O semeador e o ladrilhador

A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua atividade colonizadora. Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até o fim. Raros os estabelecimentos fundados por eles no Brasil que não tenham mudado uma, duas ou mais vezes de sítio, e a presença da clássica vila velha ao lado de certos centros urbanos de origem colonial é persistente testemunho dessa atitude tateante e perdulária.

Trecho retirado do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982)

Todos sabemos o que irá acontecer. Quando todo mundo estiver no estádio para a cerimônia de abertura haverá uma troca intensa de tiros em campo. Todos vão aplaudir, pensando ser um espetáculo cuidadosamente coreografado, mas será um tiroteio verdadeiro. Porque é o Rio. […] a elite global esperava que o Brasil, um país infestado de criminosos e corruptos, cuja economia está atrelada a mercados instáveis como o do petróleo e o de minérios, fizesse um bom trabalho ao sediar os Jogos Olímpicos. Tenho certeza que as festas no Rio serão boas, mas organizar as Olimpíadas exige mais do que champagne, roupas chamativas e sensualidade à flor da pele.

Trecho retirado do artigo “As Olimpíadas no Rio: outra confusão constrangedora dos globalistas incompetentes” de Milo Yannopoulos, publicado no site breibart.com

    Prezados leitores, um dos capítulos de um dos clássicos do ensaísmo brasileiro, Raízes do Brasil, intitula-se O Semeador e o Ladrilhador. Para Sérgio Buarque de Holanda, os colonizadores portugueses foram semeadores nas suas posses no Novo Mundo porque agiram por tentativa e erro, de maneira aventureira, esperando um golpe de sorte que lhes permitisse adquirir fortuna. A “diligência pertinaz, parcimônia, exatidão, pontualidade, solidariedade social” não eram virtudes caras aos lusitanos, que não vieram aqui para dedicar-se ao trabalho árduo e sistemático, que dá frutos modestos, mas seguros. O ladrilhador que vai vendo sua obra completar-se gradualmente pelo esforço diário nunca foi o ideal dos nossos descobridores, e para o historiador paulista nós brasileiros herdamos esse traço de caráter.

    E, no entanto, por mais que os portugueses não tenham realizado uma colonização propriamente dita no Brasil, mas uma “feitorização”, eles acabaram fundando um país, que bem ou mal organizou-se social, politica e economicamente. Sim, somos produtos de avacalhação e somos avacalhados, mas quem há de negar que temos uma civilização brasileira, celebrada pela primeira vez nos meios acadêmicos por Gilberto Freyre que a viu nascer nas relações entre a casa grande e a senzala estabelecidas no século XVI?

    Recorro a esses dois luminares do pensamento tupiniquim para rebater as críticas dos politicamente incorretos como o senhor Milo Yannopoulos, que denunciam o absurdo de o Comitê Olímpico Internacional ter dado a um país de Terceiro Mundo a incumbência de organizar a maior festa do esporte mundial. Os politicamente incorretos não celebram a diversidade, o multiculturalismo e para eles o sul do Equador não trouxe nenhuma contribuição significativa à humanidade porque seus habitantes autóctones não têm a capacidade intelectual para fazê-lo. Milo Yannopoulos corrobora seus argumentos contra a Rio 2016 com fatos inquestionáveis: nossa atual crise política, que se desenrola aos nossos olhos cansados sem que consigamos colocar os pés no fundo do poço; nossa crise econômica, causada pela dependência de commodities que atualmente estão com preços baixos no mercado internacional; nosso problema de saúde pública com o vírus zika, que aportou na terra do pau-brasil trazido pelos turistas em 2014 e proliferou com o calor e a sujeira que aqui encontrou; nosso problema ambiental, que para Yannopoulos é o mais grave em relação aos Jogos Olímpicos, que é o fato de o local em que as competições a vela serão realizadas ser um depósito de esgoto, a Baía de Guanabara, canta em prosa e verso; nosso problema da violência urbana, que o autor do artigo não corrobora com números, mas apenas cita (eu poderia ajudá-lo dizendo que 10% dos homicídios no mundo ocorreram no Brasil); finalmente nossa crise fiscal, exemplificada pelo fato de o Rio de Janeiro ter decretado estado de emergência por falta de dinheiro para cobrir despesas públicas básicas com saúde, educação e mobilidade urbana (para corroborar o alarmismo de Milo eu cito aqui o fato de que a previsão de receita para o Estado do Rio em 2016 é de 49 bilhões de reais, enquanto que sua dívida é de 102 bilhões, e dois calotes acabam de ser dados, no valor de 14 milhões, um na Agência de Fomento Francesa e outro no Banco Interamericano de Desenvolvimento).

    Contra fatos, não há argumentos. Como convencer pessoas como Milo Yannopoulos a ter uma visão mais benigna sobre a possibilidade de realização de um evento global no lado de baixo do Equador? Faço uso das constatações históricas, antropológicas e sociológicas de Sérgio Buarque de Holanda e de Gilberto Freyre para responder a Yannopoulos, que obviamente nunca lerá minha resposta. Sim, somos um país “governado por palhaços” que fala uma língua desconhecida, mas a rota por nós escolhida de “semeadores” que planejam pouco, deixam tudo para a última hora correndo o risco de tudo dar errado poderá oferecer aos bilhões de espectadores que assistirão no conforto do lar às competições um espetáculo único.

