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Dois pesos, duas medidas

Posted by on 16/03/2014

     Prezados leitores, depois do meu idílio siciliano, minhas atenções estão voltadas a assuntos mais práticos. No Brasil temos sempre o velho problema da incompetência em todos os níveis, incompetência na gestão das obras da Copa, na gestão dos recursos hídricos, que estão levando a um racionamento cada vez mais provável tanto deágua quanto de energia. Nossas autoridades aparentemente não consultam os meteorologistas quando planejam suas políticas e quando o fazem parecem não levar em conta os dados. Em São Paulo, o Sistema Cantareira está em níveis críticos e ainda não foi estabelecido o racionamento de água que a essa altura é obviamentenecessário, visto que vamos entrar na estação seca, que dura até setembro. Se não tivemos muita água até agora, não podemos nutrir esperanças que ela cairá de maneira mais assídua nos próximos meses. Mas com certeza a prioridade não é tentar evitar que a situação piore ainda mais, mas simplesmente evitar que as pessoas percebam que algo está ruim antes das eleições. Portanto, haverá um empurrar geral com a barriga para que os governantes saiam bem na foto.

           Já no cenário internacional coisas muito interessantes estão acontecendo. Não falarei aqui do avião desaparecido, porque seria inútil comentar um assunto sobre o qual não há fatos revelados e especulações só podem ser feitas por quem entende de voos e aeronaves, o que obviamente não é meu caso. Falarei aqui de um assunto superficialmente abordado aqui há duas semanas, a crise na Ucrânia, mas que merece um tratamento mais detalhado, já que envolve duas superpotências nucleares, os Estados Unidos e a Rússia, que estão se enfrentando, de um lado os americanos querendo aumentar sua zona de influência no Leste da Europa tenando trazer os países da ex União Soviética para a OTAN, de outro os russos, querendo recuperar o terreno perdido nos anos 1990, com o desfazimento doimpério.

        Antes de mais nada, farei a ressalva de que é difícil gostar de Vladimir Putin. Ele é ex agente da KGB, nunca sorri, não faz selfies simpáticos como o Obama. Acima de tudo é um indivíduo antiquado demais, porque defende interesses mesquinhamente nacionais, no caso específico o acesso da Rússia ao Mar Negro por meio da Crimeia, num mundo em que a noção de soberania está cada vez mais diluída, e porque defende valores tradicionais a respeito de papéis sexuais. Obama ao contrário é o líder moderno, global, vive fazendo discursos maravilhosos a respeito de abstrações tais como democracia edireitos humanos. Nesta luta, parece que temos duas forças em conflito: de um lado o Ocidente iluminado que defende o direito da Ucrânia de entrar para a União Europeia, de participar dos fluxos internacionais de comércio, de modernizar-se com subsídios europeus, enfim de buscar novos caminhos, livre do jugo russo; de outro lado temos a Rússia retrógrada, cujo líder Stalin foi responsável pela morte de 7 milhões de fazendeiros ucranianos com sua coletivização forçada da agricultura, que sempre dispôs do território que pertence à Ucrânia como lhe aprouve, como sempre fazem aqueles que têm poder.

       Prezados leitores, não é minha intenção tentar convencer qualquer um que já tenha opinião formada sobre o assunto. Cada um de nós tem simpatias e antipatias naturais, fruto dos nossos valores, os quais nos fazem enxergar a realidade por determinado prisma. Portanto, não sou ingênua a ponto de achar que conseguirei fazer com que cada um que me leia mude radicalmente seu modo de encarar Vladimir Putin e a Rússia. Meu objetivo é bem mais modesto: só quero tentar mostrar como a posição dos Estados Unidos neste episódio é incoerente e demonstra que a pauta americana é negativa, no sentido de que toda essa conversa sobre democracia, auto-determinação é uma balela e o foco principal é simplesmente enfraquecer a Rússia, inimiga dos Estados Unidos porque não se rende como a maioria dos países o fazem. Farei isso lançando-lhes algumas perguntas para que vocês pensem com seus botões.

