O que queremos?

Como a maior parte dos homens de negócios, ele não tinha respeito nenhum sobre pessoas que escreviam sobre economia ou sobre o governo; ele os considerava frasistas que tinham pouco do senso corretivo da realidade, ou da natureza e dos limites do homem. Ele tinha certeza de saber mais do que eles o que queria a população francesa e o que ela deveria ter: eficiência e integridade no governo, moderação dos impostos, livre iniciativa nos negócios, regularidade do provisionamento, segurança de emprego remunerado na indústria, propriedade campesina e um lugar de destaque para a França no concerto das nações; se isso fosse dado a eles as pessoas não insistiriam em determinar as medidas ou preencher cargos pela contagem de narizes depois de uma disputa verbal.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as ideias que Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França de 1804 a 1814, tinha sobre a necessidade da censura.

Ele havia lido e aceito os princípios de governo de Maquiavel, sem sentir um amor comparável ao do filósofo florentino por seu país. A França não era realmente sua pátria, era apenas seu trampolim. A religião não era para ele a humilde aceitação de um ser supremo, mas um instrumento para a conquista do poder. Homens e mulheres não eram seres dotados de alma, mas instrumentos. Ele não era sanguinário, mas sempre indiferente à carnificina da vitória. Ele tinha a brutalidade de um condottiere, nunca os modos de um cavalheiro. E esse indivíduo vulgar e coroado arrogava-se juiz e censor do pensamento e de todas as manifestações orais, da imprensa, que era o último refúgio da liberdade, e dos salões, que eram cidadelas do livre pensamento da França.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as opiniões da escritora francesa Madame de Stael (1766-1817) sobre a personalidade de Napoleão Bonaparte (1769-1821).

    Prezados leitores, permitam-me relatar um episódio ocorrido comigo há vinte dias. Estava caminhando na rua, à noite, escutando música no meu aparelho celular quando de repente um ciclista veio, tomou-o e foi embora. Seguiram-se os passos esperados de uma vítima: correr para casa para bloquear o aparelho, ligar para o SAC do banco para bloquear senhas. Sabendo da localização do celular, desci à rua, parei uma viatura de polícia e disse a eles onde ele estava. Disseram que iriam passar por lá. Não sei se passaram.

    O engraçado é a reação quase unânime das pessoas quando ouvem sua história: é a de, com mais ou menos delicadeza, alertar sobre a imprudência de usar o celular na rua. Ou seja, a premissa básica em nossa sociedade é que o erro é seu se você ignora o fato de que um celular nas orelhas de um indivíduo na calçada será alvo de furto porque é assim que são as coisas nas grandes cidades brasileiras. O celular é um dispositivo concebido para facilitar a vida das pessoas, inclusive como instrumento de trabalho, mas na prática devido à violência ele deve ser usado dentro de casa ou do escritório, como o bom e velho telefone fixo. Por quê? Ora, porque há gangues de ciclistas e motociclistas atuando impunemente, há redes de receptadores de mercadorias roubadas ou furtadas e há um poder governamental que considera isso banal, a ponto de não dar prioridade ao combate a essa teia de criminalidade.

    Desculpem meu solipsismo. Certo, não sofri violência física, não levei um tiro na cabeça, não fui sequestrada nem estuprada. A subtração de celulares, perto dos outros problemas de segurança que existem em nosso país, é um assunto desimportante. E no entanto, a certeza de que se eu usar novamente o aparelho na rua correrei o mesmo risco me encheu de desânimo e raiva. Fiquei lembrando de que na campanha para a prefeitura, alguns candidatos falaram da questão dos celulares e propuseram medidas.

    O fato é que não há a mínima possibilidade de eu, como cidadã, exigir que alguma providência seja tomada. Posso votar nas próximas eleições no candidato da oposição que aborde o problema. Mas se ele ganhar e não fizer nada? Espero quatro anos para votar em outro candidato e vou alternando as escolhas até eleger um candidato que cumpra promessas? E se nenhum dos eleitos cumpre promessa nenhuma, o que fazer? Conformar-se com a mediocridade e incompetência e seguir em frente, lembrando sempre de jamais tirar o celular da bolsa estando na rua? Quero segurança e não tenho, mas tenho o direito de votar a cada dois anos no Brasil para cargos no Executivo e no Legislativo. De que me serve poder votar? É pecado priorizar a segurança em detrimento da liberdade?

    Napoleão Bonaparte tinha uma resposta definitiva a essa questão, conforme o trecho que abre este artigo. A maioria das pessoas quer ter emprego, quer que o governo seja eficiente e cumpra suas obrigações, quer poder ser proprietário, quer pagar a menor quantidade de impostos possível. Se as pessoas têm acesso a isso, elas não farão questão de ter o direito de escolher representantes e de ter sua voz ouvida em algum parlamento. Quem faz questão de discutir ideias são intelectuais que constroem castelos no ar em termos de sistemas econômicos, sociais e políticos sem levarem em conta a natureza humana, mesmo porque eles normalmente não têm experiência sobre as durezas da vida.

