historiador e cientista político Boris Fausto (1930-

    Prezados leitores, na semana passada eu introduzi a vocês a concepção político-filosófica de John Rawls, associando-a ao liberalismo e à eficiência de Pareto. Para ilustrar meu ponto, eu falei do PROUNI, que democratizou o ensino superior, mas não proporcionou ao país os profissionais com as habilidades necessárias nas ciências exatas para podermos dar um salto de crescimento econômico pelo estímulo à inovação e ao ganho de produtividade resultante. Meu parecer foi de que o PROUNI não é eficiente, pois ele melhora o lado dos que nunca teriam frequentado uma universidade se não tivessem recebido a ajuda financeira do governo e piora o lado dos que arcam com os custos pagando impostos, porque a sociedade toda financia um programa que não proporciona o aprimoramento da qualidade na formação dos nossos recursos humanos. Em suma, é mais um item da carteira populista do Partido dos Trabalhadores.

    Essa dimensão da falta de eficiência das políticas públicas é enfatizada por Marcos Lisboa, conforme o trecho que abre este artigo. O governo investe em programas e depois não avalia os resultados concretos deles, o que para o diretor-presidente do INSPER contribui para manter o Brasil “na armadilha de baixo crescimento há quatro décadas”.  Até aqui tudo o que eu lhes trouxe corrobora minha interpretação liberal do que John Rawls quis dizer ao falar de justiça. No entanto, é preciso fazer certas ressalvas a esse quadro liberal que eu pintei do pensamento do filósofo americano, pois do contrário eu estaria deturpando-o. Eu o farei explicando o lado negro da eficiência paretiana, para o qual Rawls chama a atenção dos leitores de modo a modular seu liberalismo.

    Conforme ele explica na seção “O Princípio da Eficiência”, supondo uma sociedade em que haja a instituição da servidão – diga-se de passagem, algo análogo ao que tivemos no Brasil durante os 388 primeiros anos de nossa existência –, caso houvesse a abolição da servidão por decisão política, tal abolição certamente prejudicaria os interesses dos proprietários rurais e do ponto de vista de Pareto seria ineficiente, pois seria um jogo de soma zero, em que o benefício de um grupo seria contrabalançado pelo malefício causado a outro. Tal situação foi exemplificada em nosso país ao final do século XIX, conforme o trecho no início deste artigo: a abolição da escravidão sem indenização aos proprietários rurais os fez ter prejuízos financeiros e foi um dos fatores que contribuíram para a queda da Monarquia e a instauração da República, em 1889.

    Em que pese ter havido perdedores com a libertação dos escravos em 1888, a saber latifundiários e a família real brasileira, será que a aplicação pura e simples do princípio da eficiência serve para estabelecer o que é justo em uma sociedade? Daí por que, conforme o trecho retirado de “Uma Teoria da Justiça” citado acima, Rawls refuta a ideia de que só pode ser justo aquilo que é eficiente, isto é, aquilo que melhora as condições para todo mundo. Pois haverá sociedades em que o acesso aos bens sociais básicos – em termos gerais direitos, liberdades, oportunidades, renda e patrimônio – é tão discrepante que é preciso uma modulação que leva a uma concepção democrática da justiça. Essa modulação estabelece que só poderão ser toleradas a distribuição desigual e não igualitária dos recursos, levando à existência de classes sociais, e a aplicação do princípio da eficiência, caso isso sempre leve a que os grupos com menos acesso aos bens sociais possam gozar dos maiores benefícios possíveis. Assim, será justa uma medida que beneficie as camadas mais pobres da sociedade apenas pelo fato de ela diminuir as diferenças de acesso aos bens sociais.

    Sob essa perspectiva, um programa como o PROUNI certamente não é eficiente, pois ele não promove a qualidade e não promove o mérito. Nenhuma aferição objetiva do conhecimento adquirido é realizada e as universidades privadas que gozam do benefício das mensalidades pagas pelo governo têm todo o interesse em facilitar a vida do aluno de modo que ele possa cumprir os quatro anos regulares. No entanto, à luz da justiça democrática de Rawls, uma sociedade não pode ser baseada só na recompensa ao talento e ao mérito, pois eles dependem de fatores acidentais que fogem ao controle humano e social e jamais poderão ser distribuídos de maneira igual a todos os membros da sociedade, de modo a criar um ambiente de competição em igualdade de condições entre todos os membros da sociedade. Há pessoas mais inteligentes que outras, há pessoas com melhor estrutura familiar, há pessoas não sujeitas a vícios ou a doenças e a recompensa ao mérito só reforça desigualdades estruturais. A sociedade deve também proporcionar aos cidadãos autorrealização, independentemente das vantagens competitivas de cada um na luta pelos bens sociais.

    Prezados leitores, fica aqui feita minha ressalva democrática, para o bem da honestidade intelectual: a concepção de justiça de Rawls não é liberal, mas democrática. O PROUNI pode não nos dar os engenheiros de que precisamos, mas ele proporciona um diploma universitário a pessoas que com ele conseguem realizar o sonho de ser “doutores” e “doutoras”. E oferecer a oportunidade de autorrealização a pessoas que não teriam acesso a ela por outras vias mais eficientes é um objetivo democrático que deve ser perseguido pela sociedade, à luz das lições de Rawls.

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