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Grande homem ou herói?

Posted by on 06/12/2023

“Aqui está uma morte digna!” disse Napoleão ao fitar Bolkonski.

O Príncipe André percebeu que a frase era a respeito dele, e que era Napoleão quem falava. Ele ouviu o falante ser interpelado como Senhor. Mas ele ouviu as palavras como se tivesse ouvido o zumbido de um mosquito. Não somente elas não o interessavam, como não prestou atenção a elas e imediatamente as esqueceu. A cabeça dele ardia, ele se sentia sangrando até a morte, e via acima de si mesmo o céu remoto, imponente e eterno. Ele sabia tratar-se de Napoleão – seu herói – mas naquele momento Napoleão parecia uma criatura tão insignificante em comparação com o que estava se passando então entre ele e aquele majestoso infinito com as nuvens que voavam no céu. Naquele momento não importava nada para ele quem estava em pé ao lado dele ou o que era dito dele; ele estava simplesmente feliz que havia pessoas ao seu lado e somente desejava que elas o ajudassem e o trouxessem de volta à vida, que lhe parecia tão bonita agora que ele aprendera a entendê-la de maneira diferente. Ele reuniu todas as suas forças para mover-se e emitir um som. Ele moveu debilmente a perna e emitiu um grunhido fraco e mórbido que o fez sentir pena de si mesmo.

Ah! Ele está vivo”, disse Napoleão. “Levantem esse jovem e levem-no à enfermaria.”

Trecho do livro “Guerra e Paz” do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) em que o personagem André Bolkonski encontra-se entre os feridos da Batalha de Austerlitz (1805), em que Napoleão Bonaparte (1769-1821) venceu os exércitos da Áustria e da Rússia

Nada além de um nome permanece daqueles que comandaram batalhões e frotas; nada resulta para a raça humana de cem batalhas ganhas; mas os grandes homens dos quais falei prepararam delícias para gerações ainda por nascer. Um canal que liga dois mares, um quadro de Poussin, uma bela tragédia, uma verdade descoberta são coisas mil vezes mais preciosas do que todos os anais da corte, todas as narrativas de guerra. Eu chamo de grandes homens todos aqueles que se sobressaíram no útil e no agradável. Os destruidores de províncias são simplesmente heróis.

Trecho de uma carta escrita em 1736 pelo filósofo francês Voltaire (1694-1778), citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

O filme trata de maneira superficial os saques em escala industrial de Napoleão e seu hábito de partir rapidamente quando o seu exército tinha algum problema. Ainda assim, o veredito de Ridley Scott sobre seu personagem, como marido e líder, é cruel. Para os defensores de Napoleão, ele foi um grande defensor do Iluminismo e um romântico inveterado. Nesta encarnação ele é um belicista e um animal.

Trecho retirado do artigo “O complexo de Napoleão”, publicado na edição de 18 de novembro da revista The Economist sobre “Napoleão”, o filme de Ridley Scott

    Prezados leitores, um dos itens do ”Sobe” da revista VEJA desta semana é o filme “Napoleão”, que liderou as bilheterias de cinema do Brasil. O filme narra a ascensão e queda de Napoleão Bonaparte, uma das figuras históricas sobre as quais mais livros foram escritos até hoje. Como atualmente os livros não são lá apreciados, a quem tem alguma curiosidade histórica assistir a filmes biográficos pode ser uma via de obtenção de conhecimento. A criação de Ridley Scott tem como foco as batalhas travadas pelo corso tornado general, cônsul e imperador.

    É uma opção que faz sentido do ponto de vista cinematográfico, considerando os recursos de inteligência artificial à disposição dos cineastas: as cenas são estupendas porque tem-se uma visão de cima que mostra a disposição dos milhares de soldados e uma visão dos detalhes da guerra: os cavalos feridos, os corpos crivados de balas afogando nos lagos cobertos de gelo. É de se esperar que, depois de quase três horas de filme, o espectador saia do cinema convencido de que Napoleão adorava guerras, conforme descreve a resenha da revista “The Economist” citada na abertura deste artigo, ainda mais que ao final apresenta-se o número de mortos das principais batalhas travadas por Napoleão, que totaliza ao redor de três milhões de pessoas durante quase 20 anos de campanhas militares.

