Sacrifícios para quê?

A nova base, tanto da moral quanto da lei, seria o princípio da utilidade – a utilidade de um ato para o indivíduo, de um costume para o grupo, de uma lei para o povo, de um acordo internacional para a humanidade. […] à parte seu objetivo imediato, o propósito final e o teste moral de todas as ações e leis é o grau em que elas contribuem para a maior quantidade de felicidade do maior número de pessoas.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o pensamento do filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832)

Determinados homens têm uma alma suficientemente forte para tais devotamentos, cuja recompensa encontra-se para eles na certeza de ter proporcionado a felicidade à pessoa amada.

Trecho retirado do livro “Colonel Chabert”, do escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850)

Não posso dizer a você tudo aquilo que eu vi, porque eu presenciei crimes contra os quais a justiça é impotente.

Trecho retirado do livro “Colonel Chabert”, do escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850)

    Prezados leitores, permitam-se contar-lhes o final do livro Colonel Chabert, cujo enredo descrevi aqui neste meu humilde espaço na semana passada (no artigo Felicidade para quê?) até o momento em que a transação entre Hyacinthe e Rose, mediada pelo advogado, se inicia e logo desanda, quando Chabert entra na sala impulsionado por suas emoções. Ao perceber que seu primeiro marido está irreconhecível, a posição frágil que a princípio a mulher ocupava por não querer um escândalo que lhe prejudicasse a posição social e o casamento com um aristocrata se desfaz. Rose, recuperada do medo da ameaça do processo judicial, amealha suas forças mentais e parte para o ataque.

    O ataque dela é certeiro e fatal. Ela vê que o pobre sobrevivente da Batalha de Eylau, que um dia a tirou da prostituição e a fez sua esposa, ainda gosta dela, o que permite à mulher manipular suas emoções. Rose leva Hyacinthe para longe do advogado, para uma casa no campo, onde convive com ele durante dias, mostrando seu lado meigo, frágil, de mulher preocupada com a sorte de seus filhos se seu casamento for desfeito. Chabert vai sendo engambelado, vai acreditando na boa fé da esposa que agora é mãe de família e quer proteger as crianças. Como ele a ama, jamais fará nada que a faça sofrer e conforme o trecho que abre este artigo, a recompensa do amador é ver o objeto do seu zelo feliz.

    A ilusão do pobre Chabert se desfaz quando Rose apresenta-lhe um documento preparado por seu próprio advogado atestando que ele não é o Coronel Chabert, para que dessa forma ela resolva de vez o problema e ele volte ao mundo dos mortos e não possa exigir um centavo dela. Chabert desgostoso, dando-se conta de que a tênue esperança de que ela pelo menos o deixasse viver em algum de seus imóveis rurais, dignamente, sem incomodar ninguém, diz a Rose que ele não assinará nada e que ela não precisa se preocupar porque não haverá processo judicial nenhum. A condessa Ferraud sai materialmente ilesa do incidente, com seu patrimônio intacto. Chabert, depois de vagabundear durante meses, é preso e anos mais tarde acaba terminando seus dias em um asilo para indigentes, meio demente.

    Balzac mostra neste livro os limites da justiça. A justiça falhou em ajudar o Coronel Chabert, como o próprio advogado dele, Derville, admite no fim do livro, conforme o trecho citado na abertura deste artigo. A felicidade da condessa, que não tinha a mínima compaixão pelo infortúnio do primeiro marido e só queria livrar-se dele, se fosse preciso colocando-o num hospício, é obtida por meio do sacrifício de Chabert, que se dispôs a sair de cena porque seu amor pela esposa era maior do que seu desejo de vingar-se pela mesquinharia dela. Enfim, temos aqui um jogo de soma zero em que um perde para que o outro ganhe e vice-versa.

    Jeremy Bentham, o pai do utilitarismo, certamente não aprovaria esse arranjo. A ideia de uma pessoa sacrificar-se pela outra, de inspiração religiosa, para ele era abominável, porque normalmente significava que o grupo dos poderosos pedia aos não poderosos que abdicassem de coisas em nome de algum ideal sobrenatural que na prática era apenas um estratagema para que os poderosos defendessem seus interesses. Nesse sentido, Bentham ofereceu um novo fundamento para a moral, livre de abstrações, como direitos humanos, liberdade e conceitos religiosos, como culpa, pecado e sacrifício.

