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Sobre turistas proletários e proletários turistas

Posted by on 13/06/2016

Vê-se que o inglês não é motivado por um grande apetite de descoberta. De fato, constata-se in loco que ele não se interessa nem pela arquitetura, nem pela paisagem, nem por o que quer que seja. Encontramos o inglês no começo da noite, depois de uma breve estadia na praia, sentado ao redor de aperitivos bizarros. A presença de um inglês em um local de férias não fornece nenhuma indicação sobre o interesse do lugar, sua beleza, seu eventual potencial turístico. O inglês vai a um local de férias unicamente porque tem certeza que vai encontrar outros ingleses.

Trecho retirado do livro “Lanzarote e outros textos” do escritor francês Michel Houellebecq

Uma das características mais interessantes do debate sobre a saída do Reino Unido da União Europeia é que ele escancarou um cisma na sociedade britânica muito mais profundo que a divisão tradicional entre trabalhistas e conservadores. De um lado temos a elite próspera e educada que vive majoritariamente nas grandes cidades e nas cidades onde há universidades, que é liberal em questões sociais, a favor da imigração, acredita no livre comércio e tem uma perspectiva internacionalista. De outro lado, temos a classe trabalhadora branca, concentrada em áreas de estagnação econômica, particularmente cidades litorâneas, socialmente conservadora, contra a imigração, desconfiada do livre comércio e ferozmente nacionalista.

Trecho retirado do artigo “Estes esnobes e cruéis partidários da União Europeia” do jornalista inglês Toby Young e publicado em 14 de maio de 2016

    Prezados leitores, um dos prazeres a que me dediquei nas minhas férias foi ler tomando sol. E escolhi para minha diversão um autor que fala muitas coisas interessantes sobre nossa vida contemporânea, Michel Houellebecq, que no ano passado adquiriu notoriedade pelo fato de seu livro, “Submission”, ter sido lançado na mesma época em que houve o atentado à redação do Charles Hebdo em Paris. A razão da notoriedade é que ele descreve no seu livro a eleição para a presidência da França de um muçulmano. Mas seu olhar sobre o islamismo, cuja religião, ele chama em um de deus livros de “emerdeada”, não me interessa no momento. O que quero em primeiro lugar é enfocar sua opinião sobre a atividade turística e sobre os turistas, colocadas no livro acima mencionado.

    Vi “Lanzarote et autres texts” em uma livraria em Roma e como já estive nesta ilha do Arquipélago das Canárias, tive certeza que ele teria algo a me dizer. E de fato não me decepcionei. Houellebecq fala sobre as esperanças do turista que ao comprar um pacote de viagens, compra um sonho, possibilidades lúdicas, misteriosas, até místicas de viver plenamente, de preencher o vácuo existencial que todos temos dentro de nós, por mais que na maioria das vezes não pensemos nisso. Em “La Carte et le Territoire” Houellebecq comenta que para um jovem casal urbano rico o turismo tem como objetivo dotar o homem e a mulher “de boas lembranças que lhes servirão para lidar com os anos difíceis.”

    Enfim, seu olhar sobre o turismo e seus participantes é sempre irônico, cáustico e por isso pertinente. No mais das vezes ao fazermos uma excursão por uma das atrações do lugar, ao alugarmos um carro e conhecermos as belezas que os próprios habitantes do local não percebem e muito menos apreciam, simplesmente preenchemos o tempo para não morrermos de tédio. Nesse aspecto, o comportamento dos ingleses revela o aspecto não abertamente comercializado da atividade turística. Os ingleses viajam para beber com seus amigos ingleses e muitas vezes quando o fazem provocam arruaças e quebra-quebra, como mais uma vez ficou demonstrado no sábado em Marselha na França, durante o jogo Rússia x Inglaterra pela Eurocopa. Eu pude constatar os objetivos prosaicos dos ingleses descritos por Michel Houellebecq quando reclamei com um homem ao redor dos seus 50 anos que tinha sido muito cansativo subir a montanha para ver as ruínas de um forte construído pelos venezianos no século XVII. Eu então lhe perguntei se ele também tinha feito a caminhada. Ele deu uma risada dizendo, “de jeito nenhum, já vi muito monte de pedra na minha vida”. Essa é a opinião sucinta do turista inglês mediano sobre civilizações antigas, história, arqueologia e arte. Nenhum grande ideal sobre epifanias espirituais ao comprar um pacote de viagem.

