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Razão para quê?

Posted by on 04/10/2023

A razão, ele afirma, não consegue nunca explicar o mundo ou provar a existência de Deus. “Que privilégio peculiar tem essa pequena agitação do cérebro chamada pensamento, que devemos fazê-lo o modelo do universo como um todo?” […] A respeito do desenho, a adaptação de órgãos para determinados objetivos pode ter resultado não da orientação divina, mas dos experimentos lentos e malfeitos ao longo de milhares de anos. (Aqui está a “seleção natural” 1.800 anos depois de Lucrécio, 108 anos antes de Darwin.) E mesmo que admitamos um desenho sobrenatural, a imperfeição das adaptações e a miríade de sofrimentos no mundo humano e animal revelam na melhor das hipóteses um deus com poderes e inteligência limitados, ou um deus bem indiferente ao ser humano.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire”, escrito por (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o filósofo empiricista escocês David Hume (1711-1776)

 

Assim, o cético continua a pensar e a acreditar, em que pese ele não poder defender sua razão pela razão; e de acordo com a mesma regra, ele deve concordar com o princípio relativo à existência do corpo, em que pese ele não poder pretender com base em nenhum argumento filosófico manter sua veracidade.

Trecho retirado do “Tratado sobre a Natureza Humana”, de David Hume, citado no livro “A Era de Voltaire”, escrito por (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

    Prezados leitores, na semana passada eu lhes apresentei a teoria alternativa à teoria da evolução, a teoria do design inteligente, a qual não é aceita na comunidade científica, mas que pretende ser um meio de explicar aquilo que o darwinismo não consegue explicar muito bem, isto é, como a vida é criada na Terra com base na codificação de informação genética no DNA. Naquele texto eu disse que aventar a hipótese de que exista uma mente brilhante por trás da criação da vida pode servir de contraponto ao materialismo que predomina na ciência desde o século XVII. Nesta semana, meu objetivo será o de me debruçar sobre um dos pais do Iluminismo britânico, David Hume. Em assim fazendo, trarei um terceiro ponto de vista à discussão, pelo fato de Hume não ser nem materialista e nem idealista, mas um cético e um empiricista.

David Hume é empiricista porque para ele todas as nossas ideias são derivadas da experiência por meio das impressões que aquela causa em nossos sentidos, produzindo as sensações de luz, som, calor, pressão, cheiro, gosto. A sensação interpretada pelo cérebro se transforma em percepção e assim em um processo de elaboração mental chega-se às ideias. A ideia de espaço é a ideia de pontos tangíveis e visíveis distribuídos em uma determinada ordem, a ideia de tempo é a percepção da sequência das nossas impressões. Nesse sentido, Hume não é materialista porque para ele não percebemos matéria nenhuma e a única coisa que sabemos é o nosso mundo mental de ideias, sentimentos, desejos, impressões e percepções. E Hume também não é idealista porque não considera que exista uma mente independente dos estados mentais transitórios que variam conforme o conteúdo que esteja ocupando a consciência no momento.

    Daí que seu antimaterialismo e seu anti-idealismo levam o filósofo escocês a ser um cético. Não se pode sobrestimar os poderes da razão humana porque em última análise ela atua sobre a experiência que é contingente e variável. As leis da natureza que estabelecem relações de causa e efeito entre os fenômenos na verdade são meras sequências frequentes de eventos em nossa experiência, que se repetem ao longo do tempo e que nos fazem acreditar que se manterão assim. No entanto, por serem obtidas empiricamente, essas conexões entre sequências de eventos não são invariáveis nem necessárias, não havendo garantia de que elas se repetirão amanhã ou continuarão a repetir-se infinitamente. Sob esse aspecto, a ciência é um acúmulo de probabilidades sujeitas a mudanças sem aviso prévio.

    E o que dizer da realidade última aventada pelos metafísicos? Se não podemos conhecer a matéria por trás das nossas sensações, que são os únicos meios de contato de que dispomos com o mundo exterior, se não podemos conhecer as operações causais por trás das sequências de eventos que percebemos no tempo e no espaço e se não podemos conhecer a mente por trás das ideias, as quais são o produto de estados mentais, não há como propor uma cadeia retroativa de causas e efeitos que levasse ao Ser Supremo da metafísica aristotélica, ao ente não movido que deu o pontapé inicial no mundo.

    Não é de surpreender então que Hume rejeite totalmente a ideia de uma mente brilhante por trás das engrenagens dos fenômenos, conforme o trecho que abre este artigo. Não é possível supor com base em nosso conhecimento que haja uma mente além dos estados mentais que se sucedem enquanto o ser humano está vivo. E esses estados mentais só produzem ideias fundadas em experiências transitórias e contingentes, de forma que elas não podem servir de modelo para explicar o universo como um todo. Projetista inteligente por trás da criação? Não, apenas uma série infinita de tentativas, muitos erros e alguns acertos que levaram a um mundo em que o sofrimento, a dor e a calamidade são por demais onipresentes para pressupormos uma inteligência perfeita que os tivesse criado.

    E no entanto, apesar de todos esses argumentos céticos quanto aos poderes da razão humana, o próprio filósofo, no segundo trecho que abre este artigo, adota outro guia para sua vida. Em vez de abandonar a razão de todo, ele adota a crença de que a realidade é racional e permeada pelo princípio da causalidade. O tempo, o espaço e a causalidade são construções mentais derivadas da experiência contingencial do homem, mas isso é suficiente para continuarmos a fazer ciência e filosofia, embora não seja suficiente para postular uma mente brilhante que deu vida a tudo da melhor maneira possível.

    Prezados leitores, para um cético empiricista como David Hume a razão não faz milagres, não cria coisas do nada e, no entanto, ela serve para continuarmos vivendo e aprendendo com nossas experiências, cautelosamente, sem grandes pretensões, mas também sem grandes desilusões. A falta de entusiasmo de Hume pela infalibilidade das construções racionais inspirou um ambiente intelectual inédito de tolerância que na Europa do século XVIII influenciou intelectuais como Voltaire e Diderot, na França e Immanuel Kant na Prússia, preparando o terreno para o Iluminismo.

    Razão para quê? Para, entre outras coisas, do alto do nosso ceticismo, concordarmos em discordar, porque sabemos não podermos ter certeza de nada.

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