    Daí por que Napoleão se achava no direito de impor censura e concentrar o poder em suas mãos. Se ele sabia como administrar porque tinha conhecimento e experiência por que dar liberdade de expressão para que intelectuais usassem a imprensa como instrumento de crítica ao governo? Por que permitir críticas que desestabilizassem a ordem dominante e trouxessem o risco do caos que havia reinado durante a Revolução Francesa (1789-1799)? Melhor seria censurar para evitar problemas e dar plenas condições ao Imperador realizar sua obra prima, oferecendo paz, segurança e prosperidade aos franceses.

    Não era assim que pensava Madame de Stael, nascida Germaine Necker, filha de Jacques Necker (1732-1804), antigo Ministro das Finanças de Luís XVI. Entre a segurança e a liberdade, a escritora, herdeira da fortuna do seu pai banqueiro, apostava na liberdade de pensamento, mesmo porque Napoleão não era um líder perfeito, ao contrário, ele tinha vários defeitos. Conforme o trecho que abre este artigo, para Madame de Stael ele não seguia nenhum princípio moral, fazendo uso de todos os meios para realizar seus sonhos de poder e glória, inclusive à custa de milhares de vidas. O acordo com a Igreja Católica nada mais fora do que um estratagema para controlar o comportamento das pessoas e tornar o governo mais fácil, pois Napoleão era certamente um agnóstico. Diante de um homem vaidoso que tinha uma autoconfiança muito grande e não sabia quando parar, era preciso ter a liberdade de criticá-lo para que seu comportamento pudesse ser controlado e os franceses não fossem sacrificados no altar das suas conquistas militares.

    Alguns dirão que quando se tem a barriga cheia, e a certeza de que ela permanecerá assim por muito tempo, a liberdade de pensamento e de expressão tem muito mais importância do que para um camponês ou um trabalhador cuja vida era muito mais incerta e perigosa. Napoleão era o homem da segurança material e espiritual, mas ao mesmo tempo era um tirano opressor que não aceitava ser contrariado porque se achava mais inteligente e sábio do que todos. Enquanto seu governo proporcionasse meios de subsistência à maioria silenciosa, ela não se preocuparia com firulas libertárias e o valor da segurança era muito maior que o da liberdade. Só se a segurança fosse ameaçada por derrotas militares é que essa maioria iria prestar atenção à liberdade como direito de livrar-se de um governante que se transformara em um estorvo.

    Prezados leitores, está aí um osso duro de doer em termos de escolha moral. Gozo da liberdade de escrever e publicar meus humildes artigos na internet e ao mesmo tempo não gozo do direito de poder utilizar um celular na rua. O ideal seria que o problema das gangues de ciclistas fosse resolvido por um dos candidatos eleitos democraticamente. Mas e se não for? Será que se o Estado brasileiro continuar a ser incapaz de realizar suas funções mais básicas, proporcionando segurança em seu sentido mais amplo, nossas liberdades democráticas continuarão em pé? Será que, cheios de medo, angústia e ansiedade não acabaremos optando por alguém que nos pareça providente? Aguardemos e esperemos que nossa sociedade permita-nos fazer a síntese entre segurança e liberdade.

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Educação para quê?

É preciso educar a avaliação para que sirva ao seu verdadeiro papel: indicar se a educação está oferecendo a cada pessoa, desde a infância, o mapa para sua vida pessoal e para suas atividades sociais na direção de aumentar o grau de riqueza, liberdade, justiça, civilidade no país onde vive. Não há outro caminho para encaminhar um Brasil mais justo.

Trecho retirado do artigo “A Educação da Educação”, do ex-senador Cristóvam Buarque, publicado na revista VEJA de 29 de novembro

Quem cuida da educação brasileira não pode ignorar uma notícia do dia 30 de outubro. Nela, é apresentada uma pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), identificando as 29 ocupações (dentre 231) com mais gente abandonando do que entrando. Pois não é que ali estão sete categorias ligadas ao ensino? Isso apesar de ganhos salariais de mais de 50%.

Trecho do artigo “Tabela do ‘Estadão’ é grito da profissão docente, de Cláudio de Moura Castro, publicado no jornal o Estado de São Paulo de 1º de dezembro

 

 “De todos os motores sociais, a escola provavelmente é o mais eficaz, porque exerce três tipos de influência sobre os jovens que ela abraça e dirige: uma por meio do mestre, outra por meio dos colegas e a última por meio de regras e regulamentos”. […] Napoleão pensava sobre a educação pública em termos políticos: sua função era a de produzir cidadãos inteligentes mas obedientes. “Ao estabelecer um corpo de professores,” ele disse, com uma franqueza incomum em governos, “meu principal objetivo é o de assegurar os meios para direcionar as opiniões morais e políticas… Enquanto o indivíduo crescer sem saber se é republicano ou monarquista, católico ou agnóstico, o estado nunca formará uma nação; permanecerá sobre pilares vagos e incertos; ficará constantemente exposto à desordem e à mudança.”

