A IA e os maratonistas do século XXI

O futuro da IA não será conquistado se nos preocuparmos exageradamente com a segurança, será conquistado construindo a IA.

Trecho do discurso do vice-presidente dos Estados Unidos, J. D. Vance proferido em 11 de fevereiro na cúpula sobre Inteligência Artificial realizada em Paris

Ele alertava sobre deixar que o progresso da ciência, que simplesmente aprimora nossas ferramentas, ultrapassasse o desenvolvimento da literatura e da filosofia, que considera nossos objetivos, de forma que o exercício irrestrito da faculdade do cálculo tinha enriquecido ainda mais a minoria inteligente, e havia aumentado a concentração de riqueza e de poder.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as ideias do poeta romântico inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822)

Muitas empresas têm reportado que enfrentam um problema que já compromete suas atividades e investimentos: está difícil contratar trabalhadores, e o motivo principal não é o número mais baixo de desempregados, como o senso comum poderia supor. A situação é fruto de uma desregulação mais grave do mercado de trabalho. “A escassez é generalizada”, diz Anaely Machado, economista do Observatório Nacional da Indústria. “A falta de pessoal vai desde as funções mias simples até as mais qualificadas.”

Trecho do artigo O apagão de mão de obra, publicado na revista VEJA de 21 de fevereiro

A vida não é uma corrida de cem metros, que termina em segundos. A vida é uma maratona cada vez mais longa. E maratona precisa de perseverança, determinação, resiliência e sobretudo de aprendizado. O País só vai dar certo com educação da infância à velhice”.

Trecho de palestra dada pelo geriatra Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil em 14 de outubro de 2024

    Prezados leitores, o mundo dos sprinters ficou para trás, chegou a era dos maratonistas. Somos todos maratonistas, isto é, pessoas que terão muito mais de meio século de vida e não tendo o medo de morrer que acometia nossos antepassados, que corriam contra o tempo e tentavam fazer tudo o que podiam antes que “A Ceifadora” os pegassem, precisam aprender o que fazer com uma vida tão longa. O desafio dos maratonistas é cadenciar o ritmo, tornar o esforço físico suportável ao longo do tempo de corrida, não acelerar demais para não cair de maduro no meio da pista e ao mesmo tempo não ser muito lentos que nos faça sermos os últimos a cruzar a linha de chegada. Qual o segredo do equilíbrio, da sintonia fina entre ritmo e regularidade?

    Para Alexandre Kalache, citado na abertura deste artigo, o segredo é cultivar bons hábitos de alimentação e exercícios e aprender continuamente, fazer da vida uma eterna sala de aula para que possamos nos adaptar às diferentes fases da vida e aproveitar o que cada uma tem de bom. E observando o que está acontecendo no Brasil neste momento sua ênfase no aprendizado parece justificar-se.

    A taxa de desocupação no país está em 6,2%, a menor desde 2012, mas ela esconde um grave problema: a grande defasagem entre a mão de obra de que as empresas precisam e aquilo que as pessoas oferecem, de forma que as vagas abertas não são preenchidas pelo fato de que os que estão à busca de um emprego não têm as qualificações necessárias. De forma que se os trabalhadores estivessem investindo no aprendizado contínuo, como preconiza Kalache, a taxa de desemprego seria muito menor, pois 60% das empresas hoje no Brasil enfrentam dificuldades para preencher vagas, de acordo com o artigo de VEJA, tanto que deixam de investir e de expandir a produção por causa desse apagão.

    Que maravilha então para os maratonistas! Com empresas ávidas por achar gente para trabalhar e assim poder fazer dinheiro, basta adquirirmos as qualificações necessárias e conseguiremos emprego em todas as etapas da vida. Poderemos assim seguir tranquilamente na corrida, mantendo o passo firme e constante, hidratados e alimentados, sob o sol tropical, cada vez mais escaldante, sem medo de entrarmos em colapso no meio do caminho. Será? Como diria o poeta, tinha uma pedra no meio do caminho.

    Essa pedra se chama inteligência artificial. Ela reconhece padrões, resume e traduz textos, escreve seguindo o estilo de determinado autor, colhe informações e apresenta conclusões. Foi-se o tempo em que os robôs eram colocados no chão de fábrica ou no fundo do mar para realizar tarefas perigosas ou cansativas, que poderiam matar ou injuriar o homem. Hoje, o Grok e o ChatGPT estão na tela do seu celular, respondendo em poucos segundos a uma pergunta sobre sintomas médicos, elaborando uma petição com base nos dados que o usuário insere e por aí vai. O que será daqueles profissionais que antes realizavam tudo isso por si mesmos? O que será dos tradutores que vertem de uma língua para a outra, dos advogados que produzem uma argumentação a ser apresentada ao juiz, do médico que faz diagnósticos com base no que o paciente lhe relata?

    Eles podem se transformar em revisores do que a IA entrega, retocar o produto final, corrigir erros, melhorar o texto, checar o diagnóstico fazendo o exame físico do paciente. Mas serão necessários tantos revisores quanto o número de pessoas que eram responsáveis pela elaboração do produto ou serviço em todas as suas etapas? Atualmente nas empresas, a IA é apresentada em uma bandeja dourada com laço de fita vermelha, como uma nova ferramenta que ajudará os funcionários a serem mais produtivos, a entregarem com qualidade maior, e devemos estar todos entusiasmados com essa inovação tecnológica, pois como cantava Elis Regina, o novo sempre vem. Melhor aceitá-lo e fazer as devidas adaptações.