    Conforme o trecho que abre este artigo, a medida da justeza de uma lei ou conjunto de leis não é se ela está de acordo com algum mito religioso ou ideal filosófico, mas uma medida quantitativa. Lei boa é aquela que permite o maior número possível de pessoas na sociedade gozando da maior felicidade possível. E a felicidade em si também é sujeita à mensuração, não tendo nada de etéreo: ela é a ausência de dor ou a existência de prazer, de forma que no cômputo geral o saldo seja positivo, ou seja, a soma dos prazeres seja maior do que a das dores.

    Fundando a moral e o direito em uma utilidade quantificável e não na religião ou na filosofia, Bentham considerava que a aplicação da lei não deveria ser um ato de vingança pelo crime cometido, mas um instrumento de prevenção do crime. Daí ele ser contra punições severas, que à sua época continuavam bastante comuns, já que a pena de morte era aplicada a toda sorte de condutas delitivas, desde assassinatos até roubos. Se os preceitos morais e legais não têm origem religiosa, para quê castigos severos como mostra de lealdade a alguma divindade cuja autoridade havia sido desafiada? Bastava uma punição que garantisse a estabilidade e a segurança da sociedade pelo seu efeito dissuasório. Afinal, era só em uma sociedade estável e segura que a felicidade do maior número seria factível.

    É por isso que, sob a ótica utilitarista de Bentham, o sacrifício que o Coronel Chabert faz em prol da esposa é absurdo. Este gesto de renúncia de Hyacinthe a seus direitos não aumenta o total de felicidade disponível na sociedade, pois leva ao florescimento de uma pessoa e à aniquilação de outra. Esse amor desprendido de Chabert que dava sentido à vida dele a ponto de ele não se importar com seu conforto material, não se encaixa no esquema de cálculos egoístas de Bentham. Aliás, essa era a principal crítica que se fez à doutrina utilitarista: ela não considerava ou negligenciava uma parte considerável da experiência humana – o amor romântico ou dos pais em relação aos filhos, o sacrifício individual, a ajuda mútua, a busca da beleza corporificada na arte.

    E no entanto, como não elogiar uma doutrina que desmascarava as artimanhas daqueles que queriam manter seus privilégios? Rose, para dissuadir Chabert de reclamar seus direitos, invocou o amor que ele tinha em seu coração e o sacrifício que ele faria em nome desse amor como coisas nobres, mas ela mesma não estava disposta a fazer sacrifício nenhum, como aliás, nenhuma pessoa com poder está. Em última análise, para os utilitaristas, o único sacrifício que se pode legitimamente pedir a um indivíduo é que sua busca pela felicidade não atrapalhe a busca da felicidade por outros indivíduos.

    Prezados leitores, Balzac, como arguto observador da sociedade de sua época, que se aburguesava a passos rápidos, mostrou o advento de uma nova ordem moral representada pela condessa Ferraud. A honra, a palavra dada, o sacrifício, o amor cristão eram substituídos pelo cálculo material, pela relações mediadas pela lei, pela fé dos notários que preparavam documentos e pelo dinheiro. Por outro lado, a aniquilação de Chabert mostra os limites da moral utilitarista: pois se o indivíduo é todo egoísmo e ignorância, sua felicidade será sempre obtida em detrimento dos outros e a utilidade total não aumentará.

    Assim, até para que o utilitarismo possa ter um bom resultado pratico em termos daquilo a que ele se propõe, é preciso seguir o velho conselho de Sócrates: conheça-se a ti mesmo, informe-se, pese as repercussões dos seus atos sobre a sociedade e faça um cálculo equilibrado do que é sua felicidade, considerando o curto prazo e o longo prazo. Sem sacrifícios exagerados, mas também sem egoísmos exagerados. Nem tanto a Rose, nem tanto a Hyacinthe, muito pelo contrário…

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Felicidade para quê?

A razão não é um “princípio ou uma faculdade independente”, “não tendo nenhuma tendência de nos estimular à ação; de maneira prática ela é simplesmente uma comparação de diferentes sentimentos. A razão … é calculada para regular nossa conduta de acordo com o valor comparativo que ela atribui a diferentes tipos de excitação” ou impulsos. “A moralidade nada mais é do que um cálculo das consequências,” incluindo as consequências para o grupo.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o pensamento do filósofo e jornalista inglês William Godwin (1756-1836)

 

Existem em Paris muitas mulheres que, semelhantes à condessa Ferraud, vivem com um monstro moral dentro de si, ou ficam lado a lado com o abismo; elas fazem do lugar do mal um calo e ainda conseguem rir dele e se divertir com ele.

