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Amarras ideológicas e previdenciárias

Posted by on 21/07/2019

Ou seja, o Brasil é o único país com um sistema universal público como é o SUS em que o gasto privado é maior. Não se criou um mecanismo de coordenação entre os setores privado e público.  O previsto era que o setor privado fosse suplementar, mas o que se configurou foi um modelo que duplica a produção de serviços e compete por recursos financeiros, pessoal, provimento de médicos, na forma de incorporação de tecnologias… E isso é ruim para o setor público, pois é uma marca da iniquidade brasileira.

Trecho retirado de entrevista dada ao jornal o Globo pelo médico sanitarista brasileiro Adriano Massuda e publicada em 14 de julho de 2019

E constatar-se-á que a economia política, cuja introdução em nossos cursos populares foi tão vilipendiada, tem preeminência sobre as outras ciências ao atuar como um sedativo, e não como estímulo a todos os tipos de turbulência e desordem. […] De todos os ramos da educação, não há nenhum outro que contribuirá mais para a aquiescência da multidão, do que aquele cuja admissão em nossas escolas técnicas estamos solicitando agora. 

Trecho retirado do livro “America’s Protectionist Takeoff 1815-1914” do professor de economia da Universidade de Missouri Michael Hudson

    Prezados leitores, o segundo trecho mencionado acima faz parte de um livro em que o autor discute a elaboração e desenvolvimento de uma escola americana de economia política que defendeu o protecionismo como ferramenta de desenvolvimento. Michael Hudson contrapõe essa teoria autóctone que foi sendo burilada ao longo do século XIX, com as “tábuas da lei” recebidas da Inglaterra e propagadas nas principais instituições de ensino estadunidenses, entre as quais Harvard, Yale, Brown, Columbia e Princeton. A sabedoria reinante era aquela de Adam Smith, David Ricardo e Thomas Malthus, que haviam estudado a economia e a história da Inglaterra e cada qual com suas respectivas contribuições deram origem ao sistema geral do livre comércio, pelo qual o melhor para a riqueza dos indivíduos era que cada país produzisse aquilo em que tinha mais vantagens comparativas de forma que pudesse oferecer produtos no mercado ao preço justo. No mundo de então, isso significava que a Inglaterra seria a fornecedora de produtos manufaturados, já que ela havia atingido um alto grau de mecanização que tornava seus preços imbatíveis, e compraria dos países cuja economia era predominantemente agrícola os gêneros alimentícios e as matérias primas que os ingleses não podiam produzir por não terem mais terras aráveis. Afinal, de acordo com Malthus, a produção agrícola crescia a um ritmo muito menor que o da população, e a única solução era cultivar mais terras, pois em seu modelo ele não vislumbrava que aumentos de produtividade poderiam resolver essa discrepância.

    Em tal arranjo, todos sairiam ganhando, pois cada país seguiria sua vocação natural. Para muitos americanos, os Estados Unidos com suas vastas extensões de terra no Oeste, estavam destinados a ser uma potência agrícola, e muitos políticos sonhavam em estender as fronteiras do país até Cuba e quem sabe até o Canadá, com base em culturas exportáveis, como o algodão e o fumo. Ocorre que muitos Estados americanos, no chamado Meio Atlântico, já tinham uma produção manufatureira e não lhes era interessante simplesmente ter uma economia complementar à da Inglaterra, como era o caso dos Estados agrícolas do Sul. Propostas de aumento de tarifas alfandegárias sobre os produtos industriais da Inglaterra eram feitas por vários políticos, jornalistas e intelectuais, o que estimulou um debate feroz com os proponentes do livre comércio à l’anglaise. Se de início essas ideias de imposição de tarifas eram incipientes e pontuais, elas foram gradualmente constituindo-se em uma série de princípios para o desenvolvimento nacional. Tais disputas entre os Estados que queriam mais tarifas para a proteção da indústria nacional e aqueles que queriam o livre comércio acabariam resolvendo-se por meio da Guerra Civil Americana (1861-1865), que ao contrário do que mostra Hollywood por meio de Steven Spielberg, não foi uma guerra pela libertação dos escravos. Explico-me.

