Confúcio e a ética do cavalheiro

[…] Confúcio, como outros professores da antiguidade, tinha por objetivo criar uma sociedade estável, mantendo um certo nível de excelência, mas nem sempre lutando para obter novos sucessos. Nisso ele foi mais bem-sucedido do que qualquer outro homem que já passou pela face da Terra. Sua personalidade marcou a civilização chinesa desde seus dias até os dias atuais. Durante a vida de Confúcio, os chineses ocupavam somente uma pequena parte do território atual da China e eram divididos em uma série de estados beligerantes. Durante os próximos trezentos anos, eles se estabeleceram no que hoje é considerada a China e fundaram um império que ultrapassava em termos de extensão e população qualquer outro que existiu até os últimos 50 anos. […] Na essência, o que Confúcio prega é algo muito parecido com o ideal ultrapassado do “cavalheiro”, conforme existia no século dezoito.

Trecho retirado de “Ideais de Felicidade”, ensaio incluído na coletânea de “Ensaios Céticos” do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970), o qual tece considerações sobre o sistema ético chinês em contraposição ao ocidental

Porque é impossível descrever a maneira bonita pela qual tudo nas leis dos chineses, mais do que em qualquer outro povo, tem como objetivo a conquista da tranquilidade pública… O estado das coisas aqui, à medida que a corrupção espalha-se entre nós de maneira desmedida, parece-me tal que pareceria quase necessário que missionários chineses fossem enviados a nós para nos ensinar o uso e a prática da religião natural, da mesma maneira que nós enviamos missionários a eles para lhes ensinarem a religião revelada. De maneira que considero que se um homem sábio fosse escolhido para julgar… a excelência dos povos, ele iria dar o prêmio máximo aos chineses […]

Trecho do livro “Novissima Sinaica”, do filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

    Prezados leitores, em março de 2022 em “Confúcio e a algocracia” eu explorei as raízes dessa invenção chinesa, o crédito social, na ética confuciana. À época argumentei que para o filósofo chinês Confúcio (551 a.C.-479 a.C) não poderia haver uma sociedade ordenada e pacífica sem que cada indivíduo, em suas relações familiares, pessoais e profissionais, tivesse as atitudes corretas, então controlar o comportamento de cada pessoa ao final resultaria na construção daquele ideal almejado de ordem, paz e prosperidade. No Ocidente, o crédito social é considerado o símbolo do totalitarismo chinês, pois permite o controle pelo Estado de tudo o que o cidadão faz e consome. Meu objetivo nesta semana é mostrar que os princípios que embasam esse sistema de pontuação para o bom comportamento podem ser uma fonte de liberdade e da única ética possível para os seres humanos, isto é, aquele que não é contrária à nossa natureza e afinidades naturais. Para isso vou basear-me nas considerações de Bertrand Russell sobre a ética confuciana, da qual ele era um grande entusiasta.

    No ensaio “Ideais de Felicidade”, o filósofo inglês estabelece como uma das diferenças cruciais entre a ética ocidental e a ética chinesa a ideia, fundada na Bíblia, de um pecado original, isto é, de que todo homem nasce corrompido, tão corrompido que ele merece a punição eterna. Uma série de consequências surge desse pecado original. Se o homem é naturalmente mau, o objetivo da ética é o de controlar os seus próprios impulsos e tentar controlar os impulsos alheios, de maneira que não basta ao homem ético abandonar os prazeres, mas também garantir que as outras pessoas também o façam.

Para Russell, essa é uma receita certa para a hipocrisia, pois os impulsos naturais não são facilmente domados, então o homem busca racionalizações para explicar para si mesmo e aos outros o porquê de não ter atingido o ideal de bom comportamento. Pior, essa hipocrisia envolve também agir da maneira mais antiética possível, chafurdando nos mais baixos instintos como se estivesse atuando como um santo, pois tem uma sublime explicação para fazê-lo. Os guerreiros cruzados, que nos séculos XI, XII e XIII lutaram na Palestina em nome de Cristo, matando, pilhando e destruindo, são o exemplo acabado dessa dissonância entre o ideal ético abstrato, incompatível com o homem real, e o comportamento prático.

    Uma segunda consequência da crença no pecado original do homem para Bertrand Russell é que as diferenças de opinião entre os ocidentais se transformam rapidamente em questões de princípio: cada lado considera que o outro lado é malévolo e qualquer compromisso com o partido oposto significa compactuar com sua malignidade. Nesse sentido, é muito mais difícil submeter as diferenças a argumentos e à razão, porque a visão maniqueísta do bem contra o mal obscurece qualquer nuance e leva a uma disposição maior a recorrer à força para resolver disputas, já que estas logo se tornam ferozes pela invocação de conceitos absolutos como o bem e o mal.

    A esse mito do pecado original, cultivado no Ocidente, o filósofo inglês contrapõe a falta dessa noção de que todos somos irremediavelmente pecadores entre os chineses. Daí surgir o ideal confuciano do cavalheiro, conforme o trecho citado na abertura deste artigo. O cavalheiro não está obrigado a fazer coisas excepcionais que exijam um grande autocontrole. Não se está aqui a pedir que o homem reprima sua natureza e suas simpatias: Confúcio não pede que o pai denuncie o filho ou que o filho denuncie o pai, pelo contrário, ele considera errado fazer isso, pois os laços familiares devem sempre ser reforçados, a família sendo a unidade básica da sociedade.