    É o que pensa também o vice-presidente dos Estados Unidos, J. D. Vance, conforme ele explicou em sua palestra sobre IA em 11 de fevereiro em Paris. Não vale a pena preocupar-se com a segurança da IA e muito menos tentar controlá-la, impondo normas regulatórias. Isso só inibirá a inovação e o investimento e a IA tem o potencial de causar uma disrupção na economia, uma destruição criativa de funções que pode levar à Sociedade 5.0 ou à sociedade super inteligente, em que todos os aspectos da vida serão organizados por meio de dados, em que a ação humana ficará limitada ao fornecimento de dados às máquinas, que serão capazes de coletá-los, processá-los e transformá-los em produtos e serviços. Em suma, a IA deve ser uma cria do capitalismo, o melhor sistema de produção de riquezas que o mundo já conheceu.

    Sob essa perspectiva, coibir o desenvolvimento da IA por meio de proibições e restrições é privarmo-nos da oportunidade de crescimento da economia por meio do investimento em um novo mercado que com certeza criará novas atividades e portanto, novos empregos. Mas será que se a IA tiver rédea solta ela não acabará desenvolvendo-se mais rapidamente do que a capacidade dos trabalhadores de atualizarem suas qualificações?

    No Brasil ocorre o apagão da mão de obra porque a educação no geral é ruim demais para preparar as pessoas para um mercado que mal chegou à era digital. O que ocorrerá daqui a alguns anos, quando tivermos importado ferramentas de IA dos Estados Unidos (ChatGPT) ou da China (DeepSeek), por exemplo? Nossa educação, já retardatária para a era do uso disseminado de computadores, estará a anos-luz da era da Sociedade 5.0, em que o emprego estará disponível somente para aqueles que saibam desenvolver ferramentas de IA, pois os outros terão sido substituídos pelas máquinas.

    A calamidade vislumbrada pelo poeta romântico inglês Shelley pode estar à nossa porta, conforme o trecho que abre este artigo: a ciência e a tecnologia desenvolvidas exponencialmente para o benefício de uns poucos e o desespero da maioria. Shelley, morto aos 30 anos no mar, criticava o fato de nem católicos nem protestantes buscarem exercer a compaixão pregada por Cristo nas suas relações com os mais pobres. Afinal, a Primeira Revolução Industrial foi executada às custas dos operários das fábricas, que trabalhavam muito mais de 8 horas por dia em condições insalubres, porque esse era o modo eficiente de produzir que gerava lucro e permitia reinvestir. Pode ser que a Sociedade 5.0 seja erigida sobre a pilha de trabalhadores tornados obsoletos cujo futuro na vida será o de receber uma renda mínima mensal para subsistência em um mundo sem emprego.

    Prezados leitores, nesses tempos de maratona que estamos vivendo no século XXI, a IA pode acabar exercendo o papel daquele espectador que se coloca na rua à espera do corredor e que ao tentar agarrá-lo, destrói suas chances de vencer tirando-lhe o foco e quebrando-lhe o ritmo. Só nos resta torcer para que as mentes brilhantes dos calculistas que desenvolverão a IA na sua máxima potencialidade reflitam sobre as consequências que ela terá para os maratonistas, que correm o risco de se verem condenados a viver décadas sem perspectiva nenhuma.

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A virtude do meio

Este caráter constante da boa direção moral, o fato de que colocar-se no caminho do bem implica um sem fim de atos voluntários, deliberações e opções corretos, equivale a dizer que possuímos as virtudes éticas como fruto de um exercício, de um trabalho tenaz, chamado energeia por Aristóteles

Trecho retirado do livro Aristóteles – O Nascimento da Ética, publicado pela National Geographic

Em conexão com as virtudes morais, ou virtudes de caráter, Aristóteles propõe a teoria da virtude como um meio. Em cada caso pode haver uma deficiência ou um excesso, nenhum dos quais constituindo a conduta correta. A virtude é algo entre os extremos.

Trecho retirado de “Wisdom of the West”, do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) sobre o filósofo Aristóteles (384 a.C-322 a.C.)

A orfandade da educação está também na submissão da lógica assistencial, ao transformar o Bolsa-Escola em Bolsa Família, a Poupança Escola em Pé-de-Meia, o programa de Certificação Federal dos Professores Municipais no programa Pé-de-Meia do Professor. O apoio à promoção automática mesmo sem aprendizado em escolas que atendem alunos de famílias pobres também é prova da orfandade da educação em nome do assistencialismo social, aceitando que a educação de base deve ser desigual conforme a renda da criança.

Trecho retirado do artigo País Órfão, do ex-reitor da OAB, ex-senador, ex-Ministro da Educação Cristovam Buarque (1944-, publicado na revista VEJA de 7 de fevereiro

Não queremos penalizar os estudantes. O Pé-de-Meia é um programa interessante para fortalecer o ensino médio. O Japão, por exemplo, é um país que investe muito nessa etapa do ensino. A Brasil deve trilhar caminho assemelhado, mas há questões financeiras e orçamentárias a serem resolvidas pelo governo federal.