    Nesse sentido, o veredito de Ridley Scott, um britânico, de que Napoleão buscou o poder e a glória à custa da vida de milhões de pessoas, para no final acabar seus dias de maneira patética em uma ilha no meio do Atlântico, coincide com a opinião que o filósofo francês Voltaire teria do personagem se o tivesse conhecido. Afinal, conforme o trecho que abre este artigo, Voltaire não dava valor nenhum aos que ganhavam guerras, porque eles só deixavam um rastro de destruição. Grandes homens eram aqueles que deixavam um legado para a humanidade tanto do ponto de vista espiritual isto é, na ciência, na literatura, nas artes, na filosofia, quanto do ponto de vista material isto é, na construção de obras e instituições que contribuíssem para o progresso da humanidade.

    E que progresso era esse? Voltaire desenvolve no livro “Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações desde Carlos Magno até os nossos dias” (1769) um conceito de como seria esse progresso e assim estabelece uma filosofia da história, no sentido de um princípio fundamental que determinava a aventura humana no planeta azul. A história seria o lento avanço do homem, cheio de trapalhadas, de idas e vindas, da ignorância para o conhecimento, dos milagres para a ciência, da superstição para a razão. Para o filósofo que foi um crítico feroz da religião católica na França, não havia atuação de nenhuma providência divina nos assuntos humanos, para que eles caminhassem rumo aos desígnios inescrutáveis de uma entidade sobrenatural. O sentido da história era dado pelo espírito subjacente à criação humana por excelência, a civilização, que tinha seus próprios valores, costumes, modos de agir e de pensar, maneiras de apreciar a beleza e de atingir o transcendente por meio da arte. O produto eterno de cada civilização que o homem conseguiu criar na face da Terra eram as manifestações do intelecto, em qualquer área.

    Considerando essa grande corrente subjacente que dava identidade à civilização e era o motor dos empreendimentos humanos, e portanto, da história, um homem como Napoleão era irrelevante no grande esquema das coisas, porque era simplesmente um gênio militar, não um gênio do espirito. Gênio militar porque ganhou 90% das batalhas que travou, mas um animal do ponto de vista do espírito da história, porque seus empreendimentos bélicos não construíram nada e com a derrota de Waterloo em 1815 a França acabou ficando com um território menor do que aquele que tinha antes da ascensão do corso “parvenu” ao poder.

    Voltaire viveu no século XVIII, Napoleão construiu sua biografia no século XIX. Se Voltaire o tivesse conhecido, como conheceu o belicista da sua época, o rei da Prússia Frederico, o Grande, sua atitude provavelmente seria aquela de distanciamento que André Bolkonski tem em seu momento de epifania, citado na abertura deste artigo. Crente que está a ponto de morrer dos ferimentos recebidos na Batalha de Austerlitz, que foi o ápice da carreira militar de Napoleão Bonaparte, Bolkonski começa a dar valor à vida de uma maneira que nunca havia feito antes. Poder apreciar o céu deitado na relva torna-se de repente mais importante do que os sonhos de grandeza que ele nutrira ao alistar-se no Exército Russo para lutar contra a Grande Armée francesa, imbuído de admiração pelas façanhas do corso que não perdia nunca. E quando Bolkonski vê Napoleão em carne e osso, em vez de ficar embasbacado ante a aparição de seu ídolo, ele o ignora em prol da singela experiência de olhar para o céu porque continua vivo.

    Grande homem ou herói? É certo que por tudo que foi dito aqui Napoleão se encaixa na categoria desprezível de herói, estabelecida por Voltaire. E no entanto, é inegável que algo ficou das aventuras do corso: o Código Civil que entrou em vigor em 1804 na França e espalhou-se pela Europa e pela América Latina ao longo do século XIX. Com modificações, ele ainda vige em todos os países nos quais foi implantado. Sob essa perspectiva, dar um veredito final sobre um personagem complexo como Napoleão Bonaparte é tarefa inútil, e sempre haverá os detratores que realçam seus vícios e os admiradores que se detêm sobre suas virtudes.

    Prezados leitores, uma coisa é certa: se Napoleão contribuiu para superar o caos e a violência desencadeados pela Revolução Francesa e a consolidar as conquistas dela em termos de direitos humanos, a despeito do seu rastro de destruição ele contribuiu para a civilização viabilizando o progresso das trevas para a luz de que fala Voltaire. Nesse sentido, ele não é só um herói bélico, mas um grande homem. Portanto, se forem assistir ao filme de Ridley Scott, lembrem-se que o personagem ali montado é apenas um recorte do homem de carne e osso que deu uma grande contribuição para a França superar definitivamente o obscurantismo da Idade Média para entrar nas luzes da Idade Moderna.

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