Como a maior parte dos homens de negócios, ele não tinha respeito nenhum sobre pessoas que escreviam sobre economia ou sobre o governo; ele os considerava frasistas que tinham pouco do senso corretivo da realidade, ou da natureza e dos limites do homem. Ele tinha certeza de saber mais do que eles o que queria a população francesa e o que ela deveria ter: eficiência e integridade no governo, moderação dos impostos, livre iniciativa nos negócios, regularidade do provisionamento, segurança de emprego remunerado na indústria, propriedade campesina e um lugar de destaque para a França no concerto das nações; se isso fosse dado a eles as pessoas não insistiriam em determinar as medidas ou preencher cargos pela contagem de narizes depois de uma disputa verbal.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as ideias que Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França de 1804 a 1814, tinha sobre a necessidade da censura.
Ele havia lido e aceito os princípios de governo de Maquiavel, sem sentir um amor comparável ao do filósofo florentino por seu país. A França não era realmente sua pátria, era apenas seu trampolim. A religião não era para ele a humilde aceitação de um ser supremo, mas um instrumento para a conquista do poder. Homens e mulheres não eram seres dotados de alma, mas instrumentos. Ele não era sanguinário, mas sempre indiferente à carnificina da vitória. Ele tinha a brutalidade de um condottiere, nunca os modos de um cavalheiro. E esse indivíduo vulgar e coroado arrogava-se juiz e censor do pensamento e de todas as manifestações orais, da imprensa, que era o último refúgio da liberdade, e dos salões, que eram cidadelas do livre pensamento da França.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as opiniões da escritora francesa Madame de Stael (1766-1817) sobre a personalidade de Napoleão Bonaparte (1769-1821).
Prezados leitores, permitam-me relatar um episódio ocorrido comigo há vinte dias. Estava caminhando na rua, à noite, escutando música no meu aparelho celular quando de repente um ciclista veio, tomou-o e foi embora. Seguiram-se os passos esperados de uma vítima: correr para casa para bloquear o aparelho, ligar para o SAC do banco para bloquear senhas. Sabendo da localização do celular, desci à rua, parei uma viatura de polícia e disse a eles onde ele estava. Disseram que iriam passar por lá. Não sei se passaram.
O engraçado é a reação quase unânime das pessoas quando ouvem sua história: é a de, com mais ou menos delicadeza, alertar sobre a imprudência de usar o celular na rua. Ou seja, a premissa básica em nossa sociedade é que o erro é seu se você ignora o fato de que um celular nas orelhas de um indivíduo na calçada será alvo de furto porque é assim que são as coisas nas grandes cidades brasileiras. O celular é um dispositivo concebido para facilitar a vida das pessoas, inclusive como instrumento de trabalho, mas na prática devido à violência ele deve ser usado dentro de casa ou do escritório, como o bom e velho telefone fixo. Por quê? Ora, porque há gangues de ciclistas e motociclistas atuando impunemente, há redes de receptadores de mercadorias roubadas ou furtadas e há um poder governamental que considera isso banal, a ponto de não dar prioridade ao combate a essa teia de criminalidade.
Desculpem meu solipsismo. Certo, não sofri violência física, não levei um tiro na cabeça, não fui sequestrada nem estuprada. A subtração de celulares, perto dos outros problemas de segurança que existem em nosso país, é um assunto desimportante. E no entanto, a certeza de que se eu usar novamente o aparelho na rua correrei o mesmo risco me encheu de desânimo e raiva. Fiquei lembrando de que na campanha para a prefeitura, alguns candidatos falaram da questão dos celulares e propuseram medidas.
O fato é que não há a mínima possibilidade de eu, como cidadã, exigir que alguma providência seja tomada. Posso votar nas próximas eleições no candidato da oposição que aborde o problema. Mas se ele ganhar e não fizer nada? Espero quatro anos para votar em outro candidato e vou alternando as escolhas até eleger um candidato que cumpra promessas? E se nenhum dos eleitos cumpre promessa nenhuma, o que fazer? Conformar-se com a mediocridade e incompetência e seguir em frente, lembrando sempre de jamais tirar o celular da bolsa estando na rua? Quero segurança e não tenho, mas tenho o direito de votar a cada dois anos no Brasil para cargos no Executivo e no Legislativo. De que me serve poder votar? É pecado priorizar a segurança em detrimento da liberdade?