Fala do Ministro Augusto Nardes do Tribunal Contas da União, justificando a aprovação do programa Pé-de-Meia do governo federal no âmbito do Processo: TC 024.312/2024-0

    Prezados leitores, o jeitinho brasileiro sempre dá um jeito! No dia 12 de fevereiro, os doutos Ministros do Tribunal de Contas da União deram um jeito de encaixar o programa de concessão de bolsas para alunos de escolas públicas no ensino médio no orçamento federal, cujo custo anual será de R$ 12,5 bilhões. Em caráter temporário, o programa será custeado com recursos do Fundo de Incentivo à Permanência no Ensino Médio (Fipem), mas o TCU deu 120 dias ao governo para este achar um lugar no orçamento da União em que o Pé-de-Meia caiba definitivamente. O risco de o programa não ser executado por descumprimento da lei de responsabilidade fiscal está descartado. Teremos Pé-de-Meia! Afinal países de Primeiro Mundo como o Japão, conforme o trecho que abre este artigo, investem muito no ensino médio. Para termos o nível de educação dos japoneses, que ocupam o terceiro lugar no ranking do PISA, devemos fazer o mesmo, nós que ocupamos a sexagésima posição, entre 80 países onde foi aplicado o teste da OCDE que mede o desempenho de estudantes em línguas, matemática e ciências. Em suma, mais dinheiro na educação, mais qualidade certo?

    O engraçado é ver países como Mongólia, cujo PIB per capita era de 5.764 dólares em 2023 e o Vietnã (PIB per capital de 4.346 dólares em 2023) ocuparem melhores posições no ranking do PISA do que nós (53ª e 34ª, respectivamente), que tínhamos um PIB per capita de 10.043 dólares em 2023.  Para quem não se lembra, Vietnã é aquele país no Sudeste Asiático, em que os Estados Unidos jogaram napalm e agente desfoliante como armas químicas de guerra. Aparentemente, essas substâncias tóxicas não afetaram sobremaneira o organismo dos vietnamitas e eles têm uma capacidade de aprendizagem melhor que a nossa. O fato é que países muito mais pobres do que o Brasil conseguem resultados educacionais melhores, então nosso déficit de pessoal qualificado não parecer ser fruto de falta de dinheiro, ao contrário do que leva a crer a fala do Ministro Nardes, usada como justificativa para aprovar um programa que não tinha fonte de financiamento definida e portanto violava a Lei de Responsabilidade Fiscal, particularmente seus artigos 16 e 17. Qual será o problema?

    Cristovam Buarque, em seus artigos na revista VEJA, sempre coloca o dedo na ferida da má qualidade da educação brasileira. Dar um salto de qualidade nessa área nunca foi uma prioridade de nenhum governo no país, seja de direita, de esquerda ou de centro. Os governantes batem no peito sobre a educação como artifício retórico, mas na prática fazem pouco por ela, o que é evidenciado pelo fato de que nossa posição nos rankings mundiais de avaliação de alunos fica sempre na zona da turma do fundão, como chamávamos – pelo menos à época em que passei pelos bancos escolares –aqueles que pouco aprendem porque estão distantes do professor na sala de aula e, portanto, mal conseguem ouvi-lo. Conforme o trecho que abre este artigo, as iniciativas governamentais na área vira e mexe descambam para o assistencialismo, isto é, a concessão de dinheiro a pessoas vulneráveis para ajudá-las financeiramente a sobreviver, sem que sua vida seja mudada de forma fundamental pelo estipêndio.

    Ora, perguntarão alguns: O que há de mal no assistencialismo? Por acaso milhões de brasileiros não precisam de ajuda para que não passem necessidades? Por caso não é imprescindível dar uma bolsa aos alunos pobres para que não precisem trabalhar e continuem a estudar? Não é elitismo e preconceito chamar programas sociais de assistencialismo? O que diferencia uma política social boa de uma política social ruim? Aristóteles responderia a esta pergunta dizendo que a virtude está no meio. Explico-me.

    O meio aristotélico é aquele ato voluntário do ser humano que não é nem excessivo nem deficiente, como explica Bertrand Russell no trecho que abre este artigo. Nas situações concretas da vida, decidir corretamente é fazer um esforço constante de achar o meio termo em cada momento em que é necessário tomar uma decisão sobre o fazer. Haverá circunstâncias em que lutar será uma temeridade por levar à morte da pessoa ou a algum dano físico e não lutar será uma covardia porque leva igualmente a pessoa a ser aniquilada pela falta de reação ao seu algoz. Nesse sentido, a coragem enquanto virtude é fruto da ação de um homem virtuoso, isto é, de um homem que tem a capacidade de ponderar os fatos e tomar a boa decisão com base na realidade tal ela se encontra para ele.