Trecho retirado do livro “Colonel Chabert”, do escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850)

 

Prezados leitores, a Batalha de Eylau, travada entre o exército francês de um lado e os exércitos russo e prussiano de outro, é considerada como uma grande carnificina em que o general francês Joaquim Murat (1767-1815) avançou com seus 10.000 cavaleiros sobre os russos, perdendo 1500 dentre eles. No total houve ao redor de 25.000 feridos e 15.000 mortos na batalha travada no que era então a Prússia Oriental. Entre os cavaleiros relacionados como mortos, está Hyacinthe, dito Chabert, marechal de campo e Grande-Oficial da Legião de Honra que comandava um regimento de cavalaria.

Sua esposa, Rose Chapotel, herda os bens do marido e uma polpuda pensão condizente com a patente militar daquele que era um dos queridos de Napoleão e casa-se com o conde Ferraud, com quem tem dois filhos. Ladina para os negócios, a condessa Ferraud multiplica seu patrimônio, enquanto o segundo marido sonha em ser nomeado para a Câmara dos Pares, criada pelo rei Luís XVIII (1755-1815). Para isso ele quer se livrar da esposa que não é mais conveniente para suas ambições políticas e casar com a filha de algum senador. Mas, por enquanto, Rose continua condessa, desfrutando do luxo proporcionado por seu dinheiro e do status social proporcionado pelo esposo aristocrata.

A situação muda com a chegada de um morto-vivo, seu marido que escapa da morte por ficar debaixo do seu cavalo e perambula por 10 anos, vivendo praticamente como um mendigo e tentando retomar o que é seu por direito. Suas cartas à esposa foram ignoradas durante todo esse tempo, mas Chabert acaba encontrando um advogado que acredita na história dele e consegue reunir a documentação necessária para provar que ele está vivo e para anular o óbito. Mais importante do que isso, Deville consegue descobrir o ponto fraco da mulher, que quer a todo custo ficar casada com o conde, mas sabe que este está ávido por encontrar um meio de se livrar dela dignamente. A volta do primeiro marido legítimo seria um meio perfeito.

É esse o monstro moral mencionado na abertura deste artigo. A fachada respeitável e feliz de Rose esconde o medo de o segundo marido repudiá-la sob qualquer pretexto e o medo de que sua vida pregressa de mulher de um militar do exército napoleônico venha à tona, em pleno período de restauração da monarquia dos Bourbon na França. Deville explora muito bem esses fantasmas em sua conversa com a condessa, convencendo-a a transacionar com o marido, isto é, concordando em dar-lhe algum dinheiro em troca do seu silêncio.

Deville então marca um encontro com Hyacinthe e Rose em seu escritório. A ideia é que ele sirva de mediador entre os dois, que ficarão em locais separados para viabilizar a transação. Deville propõe condições a Rose e ela diz se aceita ou não. Ao final, Deville espera que o casal chegue a um acordo satisfatório para ambos a respeito do dinheiro, de modo que Chabert possa viver sem passar por necessidades materiais, como tem ocorrido há anos e que a condessa continue sua vida glamourosa sem atropelos.

Plano sensato do advogado este de colocá-los apartados para não haver interferências emocionais em uma troca que deve ficar no mundo dos negócios para que ambas as partes saiam materialmente satisfeitas. E no entanto, Chabert não se contém: o desejo de conseguir o dinheiro da forma mais viável, que é a de arrancar uma concessão da mulher, ao invés de lançar-se em um processo judicial custoso, longo e de resultado incerto, coexiste com sua mágoa, seu despeito de a mulher estar rica e feliz sem ele, com outro homem, e ele ser um velho alquebrado com a cabeça marcada por uma grande cicatriz. Chabert entra na sala onde está Rose e a confronta, fazendo desandar as negociações.

O comportamento de Chabert ilustra a natureza da razão exposta pelo filósofo inglês William Godwin em seu livro intitulado  “Enquiry Concerning Political Justice and Its Influence on General Virtue and Happiness”. Conforme o trecho que abre este artigo, ela não existe como um princípio em abstrato, com uma vida independente. Ela na verdade serve para fazer uma ponderação sobre nossos diferentes desejos e inclinações e tomar uma decisão sobre como agir. Nesse sentido, a moralidade atua calculando as consequências de tal ou qual curso de ação. Para Godwin a moralidade é a ciência da felicidade humana: ela une o indivíduo ao grupo, criando estímulos para nos convencer, após essa ponderação das diferentes tendências, a atuar da maneira que melhor beneficia todos, pois uma das premissas da moral de Godwin é que não existe maior felicidade para o homem do que contribuir para a felicidade dos outros.