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as ideias que Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França de 1804 a 1814, tinha sobre a educação como fundação da ordem moral

    Prezados leitores, sou de uma geração que teve aulas de Educação Moral e Cívica. Não lembro muito bem do conteúdo, porque a matéria não era levada muito a sério e não fazia com que o aluno repetisse de ano, como fazia o Português ou a Matemática. Lembro também que na última página dos cadernos que eu usava no ensino primário havia o Hino Nacional. Até hoje eu o sei de cor, como sei cantar o Hino da Bandeira e o Hino da Independência. Certamente esse conteúdo educacional era resquício da ditadura militar (1964-1985), duvido que hoje as crianças sejam obrigadas a decorar hinos, quaisquer que sejam. Enfim, todo esse civismo e moralismo foi jogado na lata de lixo da história, considerados tão ultrapassados como a sucessão de generais-presidentes.

    E no entanto, há um fundamento histórico para tal educação, independentemente da ideologia do governo. Já falei aqui neste meu humilde espaço, no texto “As Otárias”, sobre a Concordata que Napoleão Bonaparte assinou com a Igreja Católica em 1801 para que a religião voltasse a ter um papel na formação moral dos franceses depois dos loucos anos da Revolução, em que tudo foi permitido, inclusive e principalmente a violência e a desordem. Conforme o trecho que abre este artigo, o imperador também considerava que a educação deveria desempenhar o mesmo papel pragmático: o de inculcar regras e o hábito de respeitá-las não porque aquelas regras fossem verdadeiras, mas porque fazer com que cada cidadão se enquadrasse no molde proposto era bom por si mesmo, levando ao respeito à hierarquia e à ordem e assim à prosperidade de todos.

    Nesse sentido, Napoleão estava longe de ser um ideólogo, ele não tinha paciência com pessoas que pensavam muito e elucubravam sistemas que não levavam em conta a realidade da natureza humana e a experiência histórica. O único exercício filosófico válido era o estudo da História, porque permitia ao homem ter contato com as alegrias e vicissitudes dos que viveram antes dele e a lição a ser tirada era que se a sociedade desse liberdade em demasia aos indivíduos eles abusariam dela e dariam vazão aos seus instintos e paixões, chafurdando na violência, na ganância, na busca do prazer sem medidas. Então tratemos de educar as pessoas para aprenderem as regras da vida em sociedade e assim torná-la mais estável e menos sujeita a revoluções dos radicais da esquerda que queriam a justiça social a qualquer preço e a contrarrevoluções dos reacionários da direita, que queriam a volta da monarquia e do feudalismo.

    O meio que Napoleão encontrou para isso foi criar uma Universidade Imperial, encarregada da formação de professores para atuarem em toda a França. Haveria uma carreira em que cada pessoa só poderia ser promovida se tivesse ocupado anteriormente um posto inferior. 6.400 bolsas de estudo foram incialmente oferecidas para atrair pessoas: em troca da possibilidade de ascensão até os mais altos postos, o indivíduo comprometia-se a dedicar-se ao ensino e a só casar com 25 anos de idade para viabilizar tal comprometimento. E qual era o currículo básico nesta Universidade para os soldados do ensino? Nada de discussões políticas ou morais sobre se a república era melhor que a monarquia ou se a religião era uma opção filosoficamente válida. As matérias eram línguas, literatura e ciências. De acordo com Will Durant, o resultado das bolsas e da reorganização do currículo foi que os franceses ficaram na crista da onda do ponto de vista intelectual na Europa por 50 anos.

    Transformar a escola em um local para aprender como ser um bom cidadão, útil para a sociedade, sem discussões inúteis sobre filosofia que levassem apenas ao embate de ideologias, esse era o ideal de Napoleão. Talvez algumas dessas características possam ser aproveitadas no Brasil em pleno século XXI, sem o ranço da moral e do civismo da década de 1970. Afinal, a tarefa de regenerar a docência é urgente em nosso país, conforme mostra a pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) citada na abertura deste artigo, que identificou 29 ocupações no ramo educacional entre as mais indesejadas no Brasil, a despeito do aumento salarial. Se os professores estão fugindo de dar aulas, independentemente do quanto ganham, deve haver algum problema no ambiente escolar que o torna repugnante.

    Será a violência? Será a falta de respeito pelo professor? Será em última análise que a sociedade brasileira como um todo não vê a educação como uma ferramenta estratégica para a construção da cidadania, como Napoleão via há mais de 200 anos? Afinal, se ninguém dá importância à educação fora do ambiente escolar porque aqueles que atuam dentro dele dariam? Como agiriam diferente se os valores da sociedade na prática não estabelecem uma missão ao esforço de educar? Como teriam motivação para permanecer dentro da escola se ninguém vê sentido para aquela atividade?