    É verdade que provavelmente a conexão wi-fi não ficará disponível de maneira ininterrupta aos jornalistas que cobrirão o evento, é verdade que o deslocamento dos atletas será demorado e motivo de irritação e angústia para quem precisa ficar 100% focado em vencer, é verdade que aqueles que se aventurarem a conhecer a Cidade Maravilhosa poderão sofrer assalto, fruto do descuido. Mas falar na possibilidade de tiroteio no Estádio Olímpico é não conhecer a verdadeira alma do Brasil: cordial, contemporizadora, fruto da entente cordial entre a Casa Grande e a Senzala, tal como descrita pelo sociólogo pernambucano, que relaciona em seu livro as variadas maneiras em que os dois espaços trocavam experiências, saberes e dengos.

    Senhor Milo Yannopoulos, os traficantes de drogas não vão descer o morro e barbarizar o asfalto assassinando turistas. Provavelmente a cúpula do “movimento” já entendeu-se expressa ou tacitamente com as autoridades constituídas do Rio de Janeiro, num toma lá dá cá que deve garantir a paz durante os jogos. Afinal, Nicolas Labre Pereira de Jesus, o Fat Family não foi resgatado do Hospital Souza Aguiar pelos seus fiéis companheiros nas barbas da polícia? Como não ver aí uma salutar concessão dos poderes republicanos que o mantinham sob sua guarda? As relações incestuosas entre polícia e bandidos, tão brasileiras, ao mesmo tempo sintoma e causa do despreparo das forças da ordem, e que leva muitas vezes a execuções sumárias de pretos e pobres para acerto de contas, pode permitir que nos Jogos Olímpicos os próprios traficantes assegurem que não haja sérios problemas para limpar a barra da polícia e assim garantir que ela deixe o pessoal da comunidade seguir a vida.

    Quanto à falta de dinheiro para terminar o metrô do Rio que garantirá o meio de transporte para os atletas e turistas olímpicos, neste 20 de junho de 2016 o descalabro das finanças públicas foi temporariamente resolvido por um acordão entre o Presidente Michel Temer e os governadores, pelo qual decidiu-se suspender o pagamento de dívidas à União. Ninguém ainda sabe como cobriremos o rombo descomunal, fruto do nosso completo desapego à Lei de Responsabilidade Fiscal, que havia sido celebrada como a salvação das contas nacionais quando de sua promulgação. O importante é que nós brasileiros sabemos costurar conchavos à margem da lei, pelo qual todos saem ganhando ao menos no curto prazo. Deixemos para pensar em como cortar despesas e aumentar receitas em 2017.

    Por fim, quanto à poluição da Baía de Guanabara haverá redes de contenção ao redor do local das provas a vela e, além do mais, o lixo que se acumula há décadas no fundo do mar carioca não virá à tona, podem ter certeza. O que os espectadores globais verão pela televisão é a paisagem deslumbrante do Pão de Açúcar ao fundo e tenho certeza que ficarão maravilhados como Mem de Sá, Estácio de Sá e Nicolas Durand de Villegagnon ficaram no século XVI.

    Prezados leitores, nosso ex-presidente Lula semeou a ideia das Olimpíadas em um páis tropical em 2007, em um momento em que o Brasil orgulhava-se de ser membro de um grupo geopolítico importante, o dos BRICs, e em que a riqueza do pré-sal estava ao alcance da mão. Não previmos todas as desgraças que cairiam sobre nossa cabeça e como é do nosso feitio, nunca tivemos um plano de contingências. Já que a nossa vocação é de sermos semeadores, que o cenário do Rio de Janeiro, especialmente pintado por Deus, permita que possamos mostrar a rabugentos como Milo Yannopoulos que os Jogos Olímpicos em um país de Terceiro Mundo não serão um exemplo de organização e eficiência, mas não serão apocalípticos como querem fazer crer os preconceituosos. Eles simplesmente serão brasileiros e farão todos sonhar com o sol, o mar e todas as belezas naturais da Cidade Maravilhosa. Viva a Rio 2016!

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Sobre turistas proletários e proletários turistas

Vê-se que o inglês não é motivado por um grande apetite de descoberta. De fato, constata-se in loco que ele não se interessa nem pela arquitetura, nem pela paisagem, nem por o que quer que seja. Encontramos o inglês no começo da noite, depois de uma breve estadia na praia, sentado ao redor de aperitivos bizarros. A presença de um inglês em um local de férias não fornece nenhuma indicação sobre o interesse do lugar, sua beleza, seu eventual potencial turístico. O inglês vai a um local de férias unicamente porque tem certeza que vai encontrar outros ingleses.

Trecho retirado do livro “Lanzarote e outros textos” do escritor francês Michel Houellebecq

Uma das características mais interessantes do debate sobre a saída do Reino Unido da União Europeia é que ele escancarou um cisma na sociedade britânica muito mais profundo que a divisão tradicional entre trabalhistas e conservadores. De um lado temos a elite próspera e educada que vive majoritariamente nas grandes cidades e nas cidades onde há universidades, que é liberal em questões sociais, a favor da imigração, acredita no livre comércio e tem uma perspectiva internacionalista. De outro lado, temos a classe trabalhadora branca, concentrada em áreas de estagnação econômica, particularmente cidades litorâneas, socialmente conservadora, contra a imigração, desconfiada do livre comércio e ferozmente nacionalista.

