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Guerra de Palavras

Posted by on 09/01/2017

Crátilo acredita que qualquer pessoa que saiba o nome de uma coisa também conhece a coisa. […] Porque os nomes não somente servem como ferramentas de referência, algo que inúmeras etiquetas poderiam fazê-lo, eles também servem para nos instruir sobre a natureza das coisas, sobre o modo como o mundo é.

Trecho retirado da Introdução à edição americana do diálogo platônico Crátilo sobre a relação entre a linguagem e a realidade

Os raciocínios analíticos são aqueles que, partindo de premissas necessárias, ou pelo menos indiscutivelmente verdadeiras, chegam, por meio de inferências válidas, a conclusões igualmente necessárias ou verdadeiras. Os raciocínios analíticos transferem a necessidade ou a verdade das premissas à conclusão: é impossível que a conclusão não seja verdadeira se a pessoa raciocina de maneira correta a partir de premissas verdadeiras. O tipo de raciocínio analítico era para Aristóteles o silogismo.

Trecho retirado do livro “Logique juridique, Nouvelle rhétorique, de Charles Perelman

    Prezados leitores, muito reclamamos da escola brasileira, de como os alunos não sabem escrever, de como estamos sempre na rabeira da classificação nos testes internacionais. Junto-me ao coro dos reclamões colocando-me como vítima da insuficiência acadêmica, eu que passei duas vezes e formei-me com certa distinção duas vezes pela maior e melhor universidade do país. Já estou com 44 anos e ainda tento por iniciativa própria suprir uma chaga na minha formação, qual seja: nunca aprendi nos bancos escolares brasileiros a pensar. Aprendi a ler, e certo, na Faculdade de Letras aprendi a ler nas entrelinhas dos textos o preconceito racial, sexual, a ideologia de classes por trás do discurso dos escritores, e na Faculdade de Direito tive contato com leis e meus ilustres professores fizeram-me ver como toda decisão de juiz, petição de advogado ou defesa devem estar fundamentados nos direitos fundamentais “insculpidos” na Constituição.

    Tudo suficiente para escrever bonito, mas nada que nos desse sustância intelectual para aprendermos a formular os tais dos silogismos tão fundamentais para apresentar um ponto de vista. Afinal, nunca nem ao menos tentaram explicar-nos a importância da definição dos conceitos, a importância do discernimento de qual sentido está sendo atribuído a uma determinada palavra para identificar as premissas do argumento, a importância de seguir os passos corretos para tirar conclusões a partir das premissas. Sócrates, um dos personagens do diálogo Crátilo, desafiava seus alunos justamente indagando-lhes a respeito do sentido das palavras que eles utilizavam para fazer suas declarações. O só sei que nada sei dele é nada mais nada menos do que esse exercício de identificação das premissas do argumento para verificar se elas se sustentam ou não, o que envolve sempre a busca do significado das palavras. Essa nossa incapacidade generalizada afeta até os relacionamentos pessoais, pois cria animosidades que poderiam ser evitadas se as pessoas soubessem por que estão discordando. Vou dar-lhes um exemplo disso relatando uma experiência recente por mim vivida em uma troca de e-mails com uma professora universitária.

    O motivo da discussão era o feminismo, ou melhor, a vertente do feminismo que declara que as mulheres sempre foram oprimidas pelos homens porque os homens sempre se valeram de sua posição predominante para reprimir e explorar as mulheres, negando-lhe direitos. Essa inferioridade jurídica, econômica e cultural deve ser superada pela luta das mulheres pelo fim do paradigma masculino na sociedade, o que levará a uma diversidade de gêneros fora da lógica binaria macho/fêmea ainda prevalente. Pois bem, depois de eu tentar apontar em vão exemplos na história de mulheres que pensaram, que escreveram, que foram reconhecidas mesmo em uma sociedade opressora, eu apontei à minha correspondente que seria inútil continuarmos a discutir porque eu não compartilhava as premissas dela e nem ela as minhas. Em minha opinião, há diferenças biológicas irredutíveis entre pessoas do sexo masculino e pessoas do sexo feminino, ao passo que ela considera que essas características dos dois gêneros estabelecidos na sociedade são totalmente construídas e devem ser desconstruídas em prol da multiplicidade de identidades.