    Além disso, o cavalheiro não precisa amar a humanidade, pois isso não é possível. Basta que ele trate a todos de maneira polida, evitando ser briguento e quando disputar algo com alguém deve pedir a mediação de um terceiro para resolver o conflito. E resolver o conflito não é dar razão a uma parte em detrimento da outra: é chegar a um meio-termo que salve as aparências para ambas isto é, que evite que elas sejam humilhadas e permita que ambas possam seguir em frente, tendo preservado sua dignidade. Segundo Russell, essa ênfase no compromisso faz com que a vida social e política na China seja bem menos implacável que no Ocidente, aferrado a princípios morais abstratos de difícil concretização, como amor universal e perdão.

    Essas explicações sobre a ética confuciana do cavalheiro permitem-nos entender a que Leibniz se refere no trecho que abre este artigo, quando fala da religião natural praticada pelos chineses, em contraposição à religião revelada dos ocidentais, a qual temos como ideal, mas que raramente colocamos em prática. A religião natural, incentivando a tolerância e o respeito mútuos, não pedindo mais do cavalheiro do que ele pode dar, estimulando as fidelidades familiares provou ser uma receita mais duradoura de ordem e paz do que aquela testada no Ocidente, afinal o Império do Meio existe como país unificado desde o século VI a.C., o que não é o caso de nenhum país da Europa ou das Américas.

    Prezados leitores, em um tempo tão polarizado como o nosso, em que um país como os Estados Unidos se vê como excepcional, em que Israel vê-se participando de um embate contra as forças do mal, representadas pelos terroristas sanguinários do Hamas, e em que muitos islâmicos querem empreender a jihad contra os infiéis, será que esse pragmatismo confuciano dos objetivos modestos em prol de conquistas mais duradouras não é uma proposta mais civilizada? Será que ela não evitaria a conflagração mundial que a cada dia parece mais perto? Bertrand Russell, grande pacifista de sua época, que foi preso por protestar contra a Primeira Guerra Mundial e lutou toda sua vida contra os princípios absolutos, certamente diria que sim.

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Grande homem ou herói?

“Aqui está uma morte digna!” disse Napoleão ao fitar Bolkonski.

O Príncipe André percebeu que a frase era a respeito dele, e que era Napoleão quem falava. Ele ouviu o falante ser interpelado como Senhor. Mas ele ouviu as palavras como se tivesse ouvido o zumbido de um mosquito. Não somente elas não o interessavam, como não prestou atenção a elas e imediatamente as esqueceu. A cabeça dele ardia, ele se sentia sangrando até a morte, e via acima de si mesmo o céu remoto, imponente e eterno. Ele sabia tratar-se de Napoleão – seu herói – mas naquele momento Napoleão parecia uma criatura tão insignificante em comparação com o que estava se passando então entre ele e aquele majestoso infinito com as nuvens que voavam no céu. Naquele momento não importava nada para ele quem estava em pé ao lado dele ou o que era dito dele; ele estava simplesmente feliz que havia pessoas ao seu lado e somente desejava que elas o ajudassem e o trouxessem de volta à vida, que lhe parecia tão bonita agora que ele aprendera a entendê-la de maneira diferente. Ele reuniu todas as suas forças para mover-se e emitir um som. Ele moveu debilmente a perna e emitiu um grunhido fraco e mórbido que o fez sentir pena de si mesmo.

Ah! Ele está vivo”, disse Napoleão. “Levantem esse jovem e levem-no à enfermaria.”

Trecho do livro “Guerra e Paz” do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) em que o personagem André Bolkonski encontra-se entre os feridos da Batalha de Austerlitz (1805), em que Napoleão Bonaparte (1769-1821) venceu os exércitos da Áustria e da Rússia

Nada além de um nome permanece daqueles que comandaram batalhões e frotas; nada resulta para a raça humana de cem batalhas ganhas; mas os grandes homens dos quais falei prepararam delícias para gerações ainda por nascer. Um canal que liga dois mares, um quadro de Poussin, uma bela tragédia, uma verdade descoberta são coisas mil vezes mais preciosas do que todos os anais da corte, todas as narrativas de guerra. Eu chamo de grandes homens todos aqueles que se sobressaíram no útil e no agradável. Os destruidores de províncias são simplesmente heróis.

Trecho de uma carta escrita em 1736 pelo filósofo francês Voltaire (1694-1778), citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

O filme trata de maneira superficial os saques em escala industrial de Napoleão e seu hábito de partir rapidamente quando o seu exército tinha algum problema. Ainda assim, o veredito de Ridley Scott sobre seu personagem, como marido e líder, é cruel. Para os defensores de Napoleão, ele foi um grande defensor do Iluminismo e um romântico inveterado. Nesta encarnação ele é um belicista e um animal.