Godwin acredita na possibilidade de aperfeiçoamento da humanidade e isso só será possível pela educação individual: cada pessoa, alargando seu conhecimento e seu campo de visão, terá bases cada vez mais sólidas para considerar as diferentes inclinações que carrega dentro de si, colocando-as em perspectiva, relativizando-as e estabelecendo sua importância no contexto geral. Assim, a educação permitirá que a razão esteja mais bem equipada para fazer as ponderações necessárias sobre as consequências de determinada ação para o indivíduo e para o grupo, levando-o a tomar decisões cada vez mais acertadas, isto é, que tragam felicidade ao mesmo tempo para ele e para a sociedade como um todo.

Prezados leitores, hoje esquecido, em sua época William Godwin foi o mais influente filósofo inglês de sua geração. Se Chabert tivesse seguido sua receita da felicidade, ele teria percebido, depois de ponderar os prós e os contras de um acerto com a mulher, que o melhor a fazer era transigir, a despeito de todo o ressentimento que nutria por uma ingrata que usufruiu por anos de seu dinheiro e se recusou repetidamente a reconhecer que ele não morrera. Transigindo ele conseguiria um módico de felicidade para si, porque teria meios materiais para sustentar-se e para a esposa, que poderia seguir a vida que ela escolhera. E como ensinou Godwin, no final das contas, a felicidade só existe se for compartilhada, se a felicidade de um é a felicidade de todos. Este é o caminho da utopia de Godwin, que acabou sendo apagado pelas areias do tempo.

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Mídias sociais para quê?

Enquanto Orwell teme uma sociedade controlada pela falta de informação, Huxley desconfia de uma sociedade em que o excesso de diversão e de informações insignificantes leva à passividade.

Trecho do podcast “Voix Philosophiques” comentando as ideais do educador americano Neil Postman (1931-2003) veiculados em seu livro “Amusing Ourselves to Death” de 1985

Huxley mostrava uma sociedade do futuro em que a tecnologia reinava suprema, mantendo a humanidade em conforto físico sem conhecimento de nenhuma necessidade e de nenhuma dor, mas também sem liberdade, beleza ou criatividade, e privada a todo momento de uma experiência pessoal única.

Trecho do verbete “Concepções da tecnologia” da edição de 1975 da Enciclopédia Britânica

    Prezados leitores, felizmente as festas de fim de ano se foram. Não é preciso mais mandar mensagens de Feliz Natal e Feliz Ano Novo para ninguém e nem responder às mensagens ou criar algum cartão digital com sua foto e suas felicitações. Em um dos grupos do qual participo no WhatsApp, um dos membros postou uma mensagem budista em inglês. Ela quis ser original e refinada, mas a mensagem era tão longa que nem li. Também não assisto aos vídeos com palavras edificantes sobre o significado do novo ano e sobre a importância dos verdadeiros sentimentos e das verdadeiras riquezas, que claro, não são nunca os presentes trocados nesta época do ano, mas o amor, a amizade, a espiritualidade.

    Não importa que as pessoas que repetem esse blá blá blá todo muitas vezes lembrem do recipiente da mensagem apenas uma vez por ano. O importante é a maravilhosa intenção de se comunicar, de estabelecer o contato virtual, que cada vez mais substitui o contato físico das pessoas. Todo esse conteúdo transmitido em dezembro, cheio de clichês e de boas intenções toma um tempo enorme daqueles que criam e daqueles que recebem as mensagens. Quem não responde é grosso e indelicado. É preciso gravar um áudio, escrever alguma coisa para mostrar-se pertencente à mesma comunidade digital de arautos de todas as virtudes possíveis que possam ser expressas em palavras. Admirável mundo novo, em que as relações humanas são não só mediadas como viabilizadas pela tecnologia e por isso viram um simulacro.

