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O destino dos peles-vermelhas

Posted by on 18/10/2023

Da mesma maneira, o Destino e as Moiras são os mestres universais do estaleiro, e você é suas brocas e enxadas; e me parece que em vez de render homenagens e fazer sacrifícios para você, os homens deveriam fazer sacrifícios para o Destino, e implorar-lhe favores; apesar de que mesmo isso não resolveria o problema, porque considero que as coisas estejam determinadas de uma vez por todas e que mesmo as Moiras não tenham liberdade para retalhar e mudar.

Fala do personagem Cyniscus no diálogo “A inquirição de Zeus” do escritor satírico romano Luciano de Samósata (125 d.C.-180 d.C.)

Diz-se que Zeus, que pesa a vida dos homens e informa as Moiras de suas decisões, pode mudar de ideia e intervir para salvar quem ele deseja salvar, quando o fio da vida, tecido no fuso de Cloto, e medido pela régua de Láquesis, está para ser cortado pela tesoura de Átropos. Outros sustentam, ao contrário, que o próprio Zeus está sujeito às Moiras, como as pitonisas uma vez confessaram em um oráculo; porque elas não são filhas dele, mas filhas partenogenéticas da Grande Deusa Necessidade. Com a qual nem mesmo os deuses lutam, e que é chamada de “A Grande Moira”.

Retirado do livro “Os mitos gregos” escrito pelo escritor britânico Robert Graves (1895-1985)

107 anos depois do Congresso Sionista da Basiléia, 90 anos depois do Tratado de Sykes-Picot, Israel não conseguiu nos eliminar. Estamos aqui, na Palestina, enfrentando-os. Não somos índios peles-vermelhas.

Trecho de entrevista de Yasser Arafat (1929-2004), líder da Autoridade Palestiniana na década de 1990 dada em 2004

    Prezados leitores, lembro que nos meus tempos de cursinho pré-vestibular, no começo da década de 1990, eu tinha uma apostila de geopolítica e um dos assuntos de maior destaque nela era o conflito judeu-palestino. Havia uma descrição das guerras lá travadas – a Guerra de 1948, a Guerra dos Seis Dias em 1967, a Guerra do Yom Kippur, em 1973, a Guerra do Líbano, em 1982. Nossos professores nos davam as chaves para entendermos o conflito e assim podermos dar a resposta certa no exame e éramos sempre alertados sobre a grande probabilidade de haver alguma questão sobre a disputa entre árabes e judeus sobre o território da Palestina.

    Passou o tempo e no derradeiro cursinho pré-vestibular que frequentei, em 2008, o assunto era mencionado, mas não com a ênfase de outrora. O problema não havia sido resolvido, estava dormente, mas não havia ocorrido uma grande guerra que justificasse uma expansão da narrativa já consolidada sobre o conflito e os interesses geopolíticos envolvidos. Eis que em 7 de outubro de 2023 o ataque sinistramente espetacular do Hamas nos fez lembrar que os palestinos continuam a morar na Faixa de Gaza. Provavelmente no material didático do ano que vem a ser entregue aos estudantes do ensino médio haverá um tópico “Segunda Guerra do Yom Kippur”. Quanto ela durará e quais impactos ela terá no mundo nenhum ser humano sensato se atreve a prever.

    Para responder a essas duas perguntas, em vez de consultar os cientistas políticos, os geopolitólogos, os especialistas militares, os ex-agentes da CIA, os ex-marines, os ex-juízes e os membros aposentados do exército americano que nos brindam com sua expertise no YouTube,  poderíamos pedir a ajuda das Moiras da mitologia grega, Cloto, Láquesis e Átropos que tecem, medem e cortam o fio da vida humana e portanto, sabem quem nascerá, o que cada indivíduo fará e quando morrerá. Conforme o trecho que abre este artigo, há duas versões contadas sobre o poder dessas três irmãs. Em uma delas o seu poder é relativo, porque Zeus, o mais poderoso dos deuses do Olimpo, pode intervir no destino trançado pelas Moiras por sua atividade têxtil se quiser favorecer alguém que lhe agrada. Na outra versão, o poder das Moiras é absoluto porque não são filhas de Zeus e portanto, não se submetem a seus ditames.

    Entre uma versão e outra o escritor Luciano de Samósata, citado na abertura deste artigo, prefere a versão absoluta do poder das Moiras, o que fica evidenciado na primeira pergunta que o personagem Cyniscus faz ao onipotente Zeus: “Você tem conhecimento de Homero e Hesíodo, claro? É verdade que tudo que eles cantam sobre o Destino e as Moiras – que tudo que elas tecem para o homem em seu nascimento deve inevitavelmente ocorrer?”. A resposta de Zeus “Inquestionavelmente” é o mote para Cyniscus fazer uma crítica ácida ao macho alfa do Olimpo.

    De fato, se tudo é decidido pelo Destino e pelas Moiras, qual é a utilidade de os seres humanos renderem homenagens aos deuses, fazer sacrifícios para obterem alguma benesse? Zeus responde que tais rituais de respeito e de oferenda são expressão do reconhecimento pelos pobres mortais da superioridade dos imortais. Ao que Cyniscus retruca que não há superioridade nenhuma em seres submetidos à mesma força superior das Moiras e pior, de uma maneira permanente porque não morrem como os seres humanos.

    Seguindo seu raciocínio, Cyniscus defende a ideia de que seria melhor praticar atos religiosos em prol de quem de fato têm poder para decidir sobre a vida dos mortais. De qualquer forma, como está tudo inapelavelmente decidido, nem vale a pena perder tempo com esses rituais porque nem as Moiras podem deixar de fazer o que tem de ser feito. A conclusão de Cyniscus, acusado de ser um sofista por Zeus, é que o homem não tem livre-arbítrio, não decide nada e está submetido a impulsos irresistíveis ditados pelo Destino e pelas Moiras. Aliás, tal conclusão obtida pelas vias da mitologia é a mesma conclusão obtida pelas vias filosóficas por Baruch Spinoza no século XVII e David Hume no século XVIII e pelas vias da neurociência por Sam Harris no século XXI, conforme explicado anteriormente neste humilde espaço.

    E no entanto, argumentos sobre a impossibilidade de livre-arbítrio não são um guia para o indivíduo conduzir sua vida na prática. Pode até ser em última análise que não tenhamos poder de decisão, mas para sobrevivermos como animais que somos, precisamos crer que podemos influir sobre o rumo dos acontecimentos por nossa ação, do contrário cairíamos na letargia destruidora do corpo e da mente. Nesse sentido, a afirmação de Yasser Arafat, de que os palestinos não terão o mesmo destino dos peles-vermelhas americanos de virarem peças de museu, uma tênue lembrança de um povo expulso de sua terra e aniquilado fisicamente, é uma manifestação de fé. Pode ser que as Moiras já tenham tecido o fio da vida do povo palestino e eles estejam destinados a fazer parte de alguma coleção etnológica futura, mas no aqui e no agora, ninguém sabe o que vai acontecer e é preciso agir. Oxalá que os homens de boa vontade judeus e árabes ajam em prol do melhor destino possível para ambos os povos.

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