    Se aplicarmos essa ética do caminho do meio, a diferença entre política social transformadora e assistencialismo é uma questão de medida. Quanto devemos exigir dos beneficiários de ajuda governamental para que eles deem o devido valor ao que lhes é fornecido? Cumprir alguns poucos requisitos, tal como os coloca o Programa Pé-de-Meia, a saber, ter frequência de pelo menos 80% às aulas e participar do Exame Nacional do Ensino Médio? Será que isso é suficiente para garantir que o aluno não só terá juntado uma poupança ao final do Ensino Médio como terá de fato aprendido os conteúdos necessários? Ou será que é preciso exigir dos beneficiários ter uma certa nota no ENEM para ele ter direito ao valor cheio da bolsa, a saber R$ 9.200,00? Será que a falta de grandes exigências por parte do governo é um conformismo inaceitável com a mediocridade, uma resignação com a impossibilidade de alunos da escola pública realmente aprenderem alguma coisa?

    Prezados leitores, a diferença entre a virtude e o vício é uma questão de sintonia fina, de calibração para evitar os extremos, como ensinou o filósofo de Estagira. Oxalá no Brasil os programas sociais superem esse nível raso de distribuição assistencialista de benefícios e se transformem em instrumentos para um salto na qualidade do nosso capital humano. É só mudarmos alguns detalhes e teremos algo infinitamente melhor. Enquanto isso não acontece, nossos políticos usarão os programas sociais como meios de cooptar eleitores, nada mais e nada menos.

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Liberdade de pensamento para quê?

É de todo repugnante para a liberdade geral … quando a lei invade o domínio do pensamento especulativo e as opiniões são julgadas e condenadas da mesma maneira que os crimes, ao mesmo tempo que aqueles que as defendem e seguem são sacrificados não em prol da segurança pública, mas do ódio e da crueldade de seus oponentes. Se somente atos fossem motivo de persecução criminal e fosse permitido às palavras correrem soltas…. as sublevações ficariam privadas de qualquer simulacro de justificativa, ficando separadas da mera controvérsia por uma linha clara e definida.

Trecho retirado do livro “The Age of Louis XIV”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o pensamento do filósofo holandês de origem judaica Baruch Spinoza (1632-1677)

E ao mesmo tempo devo confessar que certos inconvenientes podem surgir às vezes de tais liberdades. Mas quem já criou alguma coisa de maneira tão sábia que nenhum mal poderia surgir de sua criação? Aquele que deseja estabelecer leis para tudo irá estimular as imperfeições ao invés de diminuí-las. O que não pode ser proibido precisa ser permitido, mesmo que às vezes isso cause malefícios.

Retirado do Tractatus Theologico-Politicus de Baruch Spinoza

Assim, com a sofisticação e popularização de algoritmos, cresceu também o desafio de compreender o que é verdade. Os deepfakes – vídeos, imagens e áudios manipulados por meio da IA – se consolidaram como ferramentas centrais de fraudes digitais de todos os tipos. Eles variam de golpes financeiros, que exploram a imagem de celebridades, a manipulações políticas cada vez mais verossímeis.

Trecho retirado do artigo “Evolução da inteligência artificial desafia compreensão da verdade”, publicado na edição do jornal O Estado de São Paulo de 2 de fevereiro

    Prezados leitores, vocês já assistiram a Vladimir Putin tocando bateria e Donald Trump tocando guitarra em uma mesma festa onde se reúnem vários líderes mundiais? Ou um avatar de Vladimir Putin fazendo perguntas ao Vladimir Putin real? Eu já assisti e achei engraçado, sabendo perfeitamente que os vídeos eram uma fantasia e não atribuindo nenhum significado àquilo a não ser o de entretenimento. Por outro lado, vários candidatos às eleições municipais de 2024 em todo o Brasil usaram um vídeo do William Bonner promovendo sua candidatura, de acordo com informações de Beatriz Farrugia, pesquisadora do laboratório DFRLab. Nesse caso, o objetivo não é simplesmente fazer o espectador dar umas boas risadas e esquecer a peça. O objetivo é influenciar o voto da pessoa, valendo-se da credibilidade do apresentador do Jornal Nacional da Rede Globo para chancelar um candidato.

    É o que hoje chamam de deepfakes, conforme a definição apresentada no texto que abre este artigo. As possibilidades infinitas de criação de conteúdo digital com base em pessoas de carne e osso são notícia nos órgãos da mídia tradicional, que naturalmente tem muito a perder com a proliferação de fontes de informação que não passam pelo crivo da verificação à qual são submetidos os jornais e revistas da era analógica. Mas será que essas criações são uma novidade do século XXI? É forçoso reconhecer que não. Os meios utilizados podem ter mudado, mas histórias sobre pessoas reais sempre foram contadas para influenciar a opinião de terceiros sobre elas. Vou dar-lhes um exemplo.

    Durante a Revolução Francesa, a rainha Marie Antoinette (1755-1793) foi alvo implacável dos autores de panfletos que a mostravam como uma devassa, louca por sexo. Em uma dessas figuras, Marie Antoinette toca o pênis gigante e ereto do embaixador da Suécia na França, Axel von Fersen (1755-1810) e olha embevecida para o homem e seu membro. Para quem não sabe, Fersen passou para a história como amante de Marie Antoinette, mas não restou nenhuma prova cabal de que eles tenham consumado sexualmente sua paixão mútua. E no entanto, os panfletistas da segunda metade do século XVIII, querendo desmoralizar a monarquia, retratavam a rainha da França em situações indecorosas e libidinosas.