Trecho retirado do artigo “Estes esnobes e cruéis partidários da União Europeia” do jornalista inglês Toby Young e publicado em 14 de maio de 2016

    Prezados leitores, um dos prazeres a que me dediquei nas minhas férias foi ler tomando sol. E escolhi para minha diversão um autor que fala muitas coisas interessantes sobre nossa vida contemporânea, Michel Houellebecq, que no ano passado adquiriu notoriedade pelo fato de seu livro, “Submission”, ter sido lançado na mesma época em que houve o atentado à redação do Charles Hebdo em Paris. A razão da notoriedade é que ele descreve no seu livro a eleição para a presidência da França de um muçulmano. Mas seu olhar sobre o islamismo, cuja religião, ele chama em um de deus livros de “emerdeada”, não me interessa no momento. O que quero em primeiro lugar é enfocar sua opinião sobre a atividade turística e sobre os turistas, colocadas no livro acima mencionado.

    Vi “Lanzarote et autres texts” em uma livraria em Roma e como já estive nesta ilha do Arquipélago das Canárias, tive certeza que ele teria algo a me dizer. E de fato não me decepcionei. Houellebecq fala sobre as esperanças do turista que ao comprar um pacote de viagens, compra um sonho, possibilidades lúdicas, misteriosas, até místicas de viver plenamente, de preencher o vácuo existencial que todos temos dentro de nós, por mais que na maioria das vezes não pensemos nisso. Em “La Carte et le Territoire” Houellebecq comenta que para um jovem casal urbano rico o turismo tem como objetivo dotar o homem e a mulher “de boas lembranças que lhes servirão para lidar com os anos difíceis.”

    Enfim, seu olhar sobre o turismo e seus participantes é sempre irônico, cáustico e por isso pertinente. No mais das vezes ao fazermos uma excursão por uma das atrações do lugar, ao alugarmos um carro e conhecermos as belezas que os próprios habitantes do local não percebem e muito menos apreciam, simplesmente preenchemos o tempo para não morrermos de tédio. Nesse aspecto, o comportamento dos ingleses revela o aspecto não abertamente comercializado da atividade turística. Os ingleses viajam para beber com seus amigos ingleses e muitas vezes quando o fazem provocam arruaças e quebra-quebra, como mais uma vez ficou demonstrado no sábado em Marselha na França, durante o jogo Rússia x Inglaterra pela Eurocopa. Eu pude constatar os objetivos prosaicos dos ingleses descritos por Michel Houellebecq quando reclamei com um homem ao redor dos seus 50 anos que tinha sido muito cansativo subir a montanha para ver as ruínas de um forte construído pelos venezianos no século XVII. Eu então lhe perguntei se ele também tinha feito a caminhada. Ele deu uma risada dizendo, “de jeito nenhum, já vi muito monte de pedra na minha vida”. Essa é a opinião sucinta do turista inglês mediano sobre civilizações antigas, história, arqueologia e arte. Nenhum grande ideal sobre epifanias espirituais ao comprar um pacote de viagem.

    Neste ponto chego ao segundo foco da minha atenção neste meu humilde artigo, que tomou como ponto de partida as observações antropológicas de Michel Houellebecq sobre o turismo no século XXI para chegar aos ingleses, especificamente aqueles ingleses que viajam para beber, são pouco educados e de acordo com Toby Young formam um lumpenproletariat que a elite da Inglaterra despreza. Para o editor da revista The Spectator, a classe trabalhadora branca é a grande vítima da globalização, porque os empregos que ela costumava conseguir não estão mais disponíveis no século XXI, seja porque as atividades manuais foram substituídas por robôs, seja porque cidades outrora operárias perderam sua base industrial, seja porque os imigrantes fazem o mesmo serviço a um custo mais baixo. Toby Young é a favor da saída do Reino Unido da União Europeia como única forma de estabelecer-se um novo pacto social em que a elite que atua no ramo financeiro, advocatício, ou imobiliário, setores que se beneficiaram grandemente da posição de Londres como centro financeiro mundial e reduto de milionários dos quatro cantos do globo, faça um sacrifício em prol daqueles que perderam com a globalização.

    O sacrifício consistiria em frear o fluxo de pessoas, negócios e mercadorias representado pela adesão à União Europeia. É verdade que saindo da UE o Reino Unido correria o risco de ver Londres ser desbancada do seu status de meca financeira, mas para os partidários do Brexit, como Toby Young, vale a pena arcar com as consequências negativas em termos de perda de uma parte da vantagem competitiva da indústria financeira se isso permitir que a classe trabalhadora branca nativa recupere um pouco da dignidade perdida ao aumentar sua participação no mercado de trabalho em detrimento dos imigrantes. A falta de compaixão dos ricos pelos pobres denunciada por Toby Young foi recentemente exemplificada pela medida adotada pelo Chanceler do Tesouro, George Osborne, que em sua proposta orçamentária cortou os benefícios por invalidez pressupondo que muitos dos que recebem o dinheiro não trabalham porque são vagabundos, o que levou Ian Duncan Smith, o então Ministro do Trabalho e Aposentadoria a renunciar em 18 de março deste ano, acusando Osborne de favorecer os privilegiados.

