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Maquinas maravilhosas

Posted by on 26/11/2012

            No último final de semana fui convidada por uma amiga a ir à casa de veraneio dela em um condomínio em Embu Guaçu, na região sul de São Paulo. Diante dos dias tórridos que vêm ocorrendo nada melhor do que uma escapada a um lugar cheio de mata, com cachoeira, piscinão, ar puro. Como eu tinha coisas a fazer durante o dia, não pude aproveitar a carona de minha amiga na sexta-feira e então combinei que iria no sábado no final da tarde. Ela deu-me instruções sobre o ônibus a tomar, Embu Guaçu Cipó no terminal Jabaquara. Eu desceria no ponto final e lá ela me pegaria.

            Lá fui eu toda animada sonhando acordada com meu pulão na água no domingo. Cheguei ao ponto de ônibus exatamente às 18:10 e depois de 50 minutos de espera em que para passar o tempo li o jornal de domingo, o ônibus intermunicipal chegou. Quando o vi estacionado senti um alívio: putz, minhas pernas já estão doendo! Graças a Deus eu poderia sentar e apreciar minha experiência antropológica de reconhecimento de Parelheiros, bairro de que já ouvira tanto falar e que nunca tinha tido a oportunidade de conhecer. Duas horas sentada seria suficiente para eu observar o povo, os lugares, protegida pela janela do ônibus.

            Meu alívio durou pouco. Quando vi o cobrador e o motorista saindo do carro, pensei: droga,vai demorar ainda para nós partirmos! E de fato o cobrador sumiu e o motorista pendurado no celular também. Eu já não tinha mais o que fazer, já tinha lido o jornal de cabo a rabo. “Caramba, o que está acontecendo? Este motorista só fala no celular e o cobrador fica correndo de cá para lá! Foi então que ouvi a notícia trágica do motorista, dada aos primeiros da fila: o pneu dianteiro esquerdo tinha furado e não havia outro carro para substituir. Fiquei atarantada. O que fazer, esperar o próximo ônibus ou voltar à minha casa? Com um fio de esperança já descendo pelo ralo, fui em direção ao motorista. Lá estava ele ao lado do pneu, totalmente arriado. Eu perguntei: O senhor tem previsão de quando vem o próximo ônibus? Ele disse não sei, não dá para saber. Eu pensei: realmente é demais, ficar esperando aqui mais uma hora, sem nada para matar o tempo! Como diria Machado de Assis, nós matamos o tempo e o tempo nos mata…

            Fui embora, bufando: “onde já se viu, a EMTU não fazer a manutenção do ônibus? Como deixam chegar a esse estado? Será que não vêem que aumenta o risco de acidente?” Mas pensando bem deveria me considerar uma felizarda, pois deixei para trás umas trinta pessoas que não tinham a opção como eu de voltar à “Rive Gauche” de metrô porque moram na periferia a que se tem acesso somente de ônibus. Fui privada do direito a um simples dia de lazer e os infelizes que ficaram lá privados do direito de voltar para casa mais cedo. Por essas e por outras, incluindo a superlotação de metrô e ônibus, é que os usuários de transporte público se sentem excluídos, excluídos de conforto, de pontualidade, de segurança, de ar condicionado (não há ar condicionado na maioria dos ônibus porque mesmo em um calor de 40 graus no verão, isso é considerado item de luxo, inacessível aos tipos que freqüentam os veículos públicos).

            Daí o sonho de todo brasileiro é pertencer à classe dos incluídos, o que para nós não significa ser um cidadão que pode exercer de fato seu direito ao transporte público de qualidade. Que nada, tudo o que é público no Brasil é coisa de pobres, pretos e otários. Ser incluído é não depender de transporte público, é resolver seu próprio problema pela compra, que é o que a lavagem cerebral da propaganda nos ensina, o consumo resolve seus problemas. No caso a compra milagrosa que cura todos os males é a do carro. Ser incluído é ter um carro. É verdade que há mais incluídos do que outros, como diria George Orwell. Há os que têm um “carrinho”, geralmente carros mil pagos em 50 prestações, há os que têm um carro legal, os modelos nacionais mais sofisticados e há os happy few que têm “the car, the legend”: SRVs, SUVs e todos os vs importados. Ser importado é fundamental. O Audi A3 no início era coisa fina, depois que começou a ser fabricado no Brasil, foi rebaixado de patamar.