         Minha primeira pergunta diz respeito à tal da defesa da democracia. Por que os Estados Unidos são tão seletivos na sua defesa deste nobre ideal? Em certos países a democracia precisa ser imposta à custa da ilegalidade,como no caso da Ucrânia: lembrem-se que bem ou malo presidente Viktor Yanukovich havia sido eleitoe ele foi deposto de um dia para o outrosem o devido processo legal. Em outros países é preciso simplesmente ignorar a voz das urnas: o presidente Mohamed Morsi, democraticamente eleito no Egito em 24 de junho de 2012 (51,7% dos votos no segundo turno), foi deposto pouco mais de um ano depois,em 3 de julho de 2013 com o beneplácito dos Estados Unidos. Na Venezuela, Chavéz sempre foi aclamado pelo povo nas eleições e os Estados Unidos o acusavam de tirano.Ficoatordoada com a concepção americana de líder democrata. Parece que democracia autêntica é aquela que atende os interesses americanos,democracia “populista”, “caudilhesca”, perniciosa é aquela praticada por governantes que resolvem trilhar um caminho mais independente. A Arábia Saudita é um país governado de maneira despótica, em que os homossexuais têm um tratamento infinitamente pior do que na Rússia do monstruoso Putin e no entanto, os Estados Unidos nunca denunciaram os sauditas em nenhum foro internacional, mesmo porque não há nem possibilidade de haver rebeldes como as Pussy Riots, cujas estripulias são impensáveis em um país em que as mulheres não podem nem votar.

       Minha segunda pergunta é tomada de empréstimo de um jornalista britânico Peter Hitchens: o que Washington faria, se num momento de fraqueza do país, as terras dos Estados Unidos tomadas dos mexicanos pela força em 1848 se tornassem independentes e políticos russo viessem a Albuquerque, no México, dar seu apoio explícito a protestos que defendessem uma aliança entre o novo Estado e Moscou? Não há dúvida que a Rússia tem interesses vitais nos destinos da Ucrânia. A maior parte da população da Crimeia fala russo, a Rússia é um país que não tem defesas naturais contra inimigos externos, como a invasão napoleônica e nazista comprovam: deixar que um governo inimigo, que acabou sendo tomado por neonazistas, se estabeleça na Ucrânia, país que dá aos russos sua única via de acesso marítimo no lado ocidental, por meio da frota lotada em Sevastopol, é altamente arriscado. Por que quando os Estados Unidos defendem seus interesses eles estão defendendo a democracia, os direitos humanos, o livre comércio, e quando um outro país, cujos interesses podem colidir com os americanos, defendem os seus, eles são autoritários, violadores do direito internacional?

      Para finalizar, por que os Estados Unidos não reconhecerão o resultado do plebiscito realizado na Crimeia neste domingo? O que há de ilegítimo em uma consulta ao povo da Crimeia que se assustou com as primeiras medidas do governo recém instalado em Kiev, entre as quais estava a proibição do russo como língua oficial? Se há razões para prever fraude, o mais sensato teria sido despachar observadores internacionais, negociar os termos do plebiscito. Não, a postura dos Estados Unidos foi taxativa: nada de plebiscito, que viola a Constituição da Ucrânia, como se um golpe de Estado contra um governo democraticamente eleito já não tivesse violado. Aliás, se Putin fosse tâo tirânico ele teria imitado os Estados Unidos, que nos anos 90, quando Kosovo quis autonomia da Sérbia, simplesmente atacou a Sérbia e provocou a separação à força.

       Prezados leitores, minha intenção aqui não é santificar Vladimir Putin, apenas mostrar-lhes que vivemos em um mundo muito perigoso. Perigoso porque a maior potência global age de maneira incoerente e portanto totalmente desprovida de legitimidade. Nós, latino-americanos fomos vítimas deste agir prepotente, arrogante do império americano em 1964, quando o excelentíssimo Lincoln Gordon, defendendo os interesses do seu país, tanto fez para insuflar a instabilidade que deu no golpe de 1964. Naquela época era o medo do comunismo que justificava a política externa americana, hoje há um rol de conceitos abstratos (terrorismo, democracia, direitos humanos) que parecem apontar para uma única conclusão: os Estados Unidos procuram destruir qualquer país que entre em choque com seus interesses, interesses esses que são sempre aqueles de todo império: interesse por riquezas naturais, poder econômico.Essa crise na Ucrânia tem tudo para acabar muito mal, não só para os ucranianos como para o resto do mundo. Esperemos que haja bom senso de ambos os lados para que a Ucrânia de 2014 não seja a Sérbia de 1914: o estopim de um conflito mundial.

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