    Uma prova de que o brasileiro no geral fala da boca para fora do valor da educação para o bom funcionamento da sociedade é o insucesso político de um homem claramente comprometido com tal princípio, Cristovam Buarque. É verdade que ele foi reitor da Universidade de Brasília, governador de Brasília, ministro da Educação e eleito duas vezes para o Senado Federal. No entanto, em 2006, quando foi candidato à Presidência da República, propondo a ênfase na educação como chave para construir um Brasil mais justo, teve apenas 2,4% dos votos dados. Conforme o trecho que abre este artigo, para Cristovam Buarque a educação de qualidade, desde a infância, é o mapa que norteará o indivíduo, permitindo-lhe fazer escolhas que farão a sociedade como um todo ser mais próspera, livre, justa e civilizada.

    Prezados leitores, seja como mapa pessoal, como propõe Cristovam Buarque, seja como instrumento para inculcar bom comportamento no indivíduo e criar uma sociedade ordeira, como queria Napoleão, a educação deveria ser sempre um dos meios mais estratégicos para conseguirmos atingir objetivos de longo prazo. Será que algum dia de fato teremos esse valor e o concretizaremos na prática? Ou será que continuaremos a falar da educação como exercício de retórica para nos sentirmos bem com nós mesmos e perante os outros? Esperemos que da próxima vez que um outro Cristovam Buarque apareça para disputar cargos no executivo sejamos mais receptivos a sua mensagem.

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Panelas no fogo ou intrigas corporativas?

Certamente, à época em que a mulher comprava e descascava ela mesma seus legumes, aprontava a carne e cozinhava o ragu durante várias horas, uma relação tenra e nutritiva poderia se desenvolver; as evoluções dos condicionamentos alimentares haviam levado ao esquecimento dessa sensação que, além disso, Huysmans asseverava com franqueza, era uma pífia compensação para a perda dos prazeres carnais. Ele mesmo, em sua própria vida, não tinha de jeito nenhum coabitado com uma dessas mulheres de “panela no fogo”, as únicas que podem, de acordo com Baudelaire, juntamente com as “garotas”, ser convenientes ao literato – observação ainda mais justa considerando que a filha pode perfeitamente, com o passar dos anos, se transformar em mulher “panela no fogo”, que é mesmo seu desejo secreto e sua tendência natural.

Trecho retirado do livro “Soumission” do escritor francês Michel Houellebecq (1956- )

 

Ela era só sentimento e nenhum intelecto, exceto pela sabedoria que a natureza dá à mulher para lidar com os homens. “Josefina”, ele dizia a ela, “você tem um grande coração e uma cabeça fraca.” Ele raramente deixava que ela falasse de política, e quando ela insistia, ele logo esquecia suas ideias. Mas ele lhe era grato pelo ardor sensual dos seus abraços, pela “doçura infalível do seu temperamento”, e pela modéstia e graça com as quais ela cumpria suas muitas funções como imperatriz.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre Marie-Josèphe Tascher de la Pagerie (1763-1814), primeira esposa de Napoleão Bonaparte (1769-1821) e imperatriz dos franceses de 1804 a 1809

O domínio das empresas ainda é masculino. As mulheres ainda estão na gerência, mas não na diretoria. Isso traz questões desde desigualdade salarial até assédio. Em alguns casos, elas não se sentem à vontade nesses ambientes e pedem demissão, mas também há a questão da sobrevivência…

Trecho retirado do artigo “Igualdade em marcha lenta – Um ano após a lei entrar em vigor, diferença salarial entre homens fica praticamente estagnada”, publicado no jornal O Globo em 24 de novembro

    Prezados leitores, há duas semanas falei sobre mulheres otárias, isto é, mulheres que se sacrificam, isto é que preferem sofrer a ver as pessoas sofrerem e que em assim fazendo, acabam tendo um impacto positivo sobre a sociedade, em detrimento de sua própria vida. Falei especificamente da nossa primeira imperatriz Leopoldina (1797-1826), que foi uma das artífices da Independência do Brasil e garantiu a continuação da dinastia, dando à luz o futuro D. Pedro II (1825-1891). Em contraponto a ela estava a amante de D. Pedro I (1798-1834), Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), que se tornou uma mulher rica por causa de seu relacionamento com o imperador, relacionamento este que, por ser escancarado, comprometeu em muito a credibilidade da incipiente monarquia brasileira. Nesta semana, falarei de Josephine, a primeira mulher de Napoleão, que fica num meio termo entre esses dois polos: foi esperta para sobreviver, mas não de maneira prejudicial a outros.

    Nascida na Martinica, Joséphine casa-se com o visconde de Beauharnais em 1779, que é guilhotinado em 1794. Ela escapa do mesmo destino por pouco, quando o regime do Terror acaba. O que uma viúva com dois filhos pequenos poderia fazer para sustentá-los? A crioula torna-se amante de Barras (1755-1829), um dos membros do Diretório que governa a França depois do Terror e Barras, cansado dela, a passa para as mãos de Napoleão, um general então em ascensão, com o qual ela se casa em 1796.