    A propaganda negativa a respeito das taras sexuais de Marie Antoinette foi tão eficaz que, uma das acusações que foram feitas a ela em seu julgamento, o qual durou de 12 a 15 de outubro de 1793, foi a de ter tido relações sexuais com seu filho Louis-Charles (1785-1795), então com oito anos de idade. E por essa suposta perversão sexual e por traição ao país ela foi condenada à morte na guilhotina, em 16 de outubro. De forma que se pode dizer com certeza que os panfletos lançados regularmente sobre Marie Antoinette prepararam o espírito da opinião pública para não considerar a acusação de incesto como absurda, pelo contrário, passível de inclusão em um processo criminal.

    Se as deepfakes têm uma longa história no Ocidente que remonta ao século XVIII, o que fazer em pleno século XXI? Criminalizar a produção de conteúdos mentirosos sobre personagens reais? Punir quem utiliza a voz de pessoas conhecidas para veicular as mensagens desejadas pelo produtor do conteúdo? Baruch Spinoza nos dá uma orientação a esse respeito. Para o filósofo oriundo de uma família de judeus que havia emigrado de Portugal para a Holanda para escapar da intolerância religiosa instituída pela Inquisição da Igreja Católica, a liberdade de pensamento era um elemento essencial da vida em sociedade.

    Conforme o trecho que abre este artigo, para Spinoza criminalizar aquilo que as pessoas diziam ou escreviam da mesma forma que certos atos das pessoas eram criminalizados – como matar e roubar –, era um grande erro, pois criava uma categoria ampla demais, a do rebelde, que tanto poderia ser aquele que vociferava contra o governo do conforto do seu lar ou do seu esconderijo, como aquele que passava à prática e atuava para derrubar o regimre matando civis e militares, atacando e destruindo prédios públicos e por aí vai. O melhor seria estabelecer uma distinção clara entre o crime, que requeria uma ação, e a opinião dissidente, que era apenas crítica desprovida de atuação no mundo concreto. Para Spinoza, sem essa distinção os atos contra a ordem pública poderiam ter uma aura de crítica intelectual, que daria credibilidade à rebeldia, minando a estabilidade social. O filósofo nascido em Amsterdã reconhecia os inconvenientes da liberdade de pensamento, mas conforme o trecho que abre este artigo, criminalizá-la traria mais desvantagens do que vantagens, pois submeteria aqueles acusados de delito de opinião à perseguição e à crueldade de seus inimigos, que usariam a lei em prol de seus interesses individuais para calar críticas à sua atuação e ao seu comportamento em sociedade e não em prol da coletividade.

    Prezados leitores, assunto espinhoso este, quando consideramos o impacto que as deepfakes podem ter em época de eleição, em um momento na história em que a mídia tradicional perde cada vez mais clientes e portanto, perde o poder de influência de que gozou no Ocidente desde o século XVIII até o século XX. O que fazer? Deixar o conteúdo produzido por IA correr solto em nome da liberdade de pensamento e do sopesamento dos prós e contras? Ou tentar fechar a caixa de Pandora cheia de surpresas proporcionada pelo avanço tecnológico? A resposta não é óbvia, mas fica a lição de Baruch Spinoza, ainda válida depois de 500 anos: em uma sociedade livre e próspera o governo não deve se intrometer nas opiniões dos cidadãos. No longo prazo esta é a melhor receita para que cada indivíduo tenha a melhor chance de concretizar suas potencialidades intelectuais. E não é este o objetivo do ser humano?

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Saudosismos

O fazendeiro do Oeste paulista – a região que, centralizada em Campinas, vai se tornar, a partir da segunda metade do século XIX, o núcleo vital, e muito mais importante, da produção do café – é uma figura tão caracterizada pelo dinamismo quanto o outro [o fazendeiro do Vale do Paraíba] pelo imobilismo. Serão suas marcas registradas o reinvestimento constante, em terras e cafezais, a atenção para a substituição da mão de obra escrava pelo colono europeu, e a extensão de seus interesses para setores industriais e comerciais, o das ferrovias em primeiro lugar.

Trecho retirado do livro “A Capital da Vertigem – Uma História de São Paulo de 1900 a 1954” de Roberto Pompeu de Toledo

 

A história da Light em São Paulo – e no Brasil, pois seus tentáculos se estenderiam a Santos, Rio de Janeiro, Salvador e outras partes – mistura escusas manobras políticas e excelência técnica, truculência contra os concorrentes e impulso ao progresso do país.

Trecho retirado do livro “A Capital da Vertigem – Uma História de São Paulo de 1900 a 1954” de Roberto Pompeu de Toledo sobre a empresa de capital canadense The São Paulo Railway Light and Power Co. Ltda, fundada em abril de 1899 e conhecida pelo nome de Light

Os economistas Fabio Silveira, sócio da MacroSector, e José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), alertam que, do ponto de vista estratégico, um desdobramento negativo da forte dependência do agronegócio nas exportações é a baixa geração de empregos qualificados. “Mão de obra qualificada seria demandada se as exportações fossem focadas em segmentos de densidade tecnológica, como a indústria automobilística, eletroeletrônica e nos bens de capital”, observa Silveira.