    Neste ponto chego ao segundo foco da minha atenção neste meu humilde artigo, que tomou como ponto de partida as observações antropológicas de Michel Houellebecq sobre o turismo no século XXI para chegar aos ingleses, especificamente aqueles ingleses que viajam para beber, são pouco educados e de acordo com Toby Young formam um lumpenproletariat que a elite da Inglaterra despreza. Para o editor da revista The Spectator, a classe trabalhadora branca é a grande vítima da globalização, porque os empregos que ela costumava conseguir não estão mais disponíveis no século XXI, seja porque as atividades manuais foram substituídas por robôs, seja porque cidades outrora operárias perderam sua base industrial, seja porque os imigrantes fazem o mesmo serviço a um custo mais baixo. Toby Young é a favor da saída do Reino Unido da União Europeia como única forma de estabelecer-se um novo pacto social em que a elite que atua no ramo financeiro, advocatício, ou imobiliário, setores que se beneficiaram grandemente da posição de Londres como centro financeiro mundial e reduto de milionários dos quatro cantos do globo, faça um sacrifício em prol daqueles que perderam com a globalização.

    O sacrifício consistiria em frear o fluxo de pessoas, negócios e mercadorias representado pela adesão à União Europeia. É verdade que saindo da UE o Reino Unido correria o risco de ver Londres ser desbancada do seu status de meca financeira, mas para os partidários do Brexit, como Toby Young, vale a pena arcar com as consequências negativas em termos de perda de uma parte da vantagem competitiva da indústria financeira se isso permitir que a classe trabalhadora branca nativa recupere um pouco da dignidade perdida ao aumentar sua participação no mercado de trabalho em detrimento dos imigrantes. A falta de compaixão dos ricos pelos pobres denunciada por Toby Young foi recentemente exemplificada pela medida adotada pelo Chanceler do Tesouro, George Osborne, que em sua proposta orçamentária cortou os benefícios por invalidez pressupondo que muitos dos que recebem o dinheiro não trabalham porque são vagabundos, o que levou Ian Duncan Smith, o então Ministro do Trabalho e Aposentadoria a renunciar em 18 de março deste ano, acusando Osborne de favorecer os privilegiados.

    Os cínicos dirão que o lumpenproletariat britânico é irremediável e que a única coisa a fazer em relação a eles é prover-lhes a subsistência e evitar que eles causem muitos estragos, proporcionando-lhes válvulas de escape como o futebol e o turismo etílico descrito por Houellebecq. Seja lá como for, saberemos a resposta ao apelo de Toby Young feito aos agraciados pela globalização em seu país no dia 23 de junho, data do referendo sobre a saída ou não do Reino Unido da União Europeia.

    Prezados leitores, no Reino Unido os perdedores do processo de transformação do mundo em aldeia global poderão revoltar-se decidindo dar às costas à União Europeia, nos Estados Unidos poderão eleger Donald Trump presidente dos Estados Unidos. A desigualdade social devida ao fato de o crescimento econômico no século XXI beneficiar apenas alguns grupos dentro de cada Estado é algo inédito para esses afortunados países do Primeiro Mundo, que no século XX tiveram tudo para acreditar que seus habitantes seriam em sua maioria de classe média. Nós, no Brasil, não nos livramos dos nossos marginalizados nem com o crescimento econômico fenomenal obtido depois da Segunda Guerra Mundial, e agora, com o fim do ciclo das commodities e o colapso geral das finanças públicas em todos os entes da federação, será muito mais difícil prover-lhes algo além do Bolsa Família. Sair do Mercosul não resolve o problema dos ném-ném (nem estuda nem trabalha) aqui, e por enquanto ainda não temos um populista falastrão como Trump, ou melhor nosso melhor exemplar, Lula, provavelmente sairá da Operação Lava Jato nu e batendo os dentes de frio. Esperemos, pois, a compaixão de privilegiados como Cláudia Cruz Cunha, que poderia doar algumas bolsas e sapatos às nossas mulheres pobres. Não é um bom começo para a distribuição da renda? Quem sabe cheguemos a viagens a Fernando de Noronha para o lumpenproletriat brasileiro regadas a cerveja?

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