    Conforme mostra o trecho que abre este artigo, Joséphine usou como estratégia de sobrevivência agradar Napoleão, isto é satisfazê-lo sexualmente sem pretender dar palpites sobre assuntos de governo. Além das carícias, a martinicana encaixava-se no estereótipo que Napoleão tinha de uma mulher, um ser emotivo que tinha o cérebro imaturo de uma criança. Ela chorava, desmaiava e com seu jeito gentil e indolente conseguia tudo o que queria do mais despótico e voluntarioso dos homens: ele lhe dava uma pensão anual de 600.000 francos, mais 120.000 para suas obras de caridade, e apesar de espernear pagava todas as dívidas que a esposa fazia comprando joias e roupas.

    O desempenho do papel de fêmea doce e carinhosa que não se mete nos assuntos do universo masculino, eis o segredo de Joséphine para que em agradando Napoleão este satisfizesse suas necessidades e desejos. No entanto a crioula de olhos verdes tinha um sério defeito: seis anos mais velha que seu esposo, ela não podia mais engravidar e isso foi razão suficiente para que Napoleão a repudiasse para casar-se com Maria Luísa (1791-1847), a irmão mais velha de nossa imperatriz Leopoldina que em 1809 estava no florescer dos 18 anos e portanto, apta a ter filhos. E assim Joséphine foi posta de lado, sem que, no entanto, Napoleão deixasse de prover uma pensão a ela e lhe desse a propriedade do castelo de Malmaison.

    Mais de duzentos anos depois e esta mulher que adota como lema fazer de tudo para agradar o homem está no imaginário do escritor Michel Houellebecq, que a intitula mulher da “panela no fogo”. Conforme o trecho que abre este artigo, é a mulher perfeita para um escritor: ela faz comida, proporciona prazeres sensoriais a um homem quando os prazeres carnais já não estão tão disponíveis devido à idade, cria um ambiente doméstico propício a que o literato possa dar expressão integral a seu intelecto. Será que esse ideal de feminilidade está tão introjetado na mente masculina que é difícil aceitar qualquer outro papel das mulheres que fuja à submissão?

    O artigo citado na abertura deste artigo mostra que apesar da lei vigente desde novembro de 2023, que prevê a igualdade salarial de gênero no Brasil, há uma diferença de 19% entre o salário de homens e mulheres, número este estagnado em relação àquele de 2023, de 20%. Há dois problemas: em primeiro lugar, mesmo quando mulheres e homens exercem a mesma função, eles ganham mais do que elas; em segundo lugar, segundo a empresária Ana Fontes, presidente da Rede Mulher Empreendedora, as mulheres raramente ocupam os cargos mais altos, chegando quase sempre no máximo a gerentes. Por que será que as mulheres não se sentem à vontade no ambiente de trabalho? Será porque elas têm esse hábito de agradar, ser doce, evitar conflitos e isso impede que elas saibam agir no mundo da competição corporativa? Ou será que é porque os homens impõem esse modo submisso de ser às mulheres como modo de eliminar a concorrência e levar a mulher a continuar a querer agradar os homens?

    Prezadas leitoras, qual será a melhor estratégia para nos conduzirmos no mundo? Ser como Joséphine e ser aquilo que o homem espera de nós para que ele nos sustente ou sermos independentes e desagradáveis para defender nossos interesses, na disputa de recursos com os homens? Submissão ou conflito aberto? A cada uma a liberdade de decidir de acordo com suas próprias inclinações, levando em conta suas chances de sobreviver em um regime ou outro, de acordo com suas características físicas, morais e intelectuais. Para as que queiram, panelas no fogo, para as outras as intrigas do mundo corporativo. Seja agradando como Joséphine, seja disputando, como as mulheres entrevistadas pelo jornal O Globo que buscam justiça no mercado de trabalho, as mulheres sempre estarão em relação dialética com o sexo masculino. Vive la diffèrence!

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Humildes expectativas

A totalidade dos animais, a maioria esmagadora dos homens vive sem jamais experimentar a mínima necessidade de justificação.  Eles vivem porque vivem e isso é tudo, é assim que eles pensam; depois acho que eles morrem porque morrem, e que a morte, a seus olhos termina a análise. […] Eu obviamente não esperava ter um final de vida feliz, não havia nenhuma razão para que eu fosse poupado do luto, da doença e do sofrimento; mas eu podia até então esperar sair do mundo sem violência exagerada.

Trecho retirado do livro “Soumission” do escritor francês Michel Houellebecq (1956- )

No domingo, o Presidente Joe Biden autorizou o uso pela Ucrânia de mísseis de longo alcance fornecidos pelos Estados Unidos para ataques à Rússia.  A súbita reversão de política representa uma escalada dramática na guerra que exigira uma resposta firme de Moscou. O Presidente Putin alertou repetidas vezes que o lançamento de mísseis contra alvos localizados no território russo iria detonar duros ataques de retaliação não somente em locais na Ucrânia, mas também nos países diretamente envolvidos nos ataques, a saber a OTAN e os Estados Unidos.