    Pelo fato de eu atribuir um significado biológico aos termos homem e mulher, considero que em última análise o indivíduo do sexo masculino, enquanto tiver as características hormonais com as quais ele normalmente nasce, sempre verá a mulher como um objeto sexual, o mesmo valendo para os indivíduos do sexo feminino. Em suma, enquanto o homo sapiens continuar a se interessar pelo sexo oposto, haverá sempre um jogo de conquista mútua que necessariamente tem um conquistador e um conquistado. Considerar isso como fonte de opressão que deve ser superada pela educação para a igualdade para mim é ilusório, com base nas minhas premissas.

    Infelizmente, quando afirmei a ela que nem as minhas premissas nem as dela poderiam ser estabelecidas com certeza, afinal o ser humano nasce em sociedade, ou como disse Aristóteles, anthropos physei politikon zoon, o que torna impossível separar no homem o que é 100% biológico do que é cultural, a conversa desandou. Se nossas respectivas premissas são inverificáveis, as afirmações dela são tão válidas ou tão inválidas como as minhas, o que a levou a dizer que eu a estava acusando de mentirosa. Nesse momento identifiquei o mal que a aflige que é compartilhado por todos os brasileiros, como eu também, educados totalmente aqui (quero crer que haja ainda lugares em que os estudantes aprendam a pensar). Não sabemos distinguir o que são premissas, o que são as consequências necessárias das premissas e como fazer essa operação de derivar um de outro. O resultado é que batemos boca à toa, trocamos farpas, muitas vezes fazemos ataques pessoais. Eu desisti completamente da discussão, mas ela não desiste de tentar convencer-me, mesmo porque além de eu ser anti-feminista (isto é nos moldes em que ela concebe o feminismo) fui a favor da eleição do facínora aprendiz de ditador, Donald Trump, o homem que é sempre mostrado em jornais, revistas e internet rosnando. É preciso salvar-me do pecado e por isso ela manda-me artigos que claro pregam para os convertidos ao ódio ao presidente eleito dos Estados Unidos. Está aí um outro caso de divergência sobre conceitos.

  Quando digo pregar para convertidos é escrever para quem compartilha suas premissas básicas. Hoje minha correspondente enviou-me o “comovente” discurso de Meryl Streep contra o magnata. Para achar qualidade naquilo que ela fala é preciso concordar com o conceito de que discriminar, isto é, estabelecer diferenciações com base em certos critérios, é necessariamente ruim porque racista e xenófobo. O muro com o México é obviamente o pomo da discórdia e o motivo da indignação de pessoas de bem como Meryl Streep. No entanto, como eu considero que discriminar pode ser bom, a depender dos critérios que sejam estabelecidos, acho que os americanos tem tanto direito de construir um muro para evitar ou diminuir a entrada de drogas, armas e criminosos, como nós brasileiros temos o direito e até o dever, para o bem da paz interna, de controlarmos de maneira infinitamente mais estrita do que atualmente fazemos nossos 17.000 quilômetros de fronteiras com países que incluem produtores de cocaína como Bolívia, Peru e Colômbia. Se estabelecer critérios para que determinados tipos de pessoas e objetos que potencialmente podem causar danos internamente não entrem é algo terminantemente proibido porque racista e xenófobo, qual outra maneira que os bem-pensantes propõem para garantir a segurança da população do país? Soltar pombas da paz como fazemos frequentemente no Brasil? Educar para a cidadania e esperar que os ensinamentos sejam absorvidos total e imediatamente? Na prática é preciso agir logo, como a situação dos presídios brasileiros, controlados por gangues de traficantes de drogas nos mostra.

    Prezados leitores, dizem que estamos na era da pós-verdade, eu diria que a era da pós- verdade é a era dos guetos: nossos valores, convicções, princípios são tão diversos que as discussões tornam-se diálogos de surdos vociferados por interlocutores que não concordam nem sobre o que estão falando. O resultado vemos à nossa volta e vejo em mim mesma, claro: violência verbal, desprezo e ódio mútuos, cada um no seu canto, informando-se nos veículos que compartilham seus dogmas e ignorando o resto. Parafraseando Tim Maia: chamem o Sócrates!

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