Trecho retirado do artigo “O complexo de Napoleão”, publicado na edição de 18 de novembro da revista The Economist sobre “Napoleão”, o filme de Ridley Scott

    Prezados leitores, um dos itens do ”Sobe” da revista VEJA desta semana é o filme “Napoleão”, que liderou as bilheterias de cinema do Brasil. O filme narra a ascensão e queda de Napoleão Bonaparte, uma das figuras históricas sobre as quais mais livros foram escritos até hoje. Como atualmente os livros não são lá apreciados, a quem tem alguma curiosidade histórica assistir a filmes biográficos pode ser uma via de obtenção de conhecimento. A criação de Ridley Scott tem como foco as batalhas travadas pelo corso tornado general, cônsul e imperador.

    É uma opção que faz sentido do ponto de vista cinematográfico, considerando os recursos de inteligência artificial à disposição dos cineastas: as cenas são estupendas porque tem-se uma visão de cima que mostra a disposição dos milhares de soldados e uma visão dos detalhes da guerra: os cavalos feridos, os corpos crivados de balas afogando nos lagos cobertos de gelo. É de se esperar que, depois de quase três horas de filme, o espectador saia do cinema convencido de que Napoleão adorava guerras, conforme descreve a resenha da revista “The Economist” citada na abertura deste artigo, ainda mais que ao final apresenta-se o número de mortos das principais batalhas travadas por Napoleão, que totaliza ao redor de três milhões de pessoas durante quase 20 anos de campanhas militares.

    Nesse sentido, o veredito de Ridley Scott, um britânico, de que Napoleão buscou o poder e a glória à custa da vida de milhões de pessoas, para no final acabar seus dias de maneira patética em uma ilha no meio do Atlântico, coincide com a opinião que o filósofo francês Voltaire teria do personagem se o tivesse conhecido. Afinal, conforme o trecho que abre este artigo, Voltaire não dava valor nenhum aos que ganhavam guerras, porque eles só deixavam um rastro de destruição. Grandes homens eram aqueles que deixavam um legado para a humanidade tanto do ponto de vista espiritual isto é, na ciência, na literatura, nas artes, na filosofia, quanto do ponto de vista material isto é, na construção de obras e instituições que contribuíssem para o progresso da humanidade.

    E que progresso era esse? Voltaire desenvolve no livro “Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações desde Carlos Magno até os nossos dias” (1769) um conceito de como seria esse progresso e assim estabelece uma filosofia da história, no sentido de um princípio fundamental que determinava a aventura humana no planeta azul. A história seria o lento avanço do homem, cheio de trapalhadas, de idas e vindas, da ignorância para o conhecimento, dos milagres para a ciência, da superstição para a razão. Para o filósofo que foi um crítico feroz da religião católica na França, não havia atuação de nenhuma providência divina nos assuntos humanos, para que eles caminhassem rumo aos desígnios inescrutáveis de uma entidade sobrenatural. O sentido da história era dado pelo espírito subjacente à criação humana por excelência, a civilização, que tinha seus próprios valores, costumes, modos de agir e de pensar, maneiras de apreciar a beleza e de atingir o transcendente por meio da arte. O produto eterno de cada civilização que o homem conseguiu criar na face da Terra eram as manifestações do intelecto, em qualquer área.

    Considerando essa grande corrente subjacente que dava identidade à civilização e era o motor dos empreendimentos humanos, e portanto, da história, um homem como Napoleão era irrelevante no grande esquema das coisas, porque era simplesmente um gênio militar, não um gênio do espirito. Gênio militar porque ganhou 90% das batalhas que travou, mas um animal do ponto de vista do espírito da história, porque seus empreendimentos bélicos não construíram nada e com a derrota de Waterloo em 1815 a França acabou ficando com um território menor do que aquele que tinha antes da ascensão do corso “parvenu” ao poder.

    Voltaire viveu no século XVIII, Napoleão construiu sua biografia no século XIX. Se Voltaire o tivesse conhecido, como conheceu o belicista da sua época, o rei da Prússia Frederico, o Grande, sua atitude provavelmente seria aquela de distanciamento que André Bolkonski tem em seu momento de epifania, citado na abertura deste artigo. Crente que está a ponto de morrer dos ferimentos recebidos na Batalha de Austerlitz, que foi o ápice da carreira militar de Napoleão Bonaparte, Bolkonski começa a dar valor à vida de uma maneira que nunca havia feito antes. Poder apreciar o céu deitado na relva torna-se de repente mais importante do que os sonhos de grandeza que ele nutrira ao alistar-se no Exército Russo para lutar contra a Grande Armée francesa, imbuído de admiração pelas façanhas do corso que não perdia nunca. E quando Bolkonski vê Napoleão em carne e osso, em vez de ficar embasbacado ante a aparição de seu ídolo, ele o ignora em prol da singela experiência de olhar para o céu porque continua vivo.

