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Crer em quê?

Posted by on 10/01/2024

Quase todos os filósofos do Iluminismo reconheciam que a maioria dos homens, mesmo na nação mais civilizada, está assoberbada demais pelas necessidades econômicas e pelo trabalho para ter tempo para o desenvolvimento da razão e que as massas da humanidade são motivadas muito mais pela paixão e pelo preconceito do que pela razão. […] O homem podia finalmente libertar-se dos dogmas medievais e dos mitos orientais; ele poderia dar de ombros para aquela teologia atordoante e aterradora e levantar-se livre, livre para duvidar, indagar, refletir, obter conhecimento e disseminá-lo, livre para construir uma nova religião no altar da razão e a serviço da humanidade. Era uma nobre embriaguez.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre os filósofos ateus do século XVIII na França

Vejo a raça humana continuamente ocupada em proteger-se das trapaças cruéis desta Providência, que dizem estar ocupada em cuidar da felicidade da raça humana. […] A quem a ideia de Deus enche de reverência? A alguns poucos homens fracos, decepcionados e desgostosos com o mundo, algumas pessoas cujas paixões já estão extintas pela idade, pelas enfermidades ou pelos revezes da fortuna.

Trechos retirados do livro “Superstições em todas as Idades” ou “Últimas Vontades e Testamento” de Jean Meslier (1678-1733), padre na região de Champagne, na França, mas um ateu enrustido

Grandes personalidades que eram – o que poderíamos dizer? – porta-vozes da comunidade dos Novos Ateus – Douglas Murray, […], Neil Fergusson, entre eles, Bret Weinstein, começaram a perceber que nossas concepções estão inseridas em um substrato narrativo, em uma história religiosa e que essa história em vários aspectos não pode ser substituída. É possível encaixar substitutos, mas eles tendem a ser ideologias devastadoras do tipo que caracterizava, digamos a União Soviética, ou um niilismo que devora a alma.

Trecho retirado da entrevista dada pelo psicólogo canadense Jordan Peterson ao jornalista britânico Piers Morgan

    Prezados leitores, já ouviram falar de um padre francês que exerceu o ofício por 30 anos e que deixou como legado testamentário um livro tão antirreligioso que sua versão integral só foi publicada em 1861, mais de 100 anos depois de sua morte? Se não ouviram, ouvirão agora neste humilde espaço, que lhes apresenta Jean Meslier. Meslier justifica aos seus leitores póstumos ter sido padre a vida toda, a despeito de suas inclinações, não por ganância, mas para obedecer aos pais. Meu objetivo será o de apresentar suas ideias, representativas dos chamados philosophes franceses do século XVIII, que se rebelaram contra o catolicismo.

    Para quem sabe um pouco de história, a reforma protestante na França não vingou, porque os dissidentes religiosos foram todos expulsos ou trucidados sob as ordens do rei Luís XIV (1638-1715). Portanto, a Igreja Católica não teve seus bens confiscados como o rei Henrique VIII fizera na Inglaterra para se ver livre do jugo de Roma. Até o advento da Revolução ela continuou a ser poderosa senhora de terras e a explorar o trabalho dos camponeses, isenta de tributação, monopolizadora das instituições educacionais e da monarquia, fazendo a cabeça de todos, ricos e pobres, incluindo dos reis que tinham padres como tutores, além confessavam seus pecados desde a mais tenra infância. E o que a Igreja colocava na cabeça das pessoas? Jean Meslier explica.

    Detentora de poder material e espiritual, a Igreja Católica tinha interesse em manter o status quo e para tanto infundia nos fiéis o medo do inferno e a promessa do paraíso. O inferno era para os pecadores, aí incluídos os hereges, que questionavam os dogmas religiosos como a ideia de que Jesus Cristo era filho de Deus, que na missa o pão e o vinho transformavam-se no corpo e no sangue do Salvador do Mundo. O paraíso era para os que não cometiam pecados, aí incluídos os que aceitavam todas as proposições da Igreja e da Bíblia, tal como os padres as apresentavam aos fiéis.

    Não admira que um Deus que condenava ao inferno os contestadores das verdades estabelecidas fosse um Deus tirânico e caprichoso, porque afinal a decisão sobre o que era verdade e o que era mentira cabia à Igreja e somente a ela, de acordo com critérios obscuros que mudavam ao sabor dos interesses temporais da Igreja como instituição: um dia um homem era excomungado, noutro era perdoado se se submetesse aos ditames religiosos. Mas será que depois do perdão o homem teria deixado de ser pecador ou teria sido por conveniência política que a Igreja o perdoara, num quid pro quo destinado a manter sua influência sobre as pessoas?

    Sob essa perspectiva, para Meslier a Igreja Católica e a religião cristã eram simplesmente fonte de opressão e de injustiças. A história falava por si: as perseguições e matanças dos cátaros no século XIII, o massacre de São Bartolomeu em agosto de 1572, quando ao redor de 3.000 protestantes foram assassinados, mostravam que o comportamento ético passava ao largo das ações dos príncipes da Igreja: a paz e a harmonia que a Igreja defendia era aquela que ela impunha à força com a ajuda das armas do Estado Monárquico.

