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Confúcio e a ética do cavalheiro

Posted by on 13/12/2023

[…] Confúcio, como outros professores da antiguidade, tinha por objetivo criar uma sociedade estável, mantendo um certo nível de excelência, mas nem sempre lutando para obter novos sucessos. Nisso ele foi mais bem-sucedido do que qualquer outro homem que já passou pela face da Terra. Sua personalidade marcou a civilização chinesa desde seus dias até os dias atuais. Durante a vida de Confúcio, os chineses ocupavam somente uma pequena parte do território atual da China e eram divididos em uma série de estados beligerantes. Durante os próximos trezentos anos, eles se estabeleceram no que hoje é considerada a China e fundaram um império que ultrapassava em termos de extensão e população qualquer outro que existiu até os últimos 50 anos. […] Na essência, o que Confúcio prega é algo muito parecido com o ideal ultrapassado do “cavalheiro”, conforme existia no século dezoito.

Trecho retirado de “Ideais de Felicidade”, ensaio incluído na coletânea de “Ensaios Céticos” do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970), o qual tece considerações sobre o sistema ético chinês em contraposição ao ocidental

Porque é impossível descrever a maneira bonita pela qual tudo nas leis dos chineses, mais do que em qualquer outro povo, tem como objetivo a conquista da tranquilidade pública… O estado das coisas aqui, à medida que a corrupção espalha-se entre nós de maneira desmedida, parece-me tal que pareceria quase necessário que missionários chineses fossem enviados a nós para nos ensinar o uso e a prática da religião natural, da mesma maneira que nós enviamos missionários a eles para lhes ensinarem a religião revelada. De maneira que considero que se um homem sábio fosse escolhido para julgar… a excelência dos povos, ele iria dar o prêmio máximo aos chineses […]

Trecho do livro “Novissima Sinaica”, do filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

    Prezados leitores, em março de 2022 em “Confúcio e a algocracia” eu explorei as raízes dessa invenção chinesa, o crédito social, na ética confuciana. À época argumentei que para o filósofo chinês Confúcio (551 a.C.-479 a.C) não poderia haver uma sociedade ordenada e pacífica sem que cada indivíduo, em suas relações familiares, pessoais e profissionais, tivesse as atitudes corretas, então controlar o comportamento de cada pessoa ao final resultaria na construção daquele ideal almejado de ordem, paz e prosperidade. No Ocidente, o crédito social é considerado o símbolo do totalitarismo chinês, pois permite o controle pelo Estado de tudo o que o cidadão faz e consome. Meu objetivo nesta semana é mostrar que os princípios que embasam esse sistema de pontuação para o bom comportamento podem ser uma fonte de liberdade e da única ética possível para os seres humanos, isto é, aquele que não é contrária à nossa natureza e afinidades naturais. Para isso vou basear-me nas considerações de Bertrand Russell sobre a ética confuciana, da qual ele era um grande entusiasta.

    No ensaio “Ideais de Felicidade”, o filósofo inglês estabelece como uma das diferenças cruciais entre a ética ocidental e a ética chinesa a ideia, fundada na Bíblia, de um pecado original, isto é, de que todo homem nasce corrompido, tão corrompido que ele merece a punição eterna. Uma série de consequências surge desse pecado original. Se o homem é naturalmente mau, o objetivo da ética é o de controlar os seus próprios impulsos e tentar controlar os impulsos alheios, de maneira que não basta ao homem ético abandonar os prazeres, mas também garantir que as outras pessoas também o façam.

Para Russell, essa é uma receita certa para a hipocrisia, pois os impulsos naturais não são facilmente domados, então o homem busca racionalizações para explicar para si mesmo e aos outros o porquê de não ter atingido o ideal de bom comportamento. Pior, essa hipocrisia envolve também agir da maneira mais antiética possível, chafurdando nos mais baixos instintos como se estivesse atuando como um santo, pois tem uma sublime explicação para fazê-lo. Os guerreiros cruzados, que nos séculos XI, XII e XIII lutaram na Palestina em nome de Cristo, matando, pilhando e destruindo, são o exemplo acabado dessa dissonância entre o ideal ético abstrato, incompatível com o homem real, e o comportamento prático.

    Uma segunda consequência da crença no pecado original do homem para Bertrand Russell é que as diferenças de opinião entre os ocidentais se transformam rapidamente em questões de princípio: cada lado considera que o outro lado é malévolo e qualquer compromisso com o partido oposto significa compactuar com sua malignidade. Nesse sentido, é muito mais difícil submeter as diferenças a argumentos e à razão, porque a visão maniqueísta do bem contra o mal obscurece qualquer nuance e leva a uma disposição maior a recorrer à força para resolver disputas, já que estas logo se tornam ferozes pela invocação de conceitos absolutos como o bem e o mal.

    A esse mito do pecado original, cultivado no Ocidente, o filósofo inglês contrapõe a falta dessa noção de que todos somos irremediavelmente pecadores entre os chineses. Daí surgir o ideal confuciano do cavalheiro, conforme o trecho citado na abertura deste artigo. O cavalheiro não está obrigado a fazer coisas excepcionais que exijam um grande autocontrole. Não se está aqui a pedir que o homem reprima sua natureza e suas simpatias: Confúcio não pede que o pai denuncie o filho ou que o filho denuncie o pai, pelo contrário, ele considera errado fazer isso, pois os laços familiares devem sempre ser reforçados, a família sendo a unidade básica da sociedade.

    Além disso, o cavalheiro não precisa amar a humanidade, pois isso não é possível. Basta que ele trate a todos de maneira polida, evitando ser briguento e quando disputar algo com alguém deve pedir a mediação de um terceiro para resolver o conflito. E resolver o conflito não é dar razão a uma parte em detrimento da outra: é chegar a um meio-termo que salve as aparências para ambas isto é, que evite que elas sejam humilhadas e permita que ambas possam seguir em frente, tendo preservado sua dignidade. Segundo Russell, essa ênfase no compromisso faz com que a vida social e política na China seja bem menos implacável que no Ocidente, aferrado a princípios morais abstratos de difícil concretização, como amor universal e perdão.

    Essas explicações sobre a ética confuciana do cavalheiro permitem-nos entender a que Leibniz se refere no trecho que abre este artigo, quando fala da religião natural praticada pelos chineses, em contraposição à religião revelada dos ocidentais, a qual temos como ideal, mas que raramente colocamos em prática. A religião natural, incentivando a tolerância e o respeito mútuos, não pedindo mais do cavalheiro do que ele pode dar, estimulando as fidelidades familiares provou ser uma receita mais duradoura de ordem e paz do que aquela testada no Ocidente, afinal o Império do Meio existe como país unificado desde o século VI a.C., o que não é o caso de nenhum país da Europa ou das Américas.

    Prezados leitores, em um tempo tão polarizado como o nosso, em que um país como os Estados Unidos se vê como excepcional, em que Israel vê-se participando de um embate contra as forças do mal, representadas pelos terroristas sanguinários do Hamas, e em que muitos islâmicos querem empreender a jihad contra os infiéis, será que esse pragmatismo confuciano dos objetivos modestos em prol de conquistas mais duradouras não é uma proposta mais civilizada? Será que ela não evitaria a conflagração mundial que a cada dia parece mais perto? Bertrand Russell, grande pacifista de sua época, que foi preso por protestar contra a Primeira Guerra Mundial e lutou toda sua vida contra os princípios absolutos, certamente diria que sim.

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