    Os cínicos dirão que o lumpenproletariat britânico é irremediável e que a única coisa a fazer em relação a eles é prover-lhes a subsistência e evitar que eles causem muitos estragos, proporcionando-lhes válvulas de escape como o futebol e o turismo etílico descrito por Houellebecq. Seja lá como for, saberemos a resposta ao apelo de Toby Young feito aos agraciados pela globalização em seu país no dia 23 de junho, data do referendo sobre a saída ou não do Reino Unido da União Europeia.

    Prezados leitores, no Reino Unido os perdedores do processo de transformação do mundo em aldeia global poderão revoltar-se decidindo dar às costas à União Europeia, nos Estados Unidos poderão eleger Donald Trump presidente dos Estados Unidos. A desigualdade social devida ao fato de o crescimento econômico no século XXI beneficiar apenas alguns grupos dentro de cada Estado é algo inédito para esses afortunados países do Primeiro Mundo, que no século XX tiveram tudo para acreditar que seus habitantes seriam em sua maioria de classe média. Nós, no Brasil, não nos livramos dos nossos marginalizados nem com o crescimento econômico fenomenal obtido depois da Segunda Guerra Mundial, e agora, com o fim do ciclo das commodities e o colapso geral das finanças públicas em todos os entes da federação, será muito mais difícil prover-lhes algo além do Bolsa Família. Sair do Mercosul não resolve o problema dos ném-ném (nem estuda nem trabalha) aqui, e por enquanto ainda não temos um populista falastrão como Trump, ou melhor nosso melhor exemplar, Lula, provavelmente sairá da Operação Lava Jato nu e batendo os dentes de frio. Esperemos, pois, a compaixão de privilegiados como Cláudia Cruz Cunha, que poderia doar algumas bolsas e sapatos às nossas mulheres pobres. Não é um bom começo para a distribuição da renda? Quem sabe cheguemos a viagens a Fernando de Noronha para o lumpenproletriat brasileiro regadas a cerveja?

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Os taumaturgos

Porque até o Socialismo é criação do Catolicismo e da essência católica! Ele, como seu irmão o ateísmo, também foi gerado pelo desespero, em contraposição ao Catolicismo no sentido moral, para substituir o poder moral perdido da religião, para saciar a sede espiritual da humanidade sequiosa e salvá-la não por intermédio de Cristo, mas igualmente da violência! Isso também é liberdade por meio da violência, isso também é unificação por meio da espada e do sangue! “ Não ouses acreditar em Deus, não ouses ter propriedade, não ouses ter personalidade, fraternité ou la mort, dois milhões de cabeças!” É pelos atos deles que os conhecereis – está escrito! E não pensem que isso tudo seja para nós coisa tão inocente e corajosa; oh, precisamos de uma reação, e logo, e logo!

Trecho de um discurso do Príncipe Míchkin, personagem de O Idiota de Fiódor Dostoiévski

No fim, o autor organizou a sua apuração em oito ideias centrais, como a capacidade de manter o foco nos objetivos, cumprir metas estabelecidas, saber inovar e também tomar decisões, além de navegar com segurança no oceano de informações e distrações do mundo moderno.

Trecho de resenha publicada na revista Veja de 4 de maio sobre o livro Mais Rápido e Melhor – Os Segredos da Produtividade na Vida e nos Negócios, escrito por Charles Duhigg

    Prezados leitores, nesta semana refugio-me na ficção. Não tenho mais nada a falar sobre o impeachment, sobre as disputas políticas, sobre a crise econômica, muito menos tenho capacidade de prever o que ocorrerá com o Brasil, se já atingimos o fundo do poço ou se ainda temos margem para afundar ainda mais, se os Jogos Olímpicos vão ser um sucesso ou vão ser uma nova versão do 7 x 1. Nas ciências exatas a capacidade que uma teoria tem de prever fenômenos naturais atesta sua validade, isto é sua capacidade de salvar as aparências, de fornecer explicações consistentes para a realidade. Nas ciências humanas, as previsões são mais difíceis porque o comportamento dos seres humanos está sujeito a uma variedade tão grande de influências que nossa mente não dá conta. Ao mesmo tempo que confesso minha incapacidade de dizer algo relevante sobre nosso Brasil, admiro aqueles poucos indivíduos que, para utilizar o jargão moderno, tal qual reproduzido por Charles Duhigg no livro citado acima, são produtivos e inovadores. Prefiro chamá-los de taumaturgos, porque eles fazem milagres. Um desse milagreiros é Dostoiévski e vou explicar-lhes o porquê de eu achar que o autor russo que viveu de 1831 a 1878, aos 18 anos já era órfão de pai e mãe, pobre e epiléptico cabe nessa definição, tratando do personagem principal de Idiót, cujas inspirações principais foram Jesus Cristo e Dom Quixote.