    Admirável mundo novo é o nome do livro do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), que em pleno século XX mostrou-se profético sobre o lado negro da tecnologia. Conforme o trecho que abre este artigo, a tecnologia possibilitaria ao homem satisfazer suas necessidades físicas ao ponto de fazê-lo atingir um máximo de bem-estar material, isto é, estaria sempre aquecido, bem nutrido e livre de doenças. Ao mesmo tempo, a criação dessa zona de conforto permanente levaria a um embotamento dos sentidos e da consciência, pois privaria o ser humano da motivação para criar e atingir a transcendência como maneira de escapar de uma realidade material miserável. Para Huxley, a arte, a religião, a literatura, a ética eram todos empreendimentos que nasciam da insatisfação do homem com sua vida tal como ela era. Em não havendo motivo de queixa a respeito de uma vida confortável e tranquila, não haveria por que buscar alguma realização intelectual, estética ou moral.

    É por essa visão do que a tecnologia poderia proporcionar ao homem em termos de prazer material que Neil Postman considera Aldous Huxley muito mais relevante para explicar o mundo moderno do que George Orwell (1903-1950), o escritor inglês autor de 1984. Em seu livro sobre uma distopia totalitária em que a língua oficial, INGSOC, tem um vocabulário limitado para inviabilizar o pensamento das pessoas, George Orwell alertou sobre o perigo do totalitarismo. Privado de informações sobre a realidade e privado do instrumento do raciocínio pela imposição da INGSOC, o homem se torna incapaz de resistir à opressão do BIG BROTHER, que está sempre vigiando seus passos, controlando o que ele fala e faz.

    Ao contrário, na distopia hedonista mostrada em Admirável Mundo Novo, o controle é exercido não pela privação, mas pela abundância. Conforme o trecho que abre este artigo, a tecnologia proporciona uma abundância de prazeres e de informações ao ponto de levar o indivíduo à indiferença, pois o excesso prejudica a capacidade de discernimento, de separar o que é importante do que é irrelevante. Se tudo dá prazer, conforto e estamos sempre cientes de tudo porque nada nos é negado no mundo material então nada tem valor. Nesse sentido, Postman considera o alerta dado por uHuxleyHuxley sobre o uso da tecnologia para nos saciar mais premonitório da era da comunicação em massa e dos seus efeitos sobre a decadência cultural e civilizacional do que o alerta dado por George Orwell sobre o uso da tecnologia para nos reprimir.

    A história do século XX mostrou que o totalitarismo à la BIG BROTHER acaba desmoronando porque mais cedo ou mais tarde a realidade bate à porta dos regimes que procuram escondê-la, no caso a riqueza proporcionada pelo capitalismo de mercado em contraposição à escassez de bens de consumo proporcionada pelo socialismo. A história do século XXI tem mostrado até agora, por enquanto, que o excesso de prazeres e de informação acaba tirando o valor de tudo e nivelando tudo por baixo. As mensagens se tornam clichês, o conteúdo veiculado carece de sentido porque é repetido à exaustão e o mais importante é prender a atenção do receptor, fazê-lo rir ou chorar por uns instantes, entretê-lo, mais do que informá-lo de alguma maneira significativa, isto é, que o leve à ação.

    Os cortes de Pablo Marçal, produzidos intensamente na eleição à prefeitura de São Paulo em 2024 e que quase levaram o candidato ao segundo turno, são evidência desse mínimo denominador comum: já que nenhuma proposta política é séria no sentido de ser passível de implementação na prática, basta criar factóides a serem consumidos nas mídias sociais, como um insulto farsesco, uma cadeirada, um tapa na cara para sobressair-se e convencer o eleitor.

    Prezados leitores, Aldous Huxley previu que o homem iria chafurdar nos excessos proporcionados pela tecnologia. Aproveitemos os vídeos do TikTok, as mensagens inspiradoras, os desenhos engraçados para nos entretermos e vivermos o presente, porque nesse admirável mundo novo o amanhã é uma quimera e não tem valor nenhum. Sejamos felizes e se todos os vídeos, mensagens e desenhos forem destruídos por uma hecatombe nuclear ou por um meteorito, o que importa se não deixarmos traço da nossa presença na Terra? Com ou sem cultura, com ou sem legado civilizacional, o importante é que comemos bem, não passamos frio e passamos o tempo agradavelmente de olho na tela do celular.

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Empoderamento para quê?