Napoleão Bonaparte tinha uma resposta definitiva a essa questão, conforme o trecho que abre este artigo. A maioria das pessoas quer ter emprego, quer que o governo seja eficiente e cumpra suas obrigações, quer poder ser proprietário, quer pagar a menor quantidade de impostos possível. Se as pessoas têm acesso a isso, elas não farão questão de ter o direito de escolher representantes e de ter sua voz ouvida em algum parlamento. Quem faz questão de discutir ideias são intelectuais que constroem castelos no ar em termos de sistemas econômicos, sociais e políticos sem levarem em conta a natureza humana, mesmo porque eles normalmente não têm experiência sobre as durezas da vida.
Daí por que Napoleão se achava no direito de impor censura e concentrar o poder em suas mãos. Se ele sabia como administrar porque tinha conhecimento e experiência por que dar liberdade de expressão para que intelectuais usassem a imprensa como instrumento de crítica ao governo? Por que permitir críticas que desestabilizassem a ordem dominante e trouxessem o risco do caos que havia reinado durante a Revolução Francesa (1789-1799)? Melhor seria censurar para evitar problemas e dar plenas condições ao Imperador realizar sua obra prima, oferecendo paz, segurança e prosperidade aos franceses.
Não era assim que pensava Madame de Stael, nascida Germaine Necker, filha de Jacques Necker (1732-1804), antigo Ministro das Finanças de Luís XVI. Entre a segurança e a liberdade, a escritora, herdeira da fortuna do seu pai banqueiro, apostava na liberdade de pensamento, mesmo porque Napoleão não era um líder perfeito, ao contrário, ele tinha vários defeitos. Conforme o trecho que abre este artigo, para Madame de Stael ele não seguia nenhum princípio moral, fazendo uso de todos os meios para realizar seus sonhos de poder e glória, inclusive à custa de milhares de vidas. O acordo com a Igreja Católica nada mais fora do que um estratagema para controlar o comportamento das pessoas e tornar o governo mais fácil, pois Napoleão era certamente um agnóstico. Diante de um homem vaidoso que tinha uma autoconfiança muito grande e não sabia quando parar, era preciso ter a liberdade de criticá-lo para que seu comportamento pudesse ser controlado e os franceses não fossem sacrificados no altar das suas conquistas militares.
Alguns dirão que quando se tem a barriga cheia, e a certeza de que ela permanecerá assim por muito tempo, a liberdade de pensamento e de expressão tem muito mais importância do que para um camponês ou um trabalhador cuja vida era muito mais incerta e perigosa. Napoleão era o homem da segurança material e espiritual, mas ao mesmo tempo era um tirano opressor que não aceitava ser contrariado porque se achava mais inteligente e sábio do que todos. Enquanto seu governo proporcionasse meios de subsistência à maioria silenciosa, ela não se preocuparia com firulas libertárias e o valor da segurança era muito maior que o da liberdade. Só se a segurança fosse ameaçada por derrotas militares é que essa maioria iria prestar atenção à liberdade como direito de livrar-se de um governante que se transformara em um estorvo.
Prezados leitores, está aí um osso duro de doer em termos de escolha moral. Gozo da liberdade de escrever e publicar meus humildes artigos na internet e ao mesmo tempo não gozo do direito de poder utilizar um celular na rua. O ideal seria que o problema das gangues de ciclistas fosse resolvido por um dos candidatos eleitos democraticamente. Mas e se não for? Será que se o Estado brasileiro continuar a ser incapaz de realizar suas funções mais básicas, proporcionando segurança em seu sentido mais amplo, nossas liberdades democráticas continuarão em pé? Será que, cheios de medo, angústia e ansiedade não acabaremos optando por alguém que nos pareça providente? Aguardemos e esperemos que nossa sociedade permita-nos fazer a síntese entre segurança e liberdade.