    Quem não há de concordar que em 1868, quando O Idiota foi publicado, não havia ali, na fala do príncipe Liev Nikoláievitch que abre este artigo, uma premonição sobre o que iria acontecer na Rússia a partir de 1917 em nome do comunismo? Claro, não se pode exigir a precisão de hora e local do eclipse solar de 29 de maio de 1919 que foi observado em Sobral, no Ceará e que permitiu uma das primeiras verificações experimentais da Teoria da Relatividade. Dostoievski não previu exatamente que uma revolução eclodiria no seu país no século XX em São Petersburgo, comandada a princípio por Vladimir Ilitch Lênin, financiado pelos alemães, que queriam ver o país mergulhar no caos e assim facilitar sua derrota na 1ª Guerra Mundial. No entanto, um alerta sobre o vácuo espiritual que a descrença na religião acarretaria e sua substituição pela ideologia socialista a ser imposta pela violência, custasse o que custasse está ali, sem necessidade de grandes esforços de interpretação.

    Como explicar a presciência de um epiléptico? Charles Duhigg talvez dissesse que ele tem foco, eu diria, para usar um vocabulário mais antigo, que Dostoievski tinha uma visão moral muito clara, respaldada no cristianismo. Sem fazer nenhum julgamento de valor aqui, é forçoso constatar que para um verdadeiro cristão a vida, o amor e a fé têm preeminência sobre tudo e levam à vida bela, ao passo que o ódio, a violência, a descrença são o mal a ser combatido. O Príncipe da obra-prima de Dostoiévski ama verdadeiramente, sem julgar ninguém, sem condenar, apenas imbuído da disposição infinita de tentar compreender as pessoas e ter compaixão pelo sofrimento alheio. Essa sua boa vontade em relação à humanidade o faz ser visto como um idiota por aqueles que só zelam por seus interesses, para quem o egoísmo é a única realidade possível. Ao mesmo tempo em que é mal interpretado e ridicularizado pelos que estão à sua volta, que o veem como um ser facilmente enganável e explorável, Liev Nikoláievitch, pela sua própria posição marginal, tem um ponto de vista privilegiado sobre a realidade. Na qualidade de ovelhinha ridiculamente inocente, ridiculamente boa, ridiculamente paciente, o príncipe é o primeiro a ver seus próprios defeitos, apontados por todos a sua volta, e por isso consegue penetrar no interior das pessoas com uma profundidade que só quem olha para dentro de si mesmo é capaz de ter. Sim, ele é o primeiro a admitir que é um epiléptico meio sonso, que não sabe se comportar em sociedade, que não sabe se expressar corretamente, e é essa tendência de desprender-se de sua subjetividade, fruto da boa vontade que têm por todos, que o dota da sua extraordinária capacidade de descobrir os sentimentos das pessoas, suas motivações.

    Assim é que tudo o que o Idiota fala é tão desconcertante pela sua verdade que os mais lídimos representantes da boa sociedade o ignoram por completo, ou melhor varrem suas afirmações para debaixo do tapete, pela inconveniência. Quando Míchkin termina seu discurso sobre os perigos de substituir a fé na religião pela fé na falta de fé, os generais e altos funcionários a sua volta o tratam com condescendência, pedindo-lhe que modere sua exaltação. Afinal, ideias originais são supérfluas em um mundo em que as pessoas comportam-se e sentem de acordo com um roteiro pré-estabelecido: o que vale na sociedade burguesa é ter coisas para si, pessoas para si. O amor, o dinheiro, a reputação, o casamento são exclusivos, oponíveis erga omnes: o que temos para nós mesmos temos em nosso favor e contra todos os que não participam dessa propriedade.

    Ao final do livro, o príncipe volta ao lugar de onde tinha partido, uma pequena vila na Suíça, onde fica aos cuidados de um médico que o diagnostica como irremediavelmente fora de si. O refúgio dele na loucura o torna imune às mesquinharias, à velhacaria, às paixões irrefreadas que ele encontrou em sua estadia na Rússia. Prezados leitores, guardadas as devidas proporções entre o príncipe que só falava verdades e esta pobre blogueira que vos dirige suas humildes palavras, tirarei férias a partir da próxima semana para refugiar-me nas coisas belas. Ficarei longe da contagem dos votos do impeachment, do cálculo do rombo nas contas públicas, das novas revelações sobre quem pagou propinas a quem, das denúncias contra os malvados de sempre, e principalmente dos planos bombásticos do governo Temer sobre ajuste fiscal, choque de eficiência e privatização, que são sempre a fonte dos milagres no imaginário político nacional. Tenho há tantas semanas escrito sobre a novela do impeachment que faço um exame de consciência e admito à presença de todos, tal como Lev Nikoláievitch, que sou uma tremenda idiota, que fala muito, exalta-se muito e vai acabar tendo um ataque epiléptico como o príncipe teve depois de seu discurso contra o ateísmo. Considero que o melhor neste momento de tantas fofocas, maledicências e intrigas é refugiarmo-nos na beleza, e se eu escrever algo nas próximas semanas será inspirada pelas caminhadas que pretendo fazer pela Cidade Eterna. Oxalá que quando eu volte ao Brasil eu me sinta menos parva e menos confusa sobre a realidade, mantenha o foco e consiga ser produtiva e criadora como as receitas de Charles Druhigg prometem.