Trecho retirado do artigo “ Going Out with a Bang”, escrito por Mike Whitney

 

    Prezados leitores, permitam-me apresentá-los a Steven, professor de literatura da Universidade Paris IV, solteiro, residente na capital da França e personagem do livro “Soumission”, de Michel Houellebecq. Como professor universitário, Steven tem dinheiro suficiente para ter um carro e pedir comida japonesa, indiana, árabe e qualquer outra para ser entregue em sua residência. Ele vive em seu mundinho feito de encontros com colegas da faculdade e ex-namoradas, e uma fonte de diversão para ele é assistir à TV no domingo em que ocorrem eleições presidenciais para ver os apresentadores divulgarem o resultado da disputa.

    Conforme o trecho que abre este artigo, narrado por Steven na primeira pessoa, ele não tem grandes expectativas na vida. Como habitante do mundo ocidental pós-cristão em pleno século XXI, ele não se vê como um ser a quem uma divindade transcendente tenha dado um papel especial no grande esquema das coisas como único ser vivente dotado de racionalidade ou de alma ou de inteligência ou qualquer atributo que nos distinga dos animais. Para que justificar a vida do homem? A maior parte das pessoas não faz isso e vivem tão normalmente como aqueles poucos que tentam dar um sentido à existência neste mundo. Apesar de ter escrito uma tese de doutorado, Steven não dá grande importância a essa realização intelectual, além do fato de lhe ter dado a qualificação necessária para um cargo de professor de universidade que lhe permite pagar as contas e viver confortavelmente.

    Apesar de enxergar seu papel na sociedade como não tendo nada de especialmente relevante, Steven ainda conserva uma humilde expectativa: quer viver de maneira segura, isto é, livre da violência. Claro que ele espera enterrar entes queridos, ficar velho e doente como todo mundo e ele não se considerará particularmente azarado se tudo isso ocorrer. Por outro lado, vivendo em um país europeu do Primeiro Mundo, Steven espera passar seus dias sem ser atacado fisicamente. A rotina parisiense seguida por ele confirma essa fé na sua integridade individual até o momento em que ocorrem eleições presidenciais e o segundo turno é disputado por um candidato de extrema-direita do Rassemblement Nacional e pelo candidato da Fraternidade Muçulmana. É então que eclode a guerra civil e ocorre a reversão das suas expectativas de paz e segurança.

    Houellebecq, como fino observador do homem ocidental do século XXI, vislumbrou em 2015, ano em que Soumission foi publicado, um cenário de ameaça de violência que parece estar se desenhando agora em 2024. Conforme o trecho que abre este artigo, o Presidente Biden, em fim de mandato, autorizou que a Ucrânia, invadida pela Rússia em fevereiro de 2022, utilize mísseis americanos de longo alcance para atingir alvos em território russo. E tão logo dada a autorização, a Ucrânia lançou seis mísseis contra a Rússia no dia 19 de novembro, sendo que cinco foram interceptados. Na mesma data, o presidente russo Vladimir Putin publicou um decreto atualizando a doutrina nuclear da Rússia para ampliar os casos em que o país se dá o direito de utilizar armas nucleares, incluindo a hipótese de qualquer país lançar mísseis balísticos contra a Federação Russa e a hipótese de um país não nuclear cometer agressão contra a Federação Rússia mediante a ajuda de um país nuclear.

    Considerando que o Presidente eleito Donald Trump havia prometido durante a campanha acabar com a guerra, essa liberação do lançamento de mísseis americanos de longo alcance a partir da Ucrânia parece ter como objetivo intensificar os combates e tornar a busca de uma solução negociada mais difícil para o futuro mandatário americano. Resta saber que tipo de retaliação nuclear a Rússia fará contra os ataques de 19 de novembro. Será que vão deixar para lá, considerando que a maioria dos mísseis foi neutralizada e que o novo governo americano toma posse em 20 de janeiro? Ou será que vão imediatamente seguir as diretrizes colocadas pelo novo decreto de Putin? Será que alvos na Europa e nos Estados Unidos já estão sendo escolhidos?

    Prezados leitores, será que este século XXI, em que o ser humano não acredita mais ser o ápice da criação, será o século em que mesmo nossas humildes expectativas de poder viver na segurança da nossa mediocridade não poderão ser satisfeitas? Será que as eleições presidenciais nos Estados Unidos abriram uma caixa de Pandora de escalada de violência como as eleições presidenciais na França abriram no livro de Houellebecq? Aguardemos os desdobramentos e enquanto isso, não deixemos de esperar humildemente que possamos tocar nossa vidinha como Steven toca na Paris retratada em Soumission.