“Vindication” então relacionava algumas falhas das mulheres daquela época: a afetação de fraqueza e de timidez, que alimenta e satisfaz a premissa masculina da sua superioridade; o vício nas cartas, na fofoca, na astrologia, na sentimentalidade e no lixo literário; a obsessão com a indumentártia e a autoadmiração.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon” escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), falando sobre as ideias contidas no livro “A Vindication of the Rights of Woman” da escritora e filósofa inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797)

 

E eu não podia deixar de pensar em seu modo de vida: uma esposa de quarenta anos para a cozinha, uma de quinze para outras coisas… sem dúvida ele tinha uma ou duas esposas de idade intermediária, mas eu me sentia mal em lhe perguntar.

Trecho retirado do livro “Soumission” do escritor francês Michel Houellebecq (1956- ), em que o narrador descreve sua visita à residência de um professor universitário belga convertido ao islamismo

    Prezados leitores, em algum ano do século XXI, Mohammed Ben Abbes, o candidato da Federação Muçulmana, é eleito presidente da França no segundo turno com apoio do Partido Socialista. No período imediatamente posterior a sua eleição, a Universidade Paris III (Sorbonne Nouvelle), onde o narrador de Soumission trabalha como professor, é fechada. Depois de algum tempo, a universidade é reaberta sob nova direção, dos sauditas, e passa a chamar-se Paris-Sorbonne. O narrador é desligado e começa a receber uma aposentadoria, que é suficiente para ele viver com um certo conforto.

    A situação prossegue assim até que ele é convidado por um professor que atualmente está trabalhando na universidade, Robert Reginger, a visitá-lo em sua casa. O objetivo de Reginger é convencer o narrador a voltar a ensinar na universidade, desde que ele se converta ao Islã. Os argumentos de Reginger em prol da existência de um deus pelo fato de o mundo apresentar evidências de um desenho inteligente não produzem um grande efeito no narrador, que em suas férias forçadas tentara em vão ter contato com o cristianismo visitando a abadia de Ligugé, fundada em 361.

     O que o impressiona mesmo no islamismo não é a teologia, mas a poligamia. Conforme o trecho que abre este artigo, o narrador nota que o professor universitário belga tem várias esposas, uma mais velha que cozinha muito bem, como o narrador pôde constatar, uma bem nova para manter acesa a paixão sexual. O narrador fica curioso em saber se Reginger tem outras esposas nem tão novas quanto a de 15 nem tão velhas como a de 40 para satisfazer outras de suas necessidades. Ter acesso a diferentes tipos de mulheres por meio da poligamia é certamente atraente a um homem como o narrador, que vive sozinho e não mais consegue mulheres a não ser pagando.

    Esta aí um sucesso dos homens: fazer as mulheres atenderem suas necessidades e institucionalizar isso através da religião, dando-lhe uma pátina moral pelo casamento, seja monogâmico ou poligâmico. No século XVIII na Inglaterra, uma mulher percebeu o modo como os homens conseguem isso moldando a mente das mulheres. Para Mary Wollstonecraft, os homens levam as mulheres, ao privá-las da educação que eles recebiam, a ver-se como brinquedos sexuais antes do casamento e como bibelôs, servas obedientes e máquinas de parir depois do casamento.

    Sem educação, as mulheres agem nos limites dos estereótipos cultivados pelos homens para sua satisfação. Conforme o trecho que abre este artigo, elas se mostram fracas e tímidas para reforçar o ego masculino e preenchem a mente com todo tipo de bobagem que as torna incapazes de pensar e de atuar de maneira independente no mundo. Sua única preocupação é a de embelezar-se e admirar-se no espelho, tornando-se assim atraentes o suficiente para fisgar um homem que as sustente e a de agradá-lo o mais longamente possível para que ele continue a sustentá-la.

    Mary Wollstonecraft considerava que essas fraquezas das mulheres, tanto do ponto de vista intelectual quanto de conduta, podiam ser resolvidas pela educação. Se às mulheres fosse dada a mesma chance de desenvolver o corpo e o espírito, elas se tornariam fortes fisicamente e competentes intelectualmente para ganharem sua própria vida e assim fugir dos estereótipos de fraqueza física, docilidade e incapacidade mental a que elas eram circunscritas. Enfim, a escritora e filósofa inglesa, que acabou morrendo de parto antes de completar 40 anos, era uma filha do Iluminismo, crente no poder do conhecimento e da razão para resolver os problemas da humanidade. Contra a opressão feminina pelos homens, contra a falta de liberdade das mulheres de gerir seu próprio destino, nada melhor do que colocá-las nas escolas ao lado dos homens.

