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Tolerância para quê?

Posted by on 29/02/2024

Piers Morgan: Veja, tivemos uma conversa fascinante, que cobriu vários assuntos, conduzida com respeito e cortesia. Por que não temos mais conversas desse tipo no mundo? Por que esse tipo de conversa ou debate foi substituído por um gritando com o outro e as pessoas adotando posturas tribais nas mídias sociais e querendo literalmente silenciar qualquer pessoa que tenha uma visão diferente?

John Mearsheimer: Eu não tenho certeza que eu tenha uma boa resposta. Eu certamente concordo com a sua descrição sobre o que está acontecendo. Na verdade, eu acho bem deprimente que as pessoas xinguem umas às outras, gritem umas com as outras. Além disso, vários tipos de pessoas que têm opiniões fora do convencional são canceladas na grande mídia e eu poderia contar várias histórias a esse respeito. Não acho que isso seja saudável. Eu tenho uma visão antiquada de como as democracias liberais devem funcionar. Nós supostamente devemos ter um mercado de ideias. Espera-se que as pessoas consigam trocar ideias e se as pessoas acharem que o John Mearsheimer tem ideias tolas sobre a Ucrânia ou sobre o Oriente Médio, está tudo bem e devemos discutir sobre isso. Se minhas ideias são tão tolas as pessoas devem ser capazes de usar os fatos e a lógica para destruí-las. Mas você não tem muito disso agora. As pessoas são canceladas ou se elas estão debatendo elas tendem a ser caluniadas se não estiverem de acordo com a visão da maioria.

Piers Morgan: É extraordinário não? Que em democracias como os Estados Unidos, o Reino Unido e em muitas outras, você veja pessoas que se definem como liberais se comportando como os fascistas que elas dizem odiar.

John Mearsheimer: Sem dúvida, quero dizer, os liberais deveriam ser tolerantes. Se você pensar sobre o liberalismo, a essência do liberalismo, o liberalismo baseia-se na premissa de que as pessoas não conseguem concordar sobre os princípios fundamentais. É muito importante entender isso. Se você falar de Hobbes, de Locke, eles entendiam que as pessoas não conseguem chegar a um acordo sobre os princípios fundamentais. O que você tem que fazer é criar uma sociedade em que as pessoas têm a oportunidade de viver a vida de acordo com seus princípios fundamentais e elas têm que ter a liberdade de expressar suas opiniões sem se preocupar em serem atacadas por uma pessoa que não concorde com elas. E uma coisa importante que se assenta debaixo desse empreendimento liberal é a norma da tolerância. Se nós discordamos eu tenho que tolerar o fato de que você tem uma determinada visão e você tem que tolerar o fato de que eu tenho uma visão diferente. É isso que nos mantém juntos e faz com que a sociedade funcione.

Piers Morgan: Sim, exato, essa é a maneira como você resolve os problemas da sociedade. Quando você debate de maneira vigorosa e você acha pontos de concordância e consenso. Você não se sente ameaçado ao fazer isso, não se sente diminuído. Você vê o bem maior, isso é progresso. Você vem, você debate com outras pessoas, você argumenta, você discute e você vem com uma melhor solução.

 

    Prezados leitores, em primeiro lugar, perdoem-me uma citação tão longa. Ela é o trecho de uma conversa de 50 minutos entre o jornalista britânico Piers Morgan e o cientista político e especialista em relações internacionais americano John Mearsheimer que ilustra à perfeição aquilo que John Mearsheimer explica sobre liberalismo, democracia e tolerância. Explico-me.

    Piers Morgan e John Mearsheimer discordaram profundamente sobre os dois tópicos abordados inicialmente antes de eles trocarem ideias filosóficas sobre o regime político no Ocidente. Primeiramente em relação à guerra na Ucrânia. Piers Morgan considera o presidente Vladimir Putin um homem perigoso que quer reconstruir o império russo invadindo outros países. Para Morgan, o erro do Ocidente foi não ter feito a Ucrânia entrar na OTAN antes da invasão de 24 de fevereiro de 2022, pois se a Ucrânia já fosse parte da OTAN o presidente russo não teria invadido o país vizinho, pois este teria tido garantias de defesa dos outros Estados membros. Mearsheimer considera que não há nada nas atitudes e nas palavras do ex-agente da KGB que possa respaldar a ideia de que a Rússia quer absorver os países ao seu redor e a Operação Militar Especial na Ucrânia foi desencadeada tão somente para não permitir que a Ucrânia seja aceita na OTAN.