    Grande homem ou herói? É certo que por tudo que foi dito aqui Napoleão se encaixa na categoria desprezível de herói, estabelecida por Voltaire. E no entanto, é inegável que algo ficou das aventuras do corso: o Código Civil que entrou em vigor em 1804 na França e espalhou-se pela Europa e pela América Latina ao longo do século XIX. Com modificações, ele ainda vige em todos os países nos quais foi implantado. Sob essa perspectiva, dar um veredito final sobre um personagem complexo como Napoleão Bonaparte é tarefa inútil, e sempre haverá os detratores que realçam seus vícios e os admiradores que se detêm sobre suas virtudes.

    Prezados leitores, uma coisa é certa: se Napoleão contribuiu para superar o caos e a violência desencadeados pela Revolução Francesa e a consolidar as conquistas dela em termos de direitos humanos, a despeito do seu rastro de destruição ele contribuiu para a civilização viabilizando o progresso das trevas para a luz de que fala Voltaire. Nesse sentido, ele não é só um herói bélico, mas um grande homem. Portanto, se forem assistir ao filme de Ridley Scott, lembrem-se que o personagem ali montado é apenas um recorte do homem de carne e osso que deu uma grande contribuição para a França superar definitivamente o obscurantismo da Idade Média para entrar nas luzes da Idade Moderna.

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Guerra… e a Paz?

Cada classe e cada país sempre garante para si a maior parcela possível da riqueza, e no final das contas são as forças armadas que decidem qual o tamanho dessa parcela. […] Assim, eu presumo que a autoridade central será criada pela força, ou pela ameaça da força, não por uma organização voluntária como a Liga das Nações, que nunca será forte o suficiente para coagir as Grandes Potências recalcitrantes.

Trecho retirado do ensaio “Algumas Perspectivas” escrito pelo filósofo Bertrand Russell (1872-1970) e incluído na coletânea dos seus “Ensaios Céticos”, publicados em 1928

Maquiavel não entendeu a verdadeira natureza do soberano… Longe de ser o senhor absoluto daqueles que lhe são subordinados, ele é somente o primeiro dos seus servidores, devendo ser o instrumento do seu bem-estar, assim como eles são o instrumento da sua glória.

Trecho retirado do livro “Refutação do Príncipe de Maquiavel”, escrito em 1739 pelo príncipe herdeiro da Prússia, Frederico (1712-1786), sob a influência do filósofo francês Voltaire (1694-1778), citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Parece claro e evidente para mim que um indivíduo deve manter sua palavra de maneira escrupulosa…Se ele for enganado ele pode pedir a proteção das leis… Mas a que tribunal o soberano pode recorrer se outro príncipe viola os compromissos feitos a ele? A palavra de um indivíduo implica o infortúnio de um único homem; aquela de um soberano pode causar uma calamidade geral em toda uma nação. Tudo isso pode ser reduzido a uma pergunta: é melhor que as pessoas pereçam do que o príncipe violar um tratado? Que imbecil hesitaria em decidir essa questão?

Trecho retirado do livro póstumo “História do meu Tempo” escrito pelo rei Frederico II (1740-1786) da Prússia, chamado de Frederico o Grande

    Prezados leitores, na semana passada citei Alistair Cooke, ex-embaixador britânico, e o citarei novamente nesta semana. De acordo com ele, no artigo “O Chapéu do Mágico e o Grande Simulacro do Bálsamo Paliativo” a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ofereceu 10 bilhões de dólares ao Egito e 5 bilhões de dólares à Jordânia para que aceitem receber os palestinos residentes na Faixa de Gaza, que está sendo bombardeada pelos israelenses desde o ataque do Hamas em 7 de outubro. O objetivo então parece ser facilitar a concretização da solução final de Israel que é se livrar dos palestinos e criar o Grande Israel da Bíblia, conforme expliquei aqui na semana passada.

    De acordo com Ron Unz em seu site, até agora pelo menos 14.000 habitantes de Gaza já morreram, dois terços deles mulheres e crianças, fora os que estão sob os escombros das construções destruídas. Será que os 2 milhões e 300 mil palestinos que lá viviam até outubro irão ser desalojados definitivamente e abrigados em tendas no deserto do Sinai? Será que perderão definitivamente qualquer ligação com a Terra da Palestina? Os governantes do Egito e da Jordânia teriam recusado a oferta, mas de repente se Dona Úrsula aumentar as cifras eles acabem aceitando e será a pá de cal no Estado Palestino. Os despossados palestinos, sem terem a proteção de nenhum Estado forte, sofrerão a derradeira e a maior das injustiças ao longo dos 75 anos de conflitos pelo território.

    Se formos olhar para a história esse é um destino comum a outros povos obliterados pela incapacidade de resistir à força das armas. Não devemos nos espantar, mas apenas lamentar como Yasser Arafat, o líder da Organização para a Libertação da Palestina o fez, lembrando dos índios americanos e do desejo dele de que o seu povo não tivesse o mesmo fim trágico. Poderíamos argumentar que se tivéssemos partes em conflito menos sectárias e dogmáticas, como é o caso do governo de direita capitaneado por Benjamin Netanyahu em Israel e o Hamas teríamos uma chance de paz.