    Conforme mostra o trecho que abre este artigo, Meslier considerava que a ideia de crença em um Deus ia contra a natureza humana: somos seres com paixões e instintos e querermos fundar um código de ética na negação da nossa natureza era contraproducente, pois só uma minoria de pessoas, que não tivesse mais desejos, pelo fato de elas estarem velhas ou doentes, poderia aderir às proibições impostas pela Igreja Católica. Para o padre e ateu enrustido, a moral só pode ter dois fundamentos: a razão e o conhecimento, de modo que o homem chegue ao bom senso, isto é, a estabelecer regras que podiam ser obedecidas porque estavam de acordo com aquilo que somos e aquilo que somos só pode ser conhecido pelo exercício da razão aliado à experiência. O homem deveria ser livre para buscar seu prazer se não prejudicasse os outros, e deveria ser livre para lutar com todas as suas forças e sua razão para vencer as peças pregadas pela Natureza: as enchentes, a fome, as tempestades, o frio, a esterilidade e todos os infortúnios que faziam parte da existência humana, a contrariar a ideia de um Deus benigno e providente.

    Esse novo ser vislumbrado pelo padre de Champagne era o ideal iluminista por excelência, conforme pregado pelos filósofos franceses como Diderot, D’Alembert, Voltaire, La Mettrie, Grimm, Helvétius e d’Hollbach. Deixando definitivamente para trás as superstições, os medos e as fábulas impostas pela Igreja Católica desde a Idade Média para manter seu poder, o homem seria livre para questionar as verdades consolidadas pela tradição e, ajudado pelas descobertas cada vez mais numerosas da ciência, embarcaria em uma jornada de busca da felicidade material e espiritual, proporcionada pelo exercício desimpedido da razão para a solução dos problemas postos à sobrevivência da humanidade. Assim é que o homem, livre de doenças, da morte precoce, da falta de comida superaria o estágio religioso da civilização e entraria no estado racional, em que as regras de comportamento ético e de organização da sociedade seriam fruto de um esforço racional de todos que conjugaria para um denominador comum.

    E no entanto, conforme o trecho que abre este artigo, os próprios entusiastas desse novo tipo de agir viam-lhe as limitações. Nem todos os homens tem aptidão ou vontade para exercer suas faculdades mentais. Aliás, a maioria deles só consegue agir de maneira instintiva ou passional, e seu conteúdo mental limita-se aos preconceitos que herdaram de seus pais, familiares, amigos, e demais pessoas do seu círculo de convivência. Na ausência do exercício da razão, que caminho essas pessoas poderão trilhar rumo ao futuro cheio de esperanças prometido pelos iconoclastas religiosos?

    À época em que os philosophes propuseram suas ideias pela primeira vez, o entusiasmo com a redescoberta da razão como instrumento que poderia substituir as crenças milenares que haviam estagnado o progresso da civilização era grande demais para que eles se preocupassem com o destino da grande maioria das pessoas que não tem nada de intelectual em si mesmas para cultivar. No entanto, em nosso século XXI, o Ocidente que inventou o Iluminismo para superar o Cristianismo já está no pós-Iluminismo, quando o Cristianismo só é levado a sério por uma ínfima minoria. Por esse motivo, esse problema do que colocar no lugar da religião na cabeça dos não intelectuais é premente e digno da atenção de pessoas que se debruçam sobre a malaise espiritual da nossa época, como o psicólogo canadense Jordan Peterson.

    Conforme o trecho que abre este artigo, para Peterson, as ideologias, que no século XX tentaram ser fontes de utopias terrenas – como a religião cristã havia sido outrora fonte de utopias celestes – fracassaram porque só causaram destruição, como o leninismo, o stalinismo, o maoísmo. É mais do que necessário agora retomar a religião como instrumento de criação de uma narrativa pessoal, isto é, de estabelecimento de valores que deem sentido à vida, pois não só de pão vive o homem: vivemos em meio a uma prosperidade material inédita na história da humanidade, fruto das conquistas científicas e tecnológicas estimuladas pelo Iluminismo, mas ao mesmo tempo isso não é suficiente para nos dar paz de espírito, como mostra a alta incidência de ansiedade e os índices de suicídio entre os jovens.

    Prezados leitores, o que fazer? Crer? Mas crer em quê? Na razão como única fonte possível de conhecimento e de preceitos morais? Ou em alguma religião? Ou no vegetarianismo? Ou na ecologia? Ou na diversidade e inclusão? Cada indivíduo deve escolher, de acordo com suas aptidões pessoais? Ou ele deve seguir as normas da sociedade em que vive? De qualquer forma, para nossa saúde mental, para conseguirmos desenvolver e contar nossa própria história, é preciso crer em alguma coisa.

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