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Pedalando, pedalando…

Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como despesa total com pessoal: o somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência.

Artigo 18 da Lei Complementar 101 de 2000, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal

“A Suíça é um país muito, muito democrático”, ele afirma cuidadosamente. “Então as pessoas querem saber o que o Estado está fazendo com o dinheiro dos impostos, e aos estrangeiros parece que os suíços votam a respeito de tudo, o que não é o caso. […] Eles não votam contra ou a favor de uma ideia, mas contra ou a favor de um projeto específico, que foi elaborado de forma que possa ser executado nas próximas quarto semanas.”

Trecho de entrevista de Christoph Becker, diretor do Kunsthaus Zurich, o principal museu da cidade de Zurique, a respeito da construção da nova ala, que foi objeto de plebiscito em 2012

    Prezados leitores, lembro do primeiro estelionato eleitoral que senti na pele. Foi em 1986, ano em que vigia o Plano Cruzado e vivíamos a euforia do seu aparente sucesso em acabar com a famigerada inflação que comia nossas carnes e nosso dinheiro. No dia 15 de novembro daquele ano elegemos 22 governadores, 49 senadores e 487 deputados federais do PMDB, o partido do governo do Presidente José Sarney. Em 21 de novembro de 1986, foi lançado o Plano Cruzado II, que descongelou os preços, aumentou os impostos e as tarifas de serviços públicos e estabeleceu um método de cálculo da inflação, usado como base para reajustes salariais, que só considerava o preço dos produtos consumidos por famílias que ganhavam até cinco salários mínimos. A população havia sido enganada e reagiu em 27 de novembro saqueando supermercados, realizando depredações e causando incêndios em Brasília. Em maio de 1987 o fracasso do Plano Cruzado foi oficialmente constatado com a substituição do Ministro da Fazenda, Dilson Funaro, por Luís Carlos Bresser Pereira.

    30 anos depois e continuamos sendo enganados pelos nossos líderes, apesar de as eleições ocorrerem a cada dois anos, o que teoricamente permitiria a nós, brasileiros, substituir os incompetentes por pessoas mais competentes e ir tentando até chegarmos ao bom governo, que hoje é expresso pelo conceito importado do inglês, governança. Como já manifestei ad nauseam neste meu humilde espaço, sou contra o impeachment de Dona Dilma Rousseff porque acho que a indignação popular contra a corrupção está sendo explorada por certos grupos que têm sua própria agenda de interesses, a qual não necessariamente é menos corrupta e mais transparente do que a agenda do PT.

    No entanto, não há como negar que assim como José Sarney fez em 1986 para ganhar as eleições, em 2014 Dilma escamoteou a real situação das contas públicas que só agora está vindo à tona na sua cruel dimensão. Sabemos hoje que a dívida pública está em 66% do PIB e pode ultrapassar 85% do PIB em 2018. Dilma pode não ter contas na Suíça como Eduardo Cunha, seu algoz, mas em 2014 levianamente rebateu as críticas da oposição ao cenário róseo dizendo que eram meras tentativas de privar os trabalhadores das conquistas sociais da era do PT no governo.

    Em suma, os debates eleitorais não esclarecem nada para nós, pobres eleitores, porque baseados na lógica da propaganda do pegar ou largar o produto, não dão oportunidade a que os candidatos admitam que a parte adversária levantou questões merecedoras de atenção. Diante de tal quadro, como podemos controlar melhor a qualidade da atuação dos líderes políticos se tudo o que falam nas campanhas é tão verdadeiro quanto o discurso de um operador de call center que começa dizendo que “você foi escolhido para ganhar…”? Se quase nada do que falam nos palanques é para valer e quase tudo para vender, como comparar a atuação com o discurso? Em um país de doutores, o governo das leis que submetem os homens será que é a solução? Dois exemplos vão mostrar a vocês que o governo das leis também é enganador.

    A Lei de Responsabilidade Fiscal teve por objetivo “estabelecer normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal”. Em pleno governo de Fernando Henrique Cardoso foi saudada como divisor de águas. Pois bem, 16 anos depois de sua promulgação é forçoso constatar como o faz Marcos Lisboa, presidente do Insper, que nossos governadores, do Oiapoque ao Chuí, aprenderam espertamente truques para burlar a lei. O mais conspícuo foi não considerar despesas com pessoal terceirizado como despesas de pessoal. Nisso respeitaram a letra do artigo 18 da LRF, embora certamente não seu espírito. O resultado foi que houve aumento de gastos com pessoal em TODOS os Estados brasileiros, e no Rio de Janeiro o aumento foi de quase 70%. Assim, não foi só Dona Dilma quem pedalou, os governadores andaram pedalando muito, e alguns chegaram ao cúmulo de fazerem uso de depósitos judiciais em bancos públicos, praticando a apropriação indébita. O pior é que as gambiarras continuam sob as vestes da legalidade: foram impetrados três mandados de segurança no STF (34023, 34110 e 34122) respectivamente por Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, que questionam a indexação da dívida estadual e pleiteiam a aplicação de juros simples e não compostos. O julgamento do mérito está marcado para dia 27 próximo, e se vingar a proposta, os Estados poderão, sob amparo jurídico, dar um calote de R$ 300 bilhões de reais na União.