    No entanto, a análise da trajetória de um príncipe enciclopédico como Frederico o Grande, que conversava sobre as artes, a guerra, a medicina, a literatura, a religião, a filosofia, a moral, a história e as leis, tocava flauta e escrevia poemas em francês nas horas vagas e manteve uma correspondência profícua com um intelectual do porte de Voltaire mostra que a realidade da capacidade ou da aptidão para a guerra e a paz é complexa.

    Conforme o trecho que abre este artigo, antes de suceder ao pai Frederico Guilherme I (1688-1740), Frederico, o Grande cultivava ideais iluministas de governar com justiça, clemência e bondade para o bem-estar do povo. A conquista e manutenção do poder à moda maquiavélica, isto é, a qualquer custo, mesmo ao custo da destruição e da miséria do povo, lhe eram repugnantes. E ao ascender ao poder, em 1740, Frederico praticou essas virtudes que ele exaltou em seu livro contra Maquiavel. Diante da safra ruim que se esperava no verão ele ordenou a venda de grãos a preços razoáveis aos pobres, aboliu o uso da tortura em processos criminais, ordenou que todas as religiões fossem toleradas e que nenhuma tivesse a liberdade de se impor à outra. Além disso, sob a influência de Voltaire, seu amigo, Frederico o Grande deu novo ímpeto à Academia de Ciências de Berlim.

    Tudo muito de acordo com o modelo de um rei-filósofo, livre das superstições e evitando perseguir pessoas por suas crenças. Mas no mesmo ano em que Frederico assumiu o poder na Prússia o Imperador do Sacro Império Romano Germânico, rei da Hungria, Croácia e Boêmia, Arquiduque da Áustria, Carlos VI (1685-1740) morria sem ter herdeiros masculinos, só uma filha Maria Theresa (1717-1780), cuja herança foi contestada. Não me cabe aqui descrever todos os detalhes da Guerra de Sucessão Austríaca (1740-1748), basta dizer que Frederico, depois de aliar-se ora a um país ora a outro, conforme as conveniências do momento, renegar tratados firmados e invadir a Silésia, que era parte dos domínios do imperador morto, acabou conseguindo ficar com a região para si. Foi assim que o rei-filósofo se transformou no rei-soldado. Mas como sua mente não havia desaprendido as lições absorvidas antes, Frederico justificou sua adesão a Maquiavel.

    Conforme mostra o trecho que abre este artigo, o rei da Prússia passou a considerar que a moral que rege a vida de um indivíduo não pode reger a vida de um Estado soberano. Afinal o indivíduo, se tiver seus direitos violados, pode recorrer à justiça do país, de forma que há um incentivo para que as pessoas ajam corretamente, do contrário serão punidas. Mas qual o incentivo para um Estado cumprir as obrigações firmadas em um tratado assinado com um aliado? Afinal, se o aliado não cumprir sua parte do acordo, a quem recorrer para fazê-lo cumprir? Há por acaso uma instância supranacional que possa ser acionada para fazer os recalcitrantes seguirem a lei? Não havendo quem imponha a obediência, não é melhor cada Estado proteger-se cumprindo obrigações com outros Estados soberanos só quando isso lhe for vantajoso ou pelo menos não lhes prejudicar? O que se ganha na cena internacional em seguir princípios éticos se isso pode diminuir o poder e a riqueza de um país? A ética vale mais do que o bem-estar do povo do qual o soberano tem a responsabilidade de cuidar?

    Um outro filósofo, este do século XX, fez a mesma constatação da onipresença da força nas relações internacionais, mas ao contrário do rei da Prússia, propunha um caminho para a paz. Em seu ensaio “Perspectivas”, escrito sob a influência da disputa entre capitalismo e socialismo em voga na década de 1920, Bertrand Russell defende que, como contraponto à força da guerra representada pelas disputas militares entre os países por recursos, uma força da paz deveria ser imposta a todos os Estados. Seu objetivo seria o de impedir a proliferação de conflitos pelo mundo e ela teria eficácia justamente por ser um exercício de poder em prol da coletividade e não de um determinado país.

    As palavras de Russell sobre a Liga das Nações, que depois de 1945 foi rebatizada de Organização das Nações Unidas, revelam-se prescientes sobre a situação de hoje. A ONU, por ser uma organização voluntária, não tem a força necessária para impor a ordem e nunca terá, de acordo com o filósofo inglês. Nosso destino, independentemente do nível de cultura dos governantes, parece ser o da guerra. E a paz, onde ficará? No século XXI ela ficará sob os escombros de Gaza?

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Narcisas e Narcisos

Um dia Narciso mandou uma espada para Ameinius, seu pretendente mais insistente. Ameinius matou-se perto de Narciso, clamando aos deuses que vingassem sua morte. Ártemis ouviu sua súplica. No local chamado Donacon, em Téspias, Narciso chegou perto de uma fonte d’água, límpida como a prata, e à medida que ele se abaixou, exausto, na grama à beira da fonte para aplacar sua sede, ele apaixonou-se pelo seu reflexo, mirando o lago, embasbacado. Como ele conseguiria suportar possuir e ao mesmo tempo não possuir?