Trecho retirado do artigo “Baixa geração de emprego qualificado é um efeito da ‘agrodependência’ do País, publicado no jornal O Estado de São Paulo de 26 de janeiro

    Prezados leitores, um dos problemas de envelhecer é a quantidade de memórias que vamos acumulando ao longo da jornada. Memórias de lugares, de pessoas, de acontecimentos. Elas acabam pesando no espírito e fica difícil escapar da tristeza sobre aquilo que se perdeu e não volta mais. Na semana passada, por exemplo, fui a São João Del Rey e conheci a Igreja de São Franciso de Assis. Eu fiz questão de visitar o cemitério atrás da igreja, onde está enterrado Tancredo Neves (1910-1985) e sua esposa Risoleta Neves (1917-2003). Quando cheguei perto dos respectivos túmulos me veio à mente as imagens do enterro transmitido ao vivo pela Rede Globo, o cemitério apinhado de gente, o cortejo com o caixão pelas ruas da cidade. Àquela época a morte de Tancredo Neves foi uma tragédia, por ter nos dado José Sarney como presidente da República, e pelo fato de as esperanças depositadas no primeiro presidente eleito na Nova República, no momento da transição da ditadura para a democracia, terem sido desfeitas. E hoje, passados quase 40 anos do evento, quem se lembra de Tancredo Neves? Por acaso as gerações mais novas sabem quem foi?

    E no entanto, para mim aquele cemitério era cheio de significados, por eu ter acompanhado o drama do homem que passou quase dois meses em um hospital em São Paulo e que acabou enterrado em sua cidade natal. O cemitério ostenta até uma placa comemorativa da visita do presidente francês François Miterrand (1916-1996), o que mostra que um dia os mortos de lá tiveram alguma importância. E hoje os turistas que passam pelo local precisam ser lembrados pelos guias de que um presidente do Brasil que não chegou a tomar posse está enterrado atrás da Igreja, descansando eternamente.

    Há uma outra memória, que guardo no meu saco já pesado. A memória da Light, a empresa canadense que foi responsável pela construção da infraestrutura que permitiu a Sâo Paulo, no começo do século XX, dar um salto de qualidade. Represa de Guarapiranga, Usina Henry Borden, Represa Billings, Usina de Santana de Parnaíba, bondes elétricos, luz elétrica, telégrafo, telefone, tudo que viabilizou a expansão industrial de Sâo Paulo e sua urbanização foram obra da São Paulo Railway Light and Power Co. Ltda. O que me fez lembrar da Light não foi uma viagem, mas a leitura do livro de Roberto Pompeu de Toledo, citado na abertura deste artigo. Se o túmulo de Tancredo Neves me fez lembrar dos rumos que o país poderia ter tomado se tivesse tido a liderança do político mineiro, a descrição do autor de “A Capital da Vertigem” me fez lembrar o que São Paulo foi e representou para o Brasil e que foi perdido.

    Roberto Pompeu de Toledo não doura a pílula a respeito da atuação da São Paulo Railway Light and Power Co. Ltda em terras tropicais. Ele narra a disputa da empresa com o grupo Graffrée e Guinle, donos da Companhia Docas de Santos, narra a interferência da empresa nas eleições da Câmara Municipal de São Paulo, o lançamento de um jornal, a Gazeta, para defender os interesses da Light. Não há dúvida de que ela tinha ambições monopolistas, querendo se tornar a única prestadora de determinados serviços públicos e ser regiamente paga por isso. Por outro lado, como não se impressionar pelo legado que ela deixou e que pode ser comprovado ainda hoje para quem vê a tubulação da Usina Henry Borden encravada na Serra do Mar, para quem passa pela Represa Billings na ida à Baixada Santista? Para não falar do Shopping Light, à beira do Viaduto do Chá, localizado na antiga sede da empresa canadense.

    Naquele início do século XX, a ambição da Light de controlar toda a infraestrutura urbana de São Paulo refletia a ambição da cidade de caminhar rumo ao futuro, representada pelas melhorias urbanas proporcionadas a uma população que não parava de crescer, atraída pelas oportunidades que a cidade oferecia em termos de trabalho nas indústrias nascentes. Nesse sentido, essa ambição era concretizada pelos dirigentes da cidade, entre os quais destacou-se Antônio da Silva Prado, o primeiro prefeito de São Paulo, de 1899 a 1911. Conforme explica Roberto Pompeu de Toledo no trecho que abre este artigo, ele pertencia à classe dos fazendeiros do Oeste paulista, que souberam fazer a transição da agricultura para a indústria, investindo o dinheiro acumulado pela exploração dos cafezais do interior paulista em novos empreendimentos comerciais e industriais, dinamizando a economia. Antônio da Silva Prado fundou o Banco Comind, a Vidraria Santa Marina, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, a Casa Prado-Chaves de exportação de café e ainda loteou as terras da Chácara do Carvalho, que dariam origem ao bairro da Barra Funda. O sociólogo José de Souza Martins considera que ele formulou a ideologia do trabalho que marcaria a vida da cidade.