    Considerando que, segundo a revista Forbes, a indústria da beleza movimentou 570 bilhões de dólares em 2023 no mundo todo e que se espera que ela cresça 8,4% ao ano até 2028, não parece que as mulheres tenham abandonado de todo a preocupação em mostrar-se atraentes fisicamente para serem objeto do desejo sexual masculino. Mesmo num país como os Estados Unidos, em que, segundo a mesma revista, 58% dos estudantes universitários são mulheres, as vendas de cosméticos e outros produtos de beleza atingiram 94 bilhões de dólares em 2023. Em suma, a educação tão ardentemente proposta por Mary Wollstonecraft, que mudaria a natureza feminina, talvez tenha simplesmente dado mais poder às mulheres para perseguir seus ideais de beleza. E a astrologia e a fofoca, por acaso desapareceram? Ou foram reciclados nas mídias sociais?

    Prezados leitores, talvez o verdadeiro empoderamento não esteja na possibilidade de destruir os estereótipos e construir uma nova mulher, como vislumbrava Mary Wollstonecraft, uma mulher de classe média que tinha condições materiais suficientes para devanear sobre outros mundos possíveis. Talvez o empoderamento seja simplesmente poder escolher entre as várias opções disponíveis. Quem quiser e puder ser símbolo sexual, ok, quem quiser arranjar um bom marido com poder de compra, vá em frente e quem quiser andar com as próprias pernas sempre, correndo o risco de ficar sozinha, sem problemas. Menos problema ainda terá uma mulher que reúna todas essas características. Nesse sentido, o empoderamento feminino serve para que toda e qualquer mulher, independentemente de seu peso, beleza, inteligência, classe social ou caráter moral tenha a oportunidade de perseguir sua própria felicidade no século XXI. A não ser claro, que o livro de Michel Houellebecq se revele uma profecia sinistra…

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Palavras para quê?

A edição 2024 da mais completa e aprofundada pesquisa sobre os hábitos de leitura do brasileiro foi lançada nesta terça (19) com a informação de que nos últimos quatro anos houve uma redução de 6,7 milhões de leitores no país. Pela primeira vez na série histórica da pesquisa, a proporção de não-leitores é maior do que a de leitores na população brasileira: 53% das pessoas não leram nem parte de um livro – impresso ou digital – de qualquer gênero, incluindo didáticos, bíblia e religiosos, nos três meses anteriores à pesquisa.

Trecho retirado do artigo “Mais da metade dos brasileiros não lê livros”, aponta pesquisa, publicado no site da Câmara Brasileira do Livro sobre a 6ª Edição da Pesquisa Retratos da Leitura

Senhor Inspetor, a cabeça de um escritor talvez seja diferente das cabeças que o senhor está acostumado a vasculhar. Para um escritor, a palavra escrita é a realidade. […] Nós, escritores, trabalhamos bem com estereótipos verbais, a realidade só existe se houver uma palavra que a defina.

Trecho retirado do romance Bufo & Spalllanzani, do escritor Rubem Fonseca (1925-2020)

Mais preciso do que Roscelin, ele observava que predicamos uma palavra não como uma ocorrência, mas como tendo significado. Os universais surgem das semelhanças entre as coisas, mas uma semelhança não é em si uma coisa, como o realismo suponha de maneira equivocada.

Trecho retirado do livro “The Wisdom of the West”, do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970), discorrendo sobre as ideias de Pierre Abélard (1079-1142), teólogo e filósofo escolástico francês

A literatura atesta assim a realidade social e econômica por refração e por metáfora, registrando as repercussões dos acontecimentos históricos e dos grandes problemas sociais em um nível individual e mítico: é a maneira pela qual o testemunho literário vive e não se cristaliza como ideologia, isto é, como um esquema morto.

Trecho retirado do livro “La Utopía Arcaica”, do escritor peruano Mario Vargas Llosa (1936-)

    Prezados leitores, vocês conhecem a história de Abelardo e Heloísa? Professor em Paris, Abelardo dava aulas para a sobrinha do cônego Fulbert, vigário geral da Catedral de Notre Dame. Heloísa de Argenteuil (1090-1164) tinha 17 anos e seu professor era 20 anos mais velho. Pintou um clima entre os dois, que levou à consumação sexual e à gravidez de Heloísa. Conta a história que o tio da moça,  enfurecido, mandou castrar Abelardo e ordenou os dois a se recolherem em instituições religiosas. Heloísa teve um filho, Astrolábio (116-1171), tornando-se posteriormente abadessa do convento de Argenteuil. Abelardo tornou-se monge e continuou a dar aulas. Aparentemente nunca mais se viram, mas continuaram a trocar cartas, que hoje podem ser lidas. O quanto e em que partes foram adulteradas ninguém pode dizer com certeza. De qualquer forma, elas eternizam uma trágica história de amor.