Trecho da história de Narciso, retirada da mitologia grega, conforme contada pelo poeta e romancista inglês Robert Graves (1895-1985) no livro “Os Mitos Gregos”

É claro, conforme ressalta o ex-diplomata israelense, esse enredo constrói-se basicamente a respeito da ambição pessoal de Netanyahu – ele manobra para diminuir as críticas e permanecer no poder o quanto ele puder. Mais importante que isso, ele espera que isso lhe permita diluir a culpa, afastando de si próprio toda e qualquer responsabilidade. [Melhor ainda], “isso pode colocar Gaza em um contexto histórico e épico como um acontecimento que pode tornar o primeiro-ministro o líder em tempos de guerra da grandeza e da glória”.[…] A contextualização por parte de Netanyahu da guerra em Gaza em termos absolutamente maniqueístas – a luz versus as trevas; a civilização versus a barbárie; Gaza como o local do mal; todos os habitantes de Gaza como cúmplices do mal causado pelo Hamas: os palestinos como não humanos – tudo isso está agitando as emoções israelenses e trazendo de volta a memória de uma ideologia no estilo daquela predominante em 1948.

Trecho do artigo “O escorpião vai picar o sapo americano?” escrito pelo ex-diplomata britânico Alastair Crooke e publicado em 20 de novembro

    Prezados leitores, permitam-me compartilhar uma experiência pessoal que tive há algum tempo. Eu trabalhei durante dois anos sob a chefia de uma personalidade que apresentava um distúrbio sério de caráter. Não tenho treinamento em psicologia para fazer um diagnóstico preciso, mas vou valer-me do mito grego de Narciso para lançar luz sobre minha experiência. Afinal, conforme uma das definições de mito da Enciclopédia Britânica ele é “um termo coletivo utilizado para um tipo de comunicação simbólica”, então se eu explorar a história de Narciso como um símbolo poderei comunicar melhor aquilo que vivenciei profissionalmente. Ao final, esse uso do mito para iluminar um aspecto da minha vida servirá como base para eu iluminar o que se passa na cena internacional.

    Conforme o trecho que abre este artigo, Narciso foi punido pela deusa Ártemis que atendeu a um pedido de Ameinius, que amava Narciso, sem ser correspondido, já que o filho da ninfa Liríope e do deus do rio Céfiso orgulhava-se tanto de sua beleza que ele considerava todos os seus pretendentes indignos dele. A punição infligida por Ártemis consistiu em fazer com que Narciso visse sua própria imagem refletida no espelho d’água e se enamorasse dela. Como ele jamais poderia tocar na própria imagem e possuí-la, Narciso preferiu cravar uma faca em seu peito para acabar com o sofrimento de não poder realizar o amor que tinha por si mesmo.

    Considero pertinente utilizar o mito de Narciso para falar da personalidade da minha chefe – era uma mulher – porque para seus subordinados ela apresentava-se como perfeita. Ela sabia tudo mais do que nós, e quando eu mostrava algo novo a ela, que eu tinha descoberto fazendo meus neurônios trabalharem, ela comentava simplesmente que ela já tinha visto aquilo em algum momento no tempo. Como um ser perfeito, ela não errava e se o erro fosse de tal modo flagrante que era impossível fingir que ele não ocorrera, ele tinha sido fruto de um erro anterior, de algum dos seus funcionários, que a haviam levado a trilhar o mal caminho.

    A consciência de que minha chefe tinha um distúrbio de personalidade ficou aguda em mim quando assisti ao filme “A Queda” que narra os últimos dias de Adolf Hitler (1889-1945) no bunker em Berlim, rodeado pelos colaboradores mais próximos. Ao ver o líder nazista vituperar contra tudo e todos, achar sempre um culpado para o que dava de errado e nunca admitir que tinha falhado, eu identifiquei imediatamente semelhanças com o comportamento da minha querida chefe, de quem eu dizia brincando aos meus colegas de infortúnio que na outra encarnação ela havia sido chefe de campo de concentração na Manchúria, região ocupada pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial.

    Lidar com tipos narcísicos, que só olham para o próprio umbigo, para as próprias necessidades, como se o mundo tivesse que se adaptar a eles, girando em torno deles, como os planetas giram em torno do sol é um desafio, para dizer o mínimo. Minha estratégia foi exercer controle mental para eu não perder as estribeiras e o emprego e começar a procurar uma outra colocação assim que eu tivesse conseguido beneficiar-me do meu período de trabalho sob as ordens da dita cuja, em termos de aquisição de conhecimentos. E assim eu fiz, e quando disse à Narcisa que eu tinha arranjado um outro emprego, ela sentiu-se traída porque eu ousara procurar sair da sua batuta.

    O perigo coletivo em relação aos narcisistas é que a política é um campo que os atrai, por dar-lhes oportunidade de brilhar e de olhar sua imagem refletida nos eleitores que admiram o líder, reforçando assim sua vaidade. Fazendo novamente as devidas ressalvas sobre minha falta de conhecimento especializado sobre psicologia, a leitura do artigo de Alastair Crooke sobre a estratégia adotada pelo primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, para lidar com o ataque do Hamas de 7 de outubro, parece apontar para um homem enamorado da ideia que ele faz de si mesmo e que ele pretende colocar em prática.