    Ideologia esta que parece ter sido totalmente superada no século XXI. São Paulo, que foi o motor da industrialização do Brasil no século XX, graças ao pioneirismo dos fazendeiros abastados do Oeste paulista, perdeu o dinamismo nesses tempos de globalização que se iniciaram em 1990. Parece que consolidamos nosso papel de fornecedor de commodities agrícolas no mercado mundial e que nos conformamos com essa posição. E como mostra a reportagem sobre a agrodependência do Brasil citada na abertura deste artigo, o lado negro dessa dependência é justamente a perda da oportunidade de criar empregos qualificados pelo não investimento na indústria. De acordo com José Augusto de Castro, o déficit na balança comercial de manufaturados, de US$ 135 bilhões em 2024, levou o Brasil a deixar de gerar 4 milhões de empregos diretos e indiretos ligados à indústria.

    Essa perda do ímpeto da industrialização e do urbanismo associado à dinâmica econômica está estampada na cidade de São Paulo: os galpões abandonados, os prédios comerciais vazios, os sem-teto e sem-emprego que ocupam as calçadas e praças com suas barracas, a sujeira por toda parte. No começo do século XX tínhamos um conselheiro que inaugurou a Pinacoteca do Estado, a Estação da Luz e hospedou os reis da Bélgica em sua Fazenda Guatapará. Hoje temos Ricardo Nunes, acusado de vínculos com o crime organizado. No começo do século XX, tínhamos a Light que fazia e acontecia, cobrava caro, mas entregava. Hoje temos a ENEL que não inspira nenhuma confiança nos paulistanos, depois de tantos apagões ocorridos na cidade em 2024.

    Prezados leitores, entendem por que sou saudosista? As boas memórias são acachapantes, mesmo que elas sejam edulcoradas pelo tempo. Sou do tempo em que tínhamos eficiência na prestação de serviços públicos, liderança, visão estratégica sobre aonde queríamos chegar e corríamos acelerados rumo ao futuro, da agricultura rumo à indústria. Hoje voltamos à agricultura e estamos chafurdados nela. Será que teremos um rumo no século XXI? Ou só lembraremos de bons tempos que se foram, isso para quem tem idade suficiente para lembrar? Aguardemos.

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Postura para quê?

Um dos responsáveis pela boa avaliação de Camilo é o programa Pé-de-Meia, que destina bolsas de estudo a alunos do ensino médio e que já se tornou o quinto maior programa social do governo, com 4 milhões de beneficiados e 12,5 bilhões de reais pagos em 2024. A iniciativa, lançada em 2023, só tem menos recursos do que Bolsa Família, BPC, Seguro-Desemprego e Abono Salarial e supera entre outros, o Auxílio Gás e o Farmácia Popular.

Trecho do artigo “A Estrela Solitária” sobre Camilo Santana, Ministro da Educação, publicado na edição de VEJA de 17 de janeiro

Vivemos em um país de novela. Vivemos em um país de mídias socias/TV a cabo. Em nossa cultura não queremos enfocar questões entediantes sobre política: você quer tomar parte no tipo de guerra cultural infinita que faz com que os eleitores fiquem estimulados. Você não quer enfocar tópicos que exigiriam estudo; você enfoca imagens e questões fáceis de entender que geram reações viscerais instantâneas. Você não ganha esse jogo refletindo profundamente; você ganha simplesmente tomando uma atitude – assumindo uma pose. Seu papel não é o de expor um argumento que possa ajudar o país: seu papel é o de viralizar.

Trecho do artigo “We deserve Pete Hegseth”, de David Brooks, colunista do New York Times, publicado em 15 de janeiro

    Prezados leitores, já assistiram a “Ainda estou aqui”, o filme querido de todos os bem-pensantes do país? Eu já e admito que me emocionei. Não com Fernanda Torres, a ganhadora do Globo de Ouro de melhor atriz em 2025, mas com sua mãe, Fernanda Montenegro, que aparece no final, interpretando Eunice Paiva, já demente. Fernanda Montenegro obviamente não está demente, mas interpreta o velhinho acometido desse mal à perfeição: a boca aberta, o olhar perdido no nada. Ela não precisa dizer uma palavra para expressar o naufrágio intelectual e físico da doença. Parabéns a dona Arlette e se ela não ganhou como melhor atriz em Central do Brasil, tomara que sua filha ganhe, mesmo não merecendo tanto quanto ela.

    Aliás, a indicação do filme ao Oscar nas categorias de melhor filme e melhor filme internacional e de Fernanda Torres ao Oscar de melhor atriz foi manchete nos sites de notícias. Não é de se admirar, considerando que o filme é uma lição de moral contra a direita bolsonarista sobre a ditadura militar. Quem se coloca contra o filme, como o próprio Bolsonaro, que criticou o uso da lei Rouanet para sua realização, é porque está do lado errado, está a favor dos torturadores, da tirania dos militares, dos horrores perpetrados nos porões do poder nas décadas de 60 e 70.