    A razão por que menciono o casal francês da Idade Média é que Abelardo tomou parte em uma das principais polêmicas filosóficas da época, a disputa entre nominalistas e realistas. Seguindo o idealismo de Platão, os realistas defendiam que os universais, isto é, os termos gerais que representavam uma recorrência ou um princípio de agrupamento ou classificação, eram coisas. Já os nominalistas, invocando Aristóteles, postulavam que os universais eram simplesmente nomes. Conforme o trecho que abre este artigo, Abelardo filiava-se à corrente dos nominallstas: os universais expressam as semelhanças entre as coisas, mas não são coisas, os referentes desses termos gerais não existem no mundo exterior, apenas como conceitos mentais que ajudam o homem a entender o mundo. O que existe na realidade são coisas das quais extraímos características comuns, abstraindo a miríade de características individuais delas.

    À luz dessa explicação, fica mais fácil entender as palavras de Ivan Canabrava ditas ao inspetor Guedes, que investiga a morte de Delfina Delamare no livro Bufo & Spallanzani, citado na abertura deste artigo e escrito por Rubem Fonseca, ele próprio um policial na década de 1950 no Rio de Janeiro. Para um escritor, a palavra escrita é a realidade no sentido de que esta só se torna inteligível, isto é, presente na mente do indivíduo, se ela for classificada, categorizada, enquadrada, definida por uma palavra, do contrário, ela é um mero borrão, uma sombra indistinta, não perceptível pelo homem. Independentemente se a palavra é a coisa em si ou um conceito mental, ela presentifica a realidade para aquele que a utiliza, torna a realidade mais nítida, clara, livre dos infinitos detalhes que confundem e não explicam nada, como diria o outro Abelardo, o Barbosa, dito Chacrinha (1917-1988), cujo bordão era “eu vim para confundir, não para explicar”.

    Se o escritor usa a palavra para presentificar a realidade na sua mente, a palavra acaba substituindo a realidade. A palavra não é só usada para entender a realidade, mas para criar um mundo paralelo, daí que ela ascende à condição de mito, conforme explica Mario Vargas Llosa no trecho que abre este artigo. A literatura, palavra escrita, é antes de tudo uma narrativa mítica, uma história fictícia que em sendo inventada na mente do escritor descola-se da realidade social e econômica que lhe serviu de inspiração. Para o escritor peruano, se o literato permanecer muito preocupado em ser fiel à realidade social e econômica, atentando para todas as suas particularidades, ele vai se tornar um ideólogo, isto é um veiculador de ideias sobre como ele vê a realidade. A verdadeira literatura não explica a realidade, mesmo porque ela não consegue abarcá-la em sua totalidade, ela tece uma narrativa totalmente independente do mundo das coisas. Tal narrativa cria sua própria teia de significados pela relação das palavras entre si, o que acaba iluminando aquela realidade da qual ela se desprendeu, mostrando-a sob um novo prisma.

    Entendimento e desprendimento da realidade, logos e mito, a literatura, veiculada pelos livros, nos faz mais alertas sobre o mundo que nos cerca e ao mesmo tempo nos permite sonhar com outros mundos possíveis. Uma pena que nós, brasileiros, não atentemos para a utilidade dupla da literatura. Conforme o artigo citado na abertura deste artigo, nos últimos quatro anos houve uma diminuição no número de leitores entre os brasileiros alfabetizados, fato constatado pela pesquisa realizada em 208 municípios. O resultado parece mostrar que nós consideramos a palavra escrita enfadonha e ininteligível, independentemente do meio em que seja veiculada, digital ou físico.

    Prezados leitores, de Abelardo na França do século XI, ao Ivan Canabrava do século XX no Rio de Janeiro, passando por Vargas Llosa no Peru, todos celebraram a palavra em suas múltiplas dimensões, cognitiva, mítica, sensorial e por aí vai. Coisa ou construto mental, realidade ou ficção, ela é a nossa janela para o mundo, nosso meio de interface com ele. Oxalá que o ser humano possa explorar essa ferramenta até o final do nosso percurso na Terra, mesmo que não seja no Brasil, mas alhures. Nossa saúde mental e espiritual agradece.

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