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As otárias

Com mais de 60 anos, um pouco depois de se aposentar, ela havia aceitado se ocupar de novo de uma criança – do filho do seu filho. A este também nunca faltou nada – nem roupas limpas, nem um bom almoço no domingo, nem amor. Tudo isso, na vida dela, ela havia feito. Uma análise pouco detalhada da humanidade deve necessariamente levar em conta esse tipo de fenômeno. Tais seres humanos historicamente existiram. Seres humanos que trabalharam a vida toda, duramente, unicamente por devoção e por amor: que davam literalmente sua vida aos outros em um espírito de devoção e de amor: que não davam de maneira nenhuma a impressão de se sacrificarem; que na realidade não vislumbravam outra maneira de viver que de doar sua vida aos outros, em um espírito de devoção e de amor. Na prática, esses seres humanos eram geralmente mulheres.

Trecho retirado do livro “Les particules élémentaires” do escritor francês Michel Houellebecq (1956- ), descrevendo a avó do personagem principal do romance, Michel

Se não poderia haver um policial em cada esquina, poderia haver deuses, mais fantásticos ainda por não serem vistos, podendo ser multiplicados livremente e de acordo com a necessidade em seres místicos, exortativos ou ameaçadores, percorrendo todos os graus da divindade e do poder, desde o ermitão do deserto até o comandante supremo, preservador e destruidor das estrelas e dos homens. Que sublime concepção! – que organização comparável para sua disseminação e operação! – que apoio sem preço a professores, maridos, pais e reis!

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as ideias que Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França de 1804 a 1814, tinha sobre a religião como fundação da ordem moral

Se, por um lado, o fato de amar D. Pedro fazia-a aceitar calada tudo o que viesse dele, por outro ela tinha uma noção maior do que o marido do seu dever como imperatriz e estaria pronta a aguentar as humilhações para não desprestigiar a coroa perante o povo. Não lhe restavam alternativas a não ser fingir que nada estava ocorrendo. […] Porém o excesso de submissão a que se impusera, pois não lhe era natural na Áustria aceitar as coisas de que não gostava sem lutar, cobraria o seu preço, abalando-a psicologicamente no futuro.

Trecho do livro “D. Leopoldina, a história não contada: a mulher que arquitetou a independência do Brasil” do historiador Paulo Rezzutti (1972-

    Prezados leitores, imaginem a cena, passada em janeiro de 1826, nas águas do Oceano Atlântico, rumo a Salvador, Bahia. D. Pedro I (1798-1834), Imperador do Brasil, anda pelo convés do navio acompanhado de sua amante, Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), a Marquesa de Santos e de sua filha, Maria da Glória (1819-1853), a futura rainha Maria II de Portugal. Trancada na cabine está a Imperatriz Leopoldina (1797-1826), pouco inclinada a expor-se aos tripulantes e aos passageiros do navio considerando que o marido não fazia a mínima questão de esconder seu relacionamento amoroso com a “Titília”.  Chegando em Salvador, Pedro iria a todos os eventos públicos acompanhado da mulher e da amante e com esta reza a lenda que teria tomado banho nu no Morro de São Paulo. A seu pai, o imperador Francisco I (1768-1835), Leopoldina confessaria que a viagem fora “extremamente desagradável em todos os sentidos”.

    Pudera, ter que se apresentar à vista dos súditos ao lado da Marquesa de Santos e fingir que estava tudo bem exigia um autocontrole muito grande, mas Leopoldina sempre esteve à altura da tarefa, pois sabia que coisas muito mais importantes do que suas vexações pessoais estavam em jogo, conforme o trecho que abre este artigo. Era preciso manter a imagem da Coroa perante o povo brasileiro, de modo que a monarquia, um regime recém-implantado nos trópicos, pudesse fincar raízes e consolidar-se. Em sua biografia da primeira imperatriz do Brasil, Paulo Rezzutti, que credita a ela a ideia da independência do país, ressalta essa capacidade da augusta Maria Leopoldina Carolina Josefa de Habsburgo-Lorena de agir sempre em prol dos interesses do Estado, de mostrar-se sempre altiva e digna, apesar de por dentro estar dilacerada pela tristeza de saber que seu esposo não gostava dela.

    Leopoldina cumpriu suas obrigações nos mínimos detalhes: apesar de viver isolada e triste por não gozar da companhia de Pedro, participava de cerimônias públicas mostrando-se sorridente para alimentar o espetáculo da monarquia, praticava a caridade ao ponto de endividar-se e quando já estava agonizando em seu leito de morte, vítima de uma erisipela para alguns, ou de febre tifoide, de acordo com o diagnóstico agora mais atualizado, chamou os funcionários do Palácio para agradecer-lhes os serviços e perdoá-la por algo que pudesse ter feito a eles. Enfim, fez o que ela via que era melhor para que a monarquia sobrevivesse no Brasil e para que seus descendentes pudessem governar o país por anos a fio.