    Uma outra lei que prometeu mundos e fundos e só levou a pedaladas foi a Lei 8.666 de 1993, que instituiu “normas para licitações e contratos da Administração Pública. O objetivo era impedir superfaturamento das obras e para isso estabeleceu que a escolha do vencedor seria basicamente pelo melhor preço, isto é o preço menor, limitando o critério de melhor técnica a projetos de cunho intelectual, como consultoria (artigo 46). O resultado prático disso é que o Administrador é obrigado por lei a escolher o licitante que cobra mais barato e quando os custos da obra ultrapassam a estimativa inicial a lei estabelece a gambiarra dos aditivos (artigo 65), que permitem toda sorte de abusos sob o manto da “manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato”. A ciclovia que acaba de desabar no Rio de Janeiro foi regida por um contrato que teve 8 aditivos e custou 10 milhões a mais do que o previsto. Tudo legal e no entanto…

    Prezados leitores, se as eleições e as leis não melhoram nossa governança, o que fazer? Mobilização total permanente, isto é, o povo nas ruas a cada dois meses? Como fazer para atrair as massas se não houver um pixuleco como bode expiatório? Feliz de um pequeno país de pouco mais de 8 milhões de habitantes como a Suíça que consegue manter pressão sobre os governantes na base dos referendos. Mas eles já fazem isso há 800 anos… O jeito é nós brasileiros continuarmos pedalando até aprendermos como praticar a democracia. Oxalá que a história nos dê esse tempo antes que cheguemos à beira do abismo e precisemos nos desfazer de certas coisas para dar o salto mortal…

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Tchau Querida

Os gregos faziam uma distinção clara entre logos/ (‘relato, cálculo, explicação, história, razão, debate, discurso’, compare com ‘lógica’ e todas aquelas palavras terminadas em -logia’) e ergon (‘trabalho, feito, ação’). Para um grego, rejeitar o logos era rejeitar a expressão do pensamento; e assim acabar com qualquer possibilidade de as pessoas explicarem ou darem um motivo por que estavam pensando e agindo daquele modo; e assim impedir qualquer maneira de combatê-las – exceto, claro, pela força.

Trecho retirado do artigo “Espaço seguro na Atenas antiga”, escrito por Peter Jones, ex-professor de Estudos Clássicos na Universidade de Newcastle na Inglaterra

Em declamações frequentemente teatrais, alguns deputados fizeram uso da tribuna para aproveitar o tempo e as luzes da ribalta para enviar mensagens pessoais sem muita ligação com as manobras fiscais da Sra. Dilma Rousseff oficialmente censuradas.

Trecho retirado do artigo “Os 10 segundos de celebridade dos deputados brasileiros” publicado na versão eletrônica dojornal francês Le Monde em 18 de abril

    Prezados leitores, quando eu era adolescente eu costumava passar minhas férias de verão em Saquarema, na região dos Lagos do Rio de Janeiro. O casal que nos hospedava tinha uma linda filha loira de 8 anos, que tinha um hábito que me irritava, mas do qual eu não podia reclamar, afinal estava hospedada na casa da menina. Às oito horas Danielle, era este seu nome, ligava a televisão para assistir ao desembarque de Xuxa da sua nave cantando BOM DIA AMIGUINHOS, JÁ ESTOU AQUI, TENHO TANTAS COISAS PARA NOS DIVERTIR QUERO OUVIR TODOS VOCÊS CONTAR ATÉ TRÊS… Danielle sempre dançava em frente à televisão ao som da música de abertura do Show da Xuxa e sempre me acordava. Talvez minha birra com a Xuxa venha daí, da lembrança das botas brancas da apresentadora pisando depois de “aterrissar” nos lares de milhares ou milhões de crianças que acompanhavam o ídolo todos os dias.

    No dia 17 de abril de 2016 o programa da Xuxa veio-me à cabeça enquanto eu acompanhava o desenrolar da votação sobre a admissibilidade do impeachment da Presidente da República. Devo confessar que minha versão dos fatos está prejudicada porque eu apenas ouvi os deputados darem suas razões para o sim ou para o não. O sinal da TV a cabo em meu apartamento foi interrompido por volta das 8 da noite e fiquei sem televisão e sem internet. De qualquer forma, a razão pela qual relacionei o programa da Xuxa à votação do segundo processo de impedimento em menos de 30 anos em nossa Nova República foi porque ouvi tantos e tantos deputados agradecendo pais, ou votando em nome de filhos, filhas, netos nascidos e vindouros que não pude deixar de lembrar das crianças a quem Xuxa dava o microfone para mandar beijos a alguém. As crianças aproveitavam a oportunidade e desembestavam a enumerar rapidamente os recipientes dos seus beijos. A pressa era porque “tia” Xuxa cortava a fala das crianças já que precisava seguir o roteiro do programa.