    A ênfase dada à indicação de “Ainda estou aqui” acabou suplantando até a manchete dada à decisão judicial desfavorável ao presidente recém-eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, que havia acabado por decreto com o direito à cidadania americana por qualquer pessoa que nasça em território americano. Um juiz federal de primeira instância considerou tal restrição de direitos inconstitucional e a batalha nos tribunais deverá chegar até a Suprema Corte. De qualquer forma, o fato de Trump ter sofrido uma derrota já é motivo de destaque para aqueles que são contra sua pauta política, que inclui controle da imigração, combate à ideologia identitária, de gênero e de raça e promoção feroz dos interesses dos Estados Unidos.

    Para Peter Brooks, em sua análise da sabatina de Peter Hegseth no Senado americano, citada na abertura deste artigo, os Estados Unidos são um país novelístico. O indicado de Donald Trump ao Ministério da Defesa não apresentou muitos detalhes sobre o que pretende fazer com relação aos desafios que se apresentam no século XXI: uma possível guerra mundial contra países como China, Rússia, Irã e Coreia do Norte, a falta de capacidade industrial dos Estados Unidos, que não mais consegue produzir em quantidade suficiente e em tempo hábil materiais de guerra como munições e armas, a falha do complexo industrial-militar em atender às necessidades do país em termos de poderio bélico para lutar as guerra do século XXI, as quais são diferentes das guerras que os Estados Unidos lutaram após o fim da Segunda Guerra Mundial contra países do Terceiro Mundo, como Vietnã e Iraque, para ficar nos casos mais gritantes.

    Brooks explica que ter ideias claras e viáveis sobre o que fazer para abordar essas diferentes questões não é o importante no país das mídias sociais e da TV a cabo. O importante é ter a atitude certa, a postura certa sobre certos tópicos polêmicos para garantir repercussão e claro, viralização. No caso de Hegseth, sua ideia é acabar com as políticas afirmativas no recrutamento de pessoal para as Forças Armadas dos Estados Unidos: nada de quotas de negros, mulheres, gays, transsexuais e minorias que tais. Esse foi o critério da escolha de Hegseth pelo comandante em chefe: lealdade aos princípios da direita anti-woke, para usar o termo em inglês, cuja epítome é Donald Trump.

    Nesse sentido, o Brasil segue a mesma trilha da ênfase na atitude, na postura em detrimento do conteúdo. Se lá no Norte das Américas quem está no poder é um homem de direita, aqui o presidente é um homem de esquerda, mas a cartilha de procedimentos é a mesma, ditada, lá como aqui, por um eleitorado cativo das mídias sociais. Lula se coloca como o defensor da democracia contra os golpistas de dois anos atrás, o defensor dos pobres, o defensor da justiça social. Para celebrar a derrota dos fascistas que queriam derrubar o governo, Lula promoveu no dia 8 de janeiro uma comemoração reunindo ministros civis, militares e outras autoridades. E para lustrar sua imagem de realizador da justiça social em 2024, o presidente publicou a Lei 14.818, que lança o programa Pé-de-Meia.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o Pé-de-Meia consiste em uma bolsa de estudos para alunos do ensino médio. Na prática ocorrem depósitos mensais na conta do estudante que ao final do ciclo escolar pode receber até R$9.600,00. O objetivo oficial do programa é o de “promover a permanência e a conclusão escolar de pessoas matriculadas no ensino médio público”. O aluno terá que comprovar frequência a pelo menos 80% das aulas para fazer jus ao dinheiro e pronto. Não se fala em ter um mínimo de notas, em ter uma pontuação mínima em algum exame federal, nada disso. Basta estar de corpo presente ou ausente nas aulas e ganha-se a mesada. É inegável que o dinheiro fará diferença na vida dos frequentadores do ensino público, mas quanto à educação que receberão, a qualidade deve permanecer a mesma, pois o foco do programa é no comparecimento às aulas, não no aprendizado. A chaga da educação deficiente que compromete a produtividade dos brasileiros e a produção de riqueza continuará, incólume.

   Mas o que importa isso? A distribuição de bilhões de reais dará cacife a Lula e ao Ministro responsável pelo programa, Camilo Santana, para se apresentarem como defensores dos pobres e como justiceiros sociais. Visão estratégica sobre a importância de uma educação que faça diferença na prática, que seja mais do que assinar a lista de presença na aula ou dizer “Presente” para ganhar bolsa não existe, o que existe é postura, é atitude de esquerda politicamente correta para ganhar eleições.

    Prezados leitores, a direita ganha eleições mostrando-se a favor de valores tradicionais, ligados à religião, a esquerda ganha eleições mostrando-se a favor de pautas progressistas que desafiam o “tradição, família e propriedade” em prol de uma nova visão do ser humano. No frigir dos ovos tanto um lado quanto o outro, para ganhar a atenção dos curtidores das redes sociais, só falam do que é retumbante, mas não tratam do que é importante para de fato proporcionar as condições para que os cidadãos tenham a oportunidade de perseguir seus objetivos pessoais e florescer.  Oxalá os eleitores que optam por um ou outro campo um dia tomem consciência disso e exijam explicações, argumentos e políticas mais consistentes, factíveis e que tenham impacto real em suas vidas.

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