    Essa abnegação, essa dedicação aos outros como elemento que dá sentido à vida e que é em sua maior parte uma característica feminina, foi notada por um escritor contemporâneo em pleno século XXI, Michel Houellebecq, em seu livro de 1998, “Les particules élémentaires”, cujo trecho é citado na abertura deste artigo. A avó de Michel o criou depois de uma vida de trabalho, quando já estava aposentada e, portanto, tinha um pouco de tempo para descansar. Realizou tal tarefa sem pedir nada em troca, sem esperar nada em troca, apenas porque sentia ser essa sua obrigação geral. Nesse sentido, Michel Houellebecq contrapõe essas mulheres que se sacrificavam pela família, ou pela sociedade em geral, às mulheres produto da revolução cultural da década de 1960. Mulheres para as quais ser mãe era simplesmente ter uma experiência da maternidade, como fazer sexo era também uma experiência, nada além disso, daí que não passava pela cabeça de uma mulher liberada limitar seus desejos pessoais, sua aventura de vida pelo fardo de cuidar de filhos. O personagem Michel do livro, um biólogo, é filho de uma dessas mulheres, que o abandona porque quer seguir em frente, desimpedida, livre para amar, para fazer suas próprias escolhas sem ter que levar em conta as necessidades dos outros.

    Se a mãe de Michel é fruto do ambiente em que “é proibido proibir”, como descreve Michel Houellebecq, sua avó é fruto de qual ambiente? Ora, daquele mesmo ambiente que inculcou em Leopoldina o senso do dever acima dos sentimentos pessoais, o ambiente da religião. O escritor francês, ao mostrar em suas obras esse Ocidente pós-cristão, povoado de seres individualistas e vazios espiritualmente, revela pelo contraponto a verdade que já havia sido constatada por Napoleão Bonaparte no século XIX e que o fez assinar uma Concordata com o Papa em 1801, depois de mais de dez anos em que a Revolução Francesa havia espoliado a Igreja Católica de seus bens, banido a educação religiosa e tornado o Estado laico.

    Conforme o trecho que abre este artigo, é forçoso reconhecer que a fundação mais sólida que pode haver para uma ordem social é a religião. A religião é uma arma poderosa para controlar o comportamento das pessoas pois ela cria uma narrativa que dá sentido à vida, principalmente para aqueles que saem perdendo e que, portanto, teriam mais razões para revoltarem-se: se uma mulher é traída pelo marido publicamente, humilhada e negligenciada, basta acreditar na ideia de que uma justiça divina operará no futuro. Os que sofreram neste mundo serão recompensados no outro lado, de forma que aquela que só cumpriu obrigações e acabou morrendo por estar abalada física e psicologicamente terá a eternidade para desfrutar do Paraíso, o lugar dos virtuosos.

    Uma ferramenta como essa, que ao mesmo tempo enche de medo os que se atrevem a sair da minha pelo medo da punição do ser onipotente e enche de esperança os que não levaram nada em troca por seus desvelos ao longo da vida não pode ser deixada de lado por nenhum governante que preze pela estabilidade. E foi assim que Napoleão, apesar de seu ceticismo pessoal sobre a existência de Deus, fez questão de assinar uma Concordata com o Papa Pio VII em 16 de julho de 1801.

    Prezados leitores, a Marquesa de Santos deixou a corte definitivamente em 1829, quando D. Pedro precisava livrar-se dela para poder casar-se novamente. Voltou a São Paulo com burros de dinheiro, literalmente, que lhe permitiram viver confortavelmente até os 70 anos de idade e ainda casar-se de novo e ter mais filhos com Rafael Tobias de Aguiar (1794-1857), o patrono da ROTA. Entre os bem-pensantes, ela é vista como uma mulher que ao desafiar as convenções sociais empoderou-se, tomando as rédeas do seu destino. Leopoldina morreu aos 29 anos de idade, sem receber nada em troca do que ela fez pela Monarquia brasileira. Sua presença era tão importante para dar credibilidade ao regime que, quando D. Pedro viu-se sozinho, dando vazão a suas paixões sem o contraponto da calma, do conhecimento e da sabedoria da sua esposa, ele só meteu os pés pelas mãos e teve que abdicar em 1831. A humilde avó do personagem Michel morre em um hospital, depois de ter trabalhado a vida toda em troca de quase nada. Uma foi esperta, as outras foram otárias, porque só perderam. Mas o que seria do mundo se não houvesse um pequeno grupo de otárias, geralmente mulheres conscienciosas orientadas por princípios religiosos? O que teria sido de Michel se não tivesse tido sua avó como mãe e o que teria sido do Brasil se Leopoldina não tivesse estado ao lado de D. Pedro, aconselhando-o a pegar o fruto que estava maduro no momento crucial da formação do país como nação independente? As otárias sempre perdem, mas sem elas as espertas não poderiam brilhar, porque não haveria ordem no mundo contra a qual insurgir-se. Viva as otárias!

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