    O segundo tópico abordado foi a guerra em Gaza. Piers Morgan lamenta profundamente as mortes de civis palestinos, mas considera que não será possível vencer o Hamas sem atingir civis porque os membros do Hamas se misturam aos civis de propósito. Mearsheimer considera que é injustificável o que Israel está fazendo: o bombardeio de residências, hospitais, escolas, cemitérios e universidades está matando pessoas que não pertencem ao Hamas, a destruição da infraestrutura inviabiliza a vida para os palestinos em Gaza e os impedimentos que Israel coloca para a ajuda humanitária estão causando grande sofrimento em termos de fome e doenças. Para o americano não há como justificar a matança dos palestinos como se isso fosse necessário para atingir o objetivo de acabar com o Hamas. O Hamas não será derrotado dessa forma, ao contrário, terá mais oportunidades de recrutamento porque muitos adolescentes ficarão órfãos de pai e mãe. Se o governo de Israel continua com essa estratégia de tornar a vida inviável para os palestinos em Gaza é porque eles querem mesmo é se livrar deles não porque tenham o objetivo de destruir o Hamas, justamente porque sabem ser tal tarefa impossível.

    Em suma, uma discussão pontuada por discordâncias, mas como Piers Morgan mesmo afirma, uma discussão polida, entre pessoas que praticam a virtude da tolerância. É esse o ponto a que queria chegar depois desse introito sobre o teor do debate entre os dois. O que é tolerância e para que serve? A tolerância em um regime liberal é a disposição que cada cidadão deve ter na arena pública de ouvir opiniões discordantes da sua e ter duas atitudes: em primeiro lugar tentar combatê-la com fatos e o desenvolvimento de argumentos com base em fatos; em segundo lugar, não rotular a pessoa que expressa tal opinião disso ou daquilo porque ela não concorda com o cidadão que se dispôs ao debate.

    Num regime liberal o cidadão deve sempre ter em mente que nem sempre é possível ganhar o debate, pois muitos fatores estão em jogo para tornar o resultado complexo. Nem sempre as pessoas têm acesso aos mesmos fatos: afinal elas têm diferentes níveis de interesse por determinado assunto, e isso determinará sua disposição de ir atrás do que ocorreu. Pior, mesmo que elas estejam dispostas a se informarem sobre o tema, elas podem acabar consultando fontes que têm sua própria agenda política e por isso omitem certos acontecimentos e dão exagerada importância a outros.

    Uma nova camada de dificuldade se coloca mesmo quando há acesso a mais ou menos os mesmos fatos, pois com base naquilo que Mearsheimer chama de princípios fundamentais, isto é os valores morais da pessoa, as regras que ela segue para bem viver, ela pode dar mais importância a certas coisas de maneira a determinar seu julgamento sobre o assunto. Um exemplo disso é a atitude favorável dos evangélicos em relação a Israel. Eles até admitem que Gaza está sendo destruída, mas sua simpatia pelo povo da Bíblia os faz enfatizar a necessidade de Israel defender-se a qualquer custo para sobreviver como Estado para o povo judeu, tal como colocado nas Escrituras.

    Se tais obstáculos muitas vezes impedem que as pessoas cheguem a conclusões comuns o que fazer? A resposta é tolerar. Tolerar nossas fraquezas, tolerar que todos nós muitas vezes resvalamos para racionalizações, isto é, para o uso da razão não para chegar a uma conclusão, mas para dar um verniz de respeitabilidade a conclusões obtidas por preferências individuais e irredutíveis. Tolerar o fato de que todos nós às vezes falamos sobre coisas das quais não temos muito conhecimento, mas em um mundo digital em que qualquer um pode ter a palavra o tempo todo, é tentador palpitar sobre qualquer coisa que seja notícia.

    E tolerar para quê? Tolerar para que todos possamos permanecer no mesmo barco, tentando achar o melhor caminho para a solução dos problemas, sem que nos achemos no direito de depredar o patrimônio público como os manifestantes de 8 de janeiro de 2023 fizeram porque estavam descontentes com os resultados da eleição de Lula para a presidência, sem que nos achemos no direito de barrar a entrada no metrô de pessoas que foram à manifestação de apoio ao Bolsonaro de maneira pacífica sob a justificativa de que são todos fascistas e não podem ser tolerados. Como ensinou um dos pais do liberalismo no século XX, John Rawls em seu livro “Uma Teoria da Justiça”, já citado anteriormente neste meu humilde espaço, uma sociedade democrática precisa dar espaço à expressão de opiniões não democráticas desde que tal expressão não resvale para a violência.

    Prezados leitores, parafraseando John Mearsheimer, talvez vocês não concordem com o que estou a dizer sobre a importância do exercício máximo da tolerância e achem que sou tola ou estúpida. Não importa, só peço a vocês que exerçam a virtude de aguentar ouvir “coisas absurdas” para podermos criar um clima de confiança e boa vontade na sociedade de forma que possamos chegar a consensos a respeito de assuntos menos polêmicos. E o fato é que numericamente falando há bem mais assuntos não polêmicos do que polêmicos, mas os polêmicos atraem mais nossa atenção, porque lidam com nosso instinto tribalista. Só crendo nesse exercício da tolerância é que nossa sociedade conseguirá obter respostas aos desafios e progredirá, em prol do bem comum.

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