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Que Pena

Posted by on 03/11/2015

[…] o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido. […]O fim, pois, é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo.

Trecho retirado do livro “Dos Delitos e das Penas” de Cesare Beccaria, jurista italiano (1738-1794)

Infelizmente, os presídios no Brasil ainda são medievais. E as condições dentro dos presídios brasileiros ainda precisam ser muito melhoradas. Entre passar anos num presídio do Brasil e perder a vida, talvez eu preferisse perder a vida, porque não há nada mais degradante para um ser humano do que ser violado em seus direitos humanos.

Trecho de palestra proferida pelo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em 13 de novembro de 2012 ao Grupo de Líderes Empresariais

    Prezados leitores,querem saber como é o cotidiano de uma prisão em um país do primeiro mundo? Assistam à série Unité 9, sobre um presídio feminino em Montreal, na província de Quebec. Dessa forma, na exata medida em que a ficção retrata a realidade, saberão a diferença de tratamento dos condenados entre o Canadá, país com renda per capita de 44.800 dólares americanos em 2014, e o Brasil, cujo PIB por pessoa era de 16.100 dólares americanos em 2014. É simplesmente hilário para nós brasileiros percebermos a discrepância.

    Hilário porque para nossos padrões de masmorras medievais a que aludiu o Ministro da Justiça há quase três anos a Unité 9 parece uma colônia de férias do SESC. As presas têm um quarto individual, apesar de o banheiro ser coletivo. O coletivo ali significa simplesmente que ele é compartilhado por umas sete presas. Esse grupo de companheiras de infortúnio dividem sala de estar, cozinha e telefone de onde podem fazer chamadas a qualquer momento. Durante o dia têm direito a frequentar a biblioteca, a assistir a aulas, a costurar e a praticar esportes no amplo gramado, onde a inspetora chefe organiza partidas de frisbee. Há assistência psicológica e médica 24 horas por dia e uma das presas lê o regulamento para verificar se tem direito a pleitear cirurgia de reconstituição das duas mamas retiradas por causa de um câncer. Essa assistência multidisciplinar inclui um tutor que acompanha o período de internação da condenada, observando sua evolução, o que significa observar a que passos ela está caminhando rumo à reintegração social. A reinserção do indivíduo no seio da sociedade que momentaneamente o expulsou para que ele pudesse ser reeducado é o ideal perseguido por toda prisão nos países ocidentais que adotaram a filosofia iluminista expressa em termos de Direito Penal no livro de Cesare Beccaria, autor da ideia de que penas cruéis e degradantes são estúpidas e inúteis.

    A busca contínua da melhora do preso se faz presente nos mínimos detalhes. Cada guarda deve dar sua opinião ao diretor do estabelecimento sobre como a presa está se comportando, para que o bom comportamento seja recompensado. No episódio da semana passada há um exemplo da prática dessa política de reabilitação. Uma mulher, assassina do pai que abusava sexualmente da neta, filha dela, tem direito a casar dentro da prisão: o Estado lhe fornece um belo vestido de noiva, feito sob encomenda e os parentes da noiva podem comparecer. Como lua de mel ela tem direito a passar uns dias na unidade familiar com seu príncipe encantado, uma casa em que podem desfrutar de toda privacidade. O diretor aprovou o casamento pois considerou que isso facilitaria a transição da parricida rumo à vida pós-prisão.

    Claro que nem tudo são flores, há corrupção das guardas, há tráfico de drogas, as presas sofrem de uma angústia permanente por estarem sendo vigiadas, por estarem longe dos filhos, por se arrependerem da bobagem que fizeram para estar ali. Mas percebem o porquê de uma brasileira como eu assistir a tudo embasbacada? Não importa aqui discutir a verossimilhança de o roteirista da série fazer uma condenada casar-se com um homem sensível e bonito que disse à sua esposa que nunca a trairá, apesar de eles não poderem fazer sexo frequentemente. Para mim esse moçoilo compreensivo foi particularmente difícil de engolir como real, sabendo eu que no estado de São Paulo, de acordo com a Fundação de Amparo ao Preso, 36% das mulheres não recebem visitas, ao passo que 29% dos homens não recebem visitas, ou seja as mulheres são mais rapidamente descartadas por seus companheiros, namorados e maridos, pelo menos em nosso Brasil lindo e trigueiro.

    Independentemente de quão os homens canadenses possam de fato ser mais amorosos do que os homens brasileiros, o que importa é que em linhas gerais há uma certa conduta observada em um país como o Canadá, para o qual um preso não deve ser um objeto de vingança, mas de políticas públicas. Pode até ser que os índices de reincidência das pessoas que saem das prisões de Quebec não sejam lá muito diferentes dos verificados aqui nos trópicos, mas o fato é que o cotidiano das internas mostra que são cidadãs vigiadas, revistadas, repreendidas, mas com certas garantias dadas a todos os habitantes da tundra canadense, em que a expectativa de vida da população é de 82 anos (73 anos no Brasil) e em que a mortalidade infantil é de 4,65 bebês em cada mil nascidos vivos (18,6 no Brasil).

    As perguntas que surgem agora são muitas: será que a diferença entre colônia de férias do SESC canadense e a masmorra medieval denunciada por José Eduardo Cardozo deve-se simplesmente à diferença de renda e das condições sociais das respectivas populações? Ou será que a sociedade brasileira tem uma característica perversa de não aceitar que assassinos, pedófilos, ladrões e corruptos continuam sendo espécimes do gênero humano? Será que nossa mentalidade ainda não absorveu as luzes da Razão e ainda não percebeu que garantir direitos aos presos é garantir direitos a todos? Ou será que nosso desprezo pelos delinquentes, nossa raiva em relação a eles, nosso prazer em vê-los mofando na cadeia é uma justa reação à violência que perpetraram, ao dinheiro que roubaram? Será que devemos nos regozijar pela justiça sendo feita quando o STJ nega habeas corpus a Marcelo Odebrecht ou estamos apenas exercitando o prazer da retribuição contra os ricos? Até que ponto a sanha de vingança da população influencia a decisão dos juízes de ordenarem e manterem prisão preventiva? Até que ponto a “conveniência da instrução criminal” estipulada no artigo 312 do Código de Processo Penal é uma desculpa para saciar a sede de sangue dos brasileiros fartos com a corrupção?

    Prezados leitores, as respostas a essas perguntas cada um dá de acordo com suas opiniões filosóficas e políticas. Uma coisa é certa para mim. É uma pena que os brasileiros não desfrutem das penas dos canadenses.

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