    De acordo com o ex-diplomata britânico, para desviar a atenção dos israelenses da tremenda falha de segurança que permitiu que centenas de membros do Hamas invadissem vários kibutzim e fizessem reféns, Netanyahu quer se colocar como o chefe de guerra que irá concretizar a solução final do problema palestino. Com a ajuda militar dos Estados Unidos, que lhes fornecem as bombas e os mísseis, Netanyahu quer bombardear Gaza de tal maneira que não reste pedra sobre pedra e a vida lá se torne totalmente inviável. Aos palestinos restará morrer se ficarem ou fugirem para algum país árabe vizinho, de forma que o sonho do Grande Israel possa ser colocado em prática.

    Crooke chama Israel de escorpião e os Estados Unidos de sapo sobre o qual Israel quer atravessar o rio, tal qual na fábula antiga. E como sabemos, o final não é feliz: o escorpião traiçoeiro pica o sapo, que morre envenenado, e o escorpião acaba morrendo afogado, pois perde a proteção daquele que confiou nele e lhe deu carona apesar da sua peçonha. A ameaça à paz no mundo reside no fato de que se os Estados Unidos continuarem compactuando com o bombardeio de Gaza, fornecendo aos israelenses os meios bélicos para tanto, e assim causando a morte de milhares de civis palestinos, eles perderão toda a credibilidade de que ainda dispõe no mundo e isso pode levar a uma reação por parte dos países árabes, que atuarão militarmente para que a matança não continue.

    Dessa forma, os sonhos de grandeza de Benjamin Netanyahu, que quer se tornar o líder que recriou o Grande Israel descrito na Bíblia, podem desencadear um conflito regional e mundial. Qual será o destino deste Narciso? Ele se matará depois de ter causado o sofrimento de muitos, como narra o mito grego? Ou o povo israelense perceberá que o caminho escolhido por ele é inviável no longo prazo e trocará de líder, como eu humildemente fiz na minha vida pessoal? Aguardemos e torçamos para que o desenlace do drama narcísico não ocorra demasiado tarde para os palestinos.

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Al-Aqsa Reloaded

Na religião e na política, ao contrário, em que pese ainda não haver nada que se aproxime do conhecimento científico, todo mundo considera de bom tom ter uma opinião dogmática, a ser respaldada causando fome, prisão e guerra e a ser protegida da concorrência argumentativa de quaisquer opiniões diferentes. Se fosse possível levar os homens a ter uma mentalidade minimamente agnóstica em relação a esses assuntos, nove décimos dos males do mundo moderno seriam curados.

Trecho retirado do ensaio “Livre-Pensamento” incluído no livro “Ensaios Céticos” do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970)

O problema é que Benjamim Netanyahu faz tudo para que uma solução política não seja discutida. E é nesse ponto que a comunidade internacional, a Europa, os Estados Unidos, devem dizer a Benjamim Netanyahu que essa guerra não é aceitável. Do Hamas vai-se passar ao Irã, vai-se passar a outros alvos e entrar-se-á então em uma lógica de guerra de civilizações. Quando Benjamim Netanyahu diz que há “de um lado o povo da luz e do outro o povo das trevas”, vê-se bem em qual engrenagem estamos metidos.

Trecho da entrevista dada em 7 de novembro a uma TV francesa pelo ex- Ministro das Relações Exteriores e ex-Primeiro-Ministro Dominique de Villepin sobre a guerra empreendida por Israel contra o Hamas

Guerreiros cristãos que em vão buscais uma e outra vez pretextos para a guerra, […] vós frequentemente tendes sido o terror do vosso próximo, ide lutar contra os bárbaros, ide e lutai pela redenção dos Lugares Santos. Vós, que por um soldo vil vendeis o vigor dos seus braços à ira de outros, armai-vos com a espada dos Macabeus e ide e fazei por merecer a recompensa eterna. Se triunfardes sobre vossos inimigos, os reinos do Leste serão vossa recompensa. Se os vencerdes tereis a honra de morrer no mesmo lugar de Cristo e Deus jamais Se esquecerá que vos achou nos santos batalhões.

Trecho da conclamação do papa Urbano II (1042-1099) à Primeira Cruzada para a conquista de Jerusalém, em 27 de novembro de 1095 no Concílio de Clermont

    Prezados leitores, as coincidências abundam, os ecos do passado retumbam. No dia 7 de outubro de 2023 o grupo palestino Hamas lançou uma operação chamada de “al-Aqsa Flood” contra Israel.  Al-Aqsa é o nome de uma mesquita em Jerusalém, e a razão da referência a este nome é que algumas semanas antes daquela famigerada data o local da mesquita havia sido palco de conflitos entre árabes e judeus. Não é de se surpreender que lá haja disputas entre pessoas de diferentes denominações religiosas. Segundo a tradição muçulmana, foi de al-Aqsa que o profeta Maomé ascendeu ao céu. Por outro lado, nessa mesma esplanada onde foi erigida a mesquita, haviam estado antes o Primeiro Templo de Salomão, construído entre os séculos X e VI a.C., e o Segundo Templo de Salomão edificado no século VI a.C., reconstruído nos tempos de Herodes, o Grande (73 a.C. – 4 a.C.) e saqueado e destruído pelos romanos em 70 d.C., o que levou à diáspora judaica. Para arrematar, al-Aqsa foi a sede da Ordem dos Cavaleiros Templários em Jerusalém, os soldados de Cristo. É a respeito dos defensores da fé que desejo falar inicialmente nesta semana.