    Ontem, ao contrário, não havia um roteiro, afinal era a festa da democracia e os deputados puderam falar à vontade, apesar de que oficialmente tinham só 10 segundos para fazê-lo. Tanto falaram à vontade que o resultado saiu ao menos duas horas mais tarde do que o esperado. A princípio é louvável que os congressistas tenham se estendido tanto, o que mostra que explicaram seu voto exaustivamente. Será? Será que houve o exercício do logos grego de que fala Peter Jones, além dos beijinhos aos amiguinhos que estavam assistindo pela TV ou pelo I -phone ou ouvindo pelo radinho de pilha como esta que vos fala?

    Houve a cuspida de Jean Wyllys do PSOL do Rio de Janeiro em Jair Bolsonaro, houve vociferações contra Eduardo Cunha, que foi chamado de gângster, e contra Michel Temer, que foi chamado de traidor. Houve até um deputado que se disse contra a Rede Globo e que por isso votou pelo impeachment, algo totalmente incongruente visto que a Vênus Platinada fez questão de transmitir a sessão do Congresso e para garantir audiência obrigou os times de futebol a reagendarem os jogos dos campeonatos estaduais. A Globo com certeza tinha certeza da vitória do sim, se não tivesse teria ignorado o evento, como ignorou os comícios pelas Diretas Já no longínquo 1984 e como ignorou a manifestação pró-Lula que aconteceu em São Paulo em 18 de março deste ano.

    Muitos motivos, menos rocambolescos do que ser contra a Rede Globo, foram dados para o voto a favor do impeachment: os 10 milhões de desempregados, o fechamento de empresas devido à crise econômica, a fidelidade às diretrizes do partido, a necessidade de virar a página, a defesa dos trabalhadores de tal região ou cidade, a luta contra a tentativa de tornar o Brasil uma república bolivariana, evitar ofensas a Israel. Não lembro de nenhum dos deputados que tiveram seus 10 segundos ou mais de fama que usaram o microfone para expor o motivo de Dona Dilma Vana Rousseff ter cometido o crime de responsabilidade de que é acusada. Um dos deputados chegou a mencionar o artigo 85 da Constituição Federal, mas não foi além disso. Alguns dirão que a acusação específica já havia sido tratada por Janaina Conceição Pascoal e Miguel Reale, que certamente mencionaram em seu pedido de impeachment o artigo 10 da Lei 1.079. E além disso dirão que a acusação foi corroborada pelo relator do processo, Jovair Arantes, que da tribuna do Parlamento denunciou o atraso nos repasses do governo ao Banco do Brasil, ao BNDES e à Caixa, os quais tiveram que usar recursos próprios para pagar o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e o Plano Safra, significando na prática um empréstimo ao governo não previsto na lei orçamentária.

    Tudo isso é verdade, mas permanece o fato de que pouquíssimos brasileiros acompanharam a acusação de Miguel Reale, a defesa de José Eduardo Cardoso ou a explanação de Jovair Arantes. O que a maioria de nós realmente acompanhou foi a votação propriamente dita, e o que ficou patente foi que as razões jurídicas, que certamente existem, eram irrelevantes para os 504 deputados que expressaram sua opinião ao microfone na frente do “titio” Eduardo Cunha. A própria frase Tchau Querida estampada nos cartazes dos favoráveis ao impeachment mostra que há uma antipatia pessoal à Presidente, ao seu jeito mandão, explosivo, à sua falta de capacidade de negociar. Em suma, explicações consistentes, com premissa maior, premissa menor e conclusão ficaram a cargo dos especialistas, que não decidiram nada, apenas deram a largada à corrida.

    Quem decidiu foram deputados que, tanto no lado do sim quanto do não, mostraram que a nossa democracia, reiniciada em 1989 com as eleições diretas para Presidente, ainda é perigosamente frágil: vive não do diálogo entre partes que de boa fé tentam chegar a um consenso, após concordarem sobre aquilo que é motivo de discórdia, mas dos beijinhos, das frases de efeito, dos insultos regados a “Vossa Excelência”, das gozações pessoais, da maldade embutida no “Querida”, da ameaça explícita do “Estou de olho em você, Cunha!” ou da ameaça velada do próprio Cunha sorrindo com o canto da boca. Enfim, na nossa democracia tupiniquim, é tudo pessoal, nada é objetivo, tudo é ergon, nada é logos: neste 2016 uma das partes agiu com determinação e persistência e conseguiu derrotar a outra, atropelada pela velocidade dos acontecimentos e pela união cerrada dos seus oponentes. E claro, tudo regado a violações sistemáticas à nossa pobre língua, assediada e estuprada por nobres deputados que não sabem pronunciar as palavras e esquecem de usar o plural no calor da contenda.

    Prezados leitores, oxalá que Dilma seja defenestrada em menos de seis meses. Não porque eu acredite na legitimidade ou na oportunidade do processo, longe disso. Mas porque quero varrer da minha memória até 2018 as provas irrefutáveis da qualidade sofrível da nossa representação política, motivo de chacota internacional. É este o estado da nossa democracia: tudo se resume a um “O Lula é um vagabundo, f.d.p.” como disse a mim uma amiga, e o mesmo certamente foi dito sobre Eduardo Cunha pela parte adversária. O único alívio da minha angústia existencial na noite de domingo foi que o Tiririca foi comedido e só disse sim ao microfone.

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