            O carro em nossa sociedade de fato é um dos maiores símbolos de pertencimento. Um homem que têm um carro “top de linha” tem poder, têm um membro sexual maior, e portanto têm mais mulheres, ou homens, a depender da preferência é mais bem sucedido. Mulheres independentes que fazem questão de mostra seu novo poder aos homens compram carros cobiçados pelo sexo oposto. Talvez seja um bom estratagema para conseguir um namorado: compre um carro e ele, atraído pelo bólido gostará de você, afinal você é uma pessoa que pertence à sociedade. Pobre de mim, sinto-me uma ovelha negra: nunca me interessei em dirigir, apesar das pressões familiares, e sempre que tenho alguma dificuldade de chegar a um lugar, seja fora ou dentro de São Paulo, há alguém para me lembrar do meu pecado original e me fazer sentir culpada: “tá vendo, se você tivesse seu carrinho…”

            Se eu tivesse meu carrinho seria mais uma contribuinte ao engarrafamento constante em São Paulo, que tende a aumentar exponencialmente, já que batemos recorde em cima de recorde, foram 3,5 milhões de unidades vendidas em 2010, faltam autopeças para suprir a demanda.  Este é um dos símbolos do sucesso brasileiro, a transformação radical por que passou a indústria automobilística na nossa terra. Há 20 anos a produção patinava em 700 mil unidades e tínhamos que nos contentar com as “carroças” vendidas pelas quatro montadoras aqui instaladas. Agora há uma profusão de máquinas maravilhosas para todos os gostos, facilitada pela alta do real, e novas montadoras instalar-se-ão no Brasil, Honda, Hyundai, além daquelas que já abriram fábricas no Brasil, para atender a sofreguidão dos brasileiros em pertencer.

            Agora finalmente somos modernos! Mas será que somos desenvolvidos? Temos carros, mas não temos onde pô-los, porque a malha viária está em pandarecos no Brasil, dada nossa crônica insuficiência de investimentos em infra-estrutura. E aqueles que não têm condições de comprar um carro ou não querem, como eu? Bem, aos excluídos, virem-se! O Estado não pode ou não quer concretizar o direito do trabalhador ao transporte, previsto na Constituição Federal em seu artigo 7, inciso IV.

            Dirão alguns leitores do Montblatt que sou uma rabugenta, afinal as estradas, ruas, viadutos para escoarem tantos carros virão com o tempo, à medida que o PAC frutificar, que o nosso déficit em conta corrente seja coberto pelos investidores internacionais, ansiosos por aplicar seu dinheiro a taxas escorchantes, com garantia de pagamento. Afinal, o real valorizado “é conseqüência natural do nosso progresso”. Quem disse isso foi o egrégio banqueiro, um dos donos do BTG Pactual, doutor no MIT, Pérsio Árida no Globo do dia 6 de fevereiro, que acaba de comprar a parte boa do Banco Panamericano (a parte podre será custeada por nós otários contribuintes).

            Parafraseando Claude Lévi-Strauss, ser Terceiro Mundo é isso: é se atracar à modernidade, sem passar pelo estágio civilizador de desenvolvimento, que permita que a modernidade seja mais que uma fachada, seja mais do que truques destinados a agradar certas pessoas à custa da maioria. Espero poder viver um dia em um país em que não ter uma máquina maravilhosa seja uma opção viável a qualquer indivíduo, que antes de ser consumidor, é um cidadão. Será que viverei para ver esse dia chegar?

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