    Segundo o verbete “Templarios” do dicionário Nuevo Espasa Ilustrado, os Templários foram uma ordem religiosa e militar fundada por Hugues de Payens (1074-1136) e mais sete companheiros em Jerusalém em 1118 para proteger os peregrinos que se dirigiam aos lugares santos, logo se convertendo na vanguarda do exército cristão na Terra Santa. E que exército cristão era esse? Nada mais nada menos do que aquela formado ante a convocação feita pelo papa Urbano II para que os cristãos parassem de guerrear entre si e fossem combater os infiéis, isto é, os não cristãos no Oriente Médio, conforme mostra o trecho que abre este artigo.

    Um soldado que matasse ou morresse em combate para que os locais onde havia vivido e morrido Jesus Cristo fossem conquistados dos muçulmanos que então os controlavam estaria bendito por Deus, porque suas ações tinham sido todas em nome Dele e para Ele. Uma excelente racionalização para homens praticarem as violências típicas de combates com uma boa consciência, boa o suficiente para subverter totalmente o princípio cristão da humildade em nome de Cristo. E assim, sob os auspícios da finória argumentação do papa iniciou-se a primeira das guerras das civilizações, a que se deu o nome de Cruzadas.

    A primeira e certamente não a última e há quem diga que um novo choque de civilizações está para ser detonado. Uma dessas pessoas é o ex-Ministro das Relações Exteriores e ex-Primeiro-Ministro da França Dominique de Villepin. Na entrevista que é citada na abertura deste artigo, Villepin argumenta que Israel está lutando uma guerra do passado. Não adianta tentar resolver o problema dos palestinos pela força e pela violência, pois isso não leva a lugar nenhum há 75 anos. Quanto mais força Israel usa, mais inseguro o país se torna, então é preciso mudar a abordagem. Tampouco adianta o governo israelense assinar acordos de cooperação econômica ou tecnológica com os países árabes, porque o povo árabe na rua quer antes de mais nada justiça para os palestinos. Para Villepin, é necessário que os países ocidentais façam pressão para Israel parar com esses bombardeios da Faixa de Gaza e começar a negociar seriamente a criação do Estado Palestino. Do contrário, a guerra que hoje se concentra na Faixa de Gaza espalhar-se-á pelo Oriente Médio e colocará de um lado os muçulmanos e de outro os judeus e seus aliados ocidentais.

    Utópico da parte de Villepin propor uma saída política e não militar? Provavelmente, especialmente se considerarmos as palavras de Bertrand Russell que já foi citado neste humilde espaço defendendo o direito dos palestinos de terem seu próprio lar. Afinal, conforme explica o filósofo britânico no trecho que abre este artigo, política e religião são as áreas cujo nível de conhecimento fica o mais longe do nível de conhecimento atingido nas ciências. Ao contrário das ciências, que conseguiram ao longo dos séculos estabelecer procedimentos consensuais para a descoberta da verdade e a mudar tais procedimentos quando assim mostrou-se necessário para o avanço do conhecimento, nem a política nem a religião chegaram nesse patamar de confiabilidade. Cada indivíduo arvora-se o direito de ter uma posição inarredável e de ignorar os argumentos contrários, tudo para a defesa dos seus próprios valores sagrados. Para Russell, a esperança consiste em tentar inculcar nas pessoas um pouco de incerteza em relação a suas próprias opiniões políticas e religiosas, de modo a relativizá-las e colocá-las no seu devido lugar. Só assim o comportamento das pessoas, incluindo a prática bélica, será menos determinado por elas.

    Villepin quer que as partes que hoje se digladiam parem para conversar e achar um modo de conviverem em prol da paz, da prosperidade e da segurança mútuas, Russell propunha que as pessoas fossem levadas por meio da educação para o livre-pensamento a perceber como faltam argumentos lógicos e consistentes para toda e qualquer posição religiosa e política. Em ambos os casos procura-se superar a tendência humana à credulidade e à irracionalidade, as quais sempre vêm à tona em qualquer guerra de civilizações, em que há o choque de dogmatismos.

Prezados leitores, aguardemos o desenrolar dos acontecimentos que prometem se transformar em uma guerra no mínimo regional. Enquanto isso, lembremo-nos que Al-Aqsa tem significados diferentes para cristãos, judeus e muçulmanos. Talvez se todos eles concordassem que al-Aqsa é simplesmente um local de importância histórica conseguíssemos começar a concretizar o sonho de racionalidade e paz de Dominique de Villepin e de Bertrand Russell.

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