    Os Estados do Sul decidiram desligar-se da União porque consideravam que a política tarifária protecionista era uma ingerência indevida do governo central que acabaria por destruir a economia deles, por obrigá-los a comprar produtos mais caros e de pior qualidade dos Estados americanos de base industrial ao invés de comprar da Inglaterra, a grande potência industrial da época, a quem forneciam commodities agrícolas. Abraham Lincoln, o presidente dos Estados Unidos então, só libertou os escravos como meio de desestruturar a atividade produtiva do Sul e diminuir-lhe a capacidade de combate. Para quem duvida da minha versão, leiam “Uma Nota sobre Abraham Lincoln” escrito por |Gore Vidal (1925-2012) e publicado em uma coleção de ensaios denominada “De fato e de ficção”. O fim da Guerra Civil marcou o surgimento dos Estados Unidos como nação independente, livre das amarras ideológicas e econômicas que a prendiam à pátria-mãe, a Inglaterra, a defensora do livre comércio entre as nações como meio mais eficiente de criar riqueza.

    Esse introito serve para eu abordar as nossas amarras tropicais, que mostraram quão forte são ao longo desses meses em que a reforma da previdência foi debatida no Congresso e defendida pelos bem-pensantes de maneira unânime. O Brasil envelheceu, é preciso que nos adaptemos à nova realidade. Com a economia de dinheiro proporcionada pela postergação das aposentadorias, haverá uma diminuição da dívida pública, diminuição dos juros, mais investimentos, a economia voltará a girar e entraremos num círculo virtuoso de crescimento e geração de empregos. Esse mantra é um reflexo exato da receita de bolo trazida pelo Posto Ipiranga, Paulo Guedes, como fruto do seu PhD na Universidade de Chicago. O problema do Brasil é que o governo gasta muito, se resolvermos a questão fiscal, tudo caminhará.

    Independentemente de concordar ou não com a teoria econômica da equipe econômica no poder, que inclui entre outros Roberto Campos Neto, o presidente do Banco Central que estudou na Universidade da Califórnia em Los Angeles, a velha questão permanece relevante: os doutos economistas levam em conta a realidade do nosso país para aplicar o tal do choque fiscal? Sem abordar as minúcias das modificações nas regras, o fato é que para ter direito ao benefício integral, o candidato a aposentado terá que contribuir por 40 anos. Considerando que a idade mínima para pleitear a aposentadoria será de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens, isso significa que quem começou a trabalhar aos 14 anos e teve a sorte de ter carteira assinada durante toda sua vida ativa, a aposentadoria, que poderia ser aos 54 anos, terá que ser postergada por 8 e 11 anos, respectivamente. Isso será bem problemático para brasileiros que passaram a vida exercendo atividades braçais e que podem ao final de sua carreira não mais conseguirem emprego que lhes permita pagar contribuições previdenciárias, por não mais conseguirem usar o corpo como o faziam quando jovens.

    É nesse ponto que se revela a deficiência dos sábios que nos governam em termos de levar em conta the facts on the ground e não apenas a aplicação de teorias elaboradas alhures. Uma reforma da previdência descolada de uma política de saúde e de uma política de emprego é apenas um truque dos fiscalistas que querem melhorar as contas públicas como se isso fosse uma poção milagrosa. É claro que os brasileiros estão vivendo mais, mas em que condições? A massa do povo conseguirá chegar aos 60 anos com saúde e qualificações para continuar a trabalhar? Será que Tabata Amaral, a cientista política de 25 anos formada em Harvard e que está sendo elogiada por quebrar com “as amarras ideológicas” (expressão pro ela usada em um artigo na Folha de São Paulo) da esquerda e por ter votado a favor da reforma da previdência, considera que fazer uma reforma dessas no vácuo é algo que deve ser apoiado? Quem mais merece críticas: a esquerda que é “contra tudo” ou a turma dos sábios que é a favor de tudo que tira direitos do povo sem dar nada em troca?

    A respeito dos doutos membros do governo que estão nos tirando o benefício previdenciário, onde está o Ministro da Saúde de Bolsonaro com medidas concretas para aumentar o dinheiro disponível para o SUS e melhorar a gestão dos recursos? Alguém ouviu falar de alguma ação do Ministério da Saúde nesses 200 dias de governo? E o que o Posto Ipiranga, que incorporou ao Ministério da Economia as atribuições do antigo Ministério do Trabalho, tem em mente em termos de políticas públicas para a qualificação e reciclagem de trabalhadores que ficaram desempregados depois da recessão de 2014 a 2016 e hoje vivem de bicos? Por acaso Paulo Guedes pensou que ao mesmo tempo que tira direitos da população por uma questão atuarial é preciso dar-lhe oportunidade de adaptar-se às novas circunstâncias? Será que a reforma da previdência terá só como objetivo resolver o problema fiscal e deixará o trabalhador ao deus-dará para virar-se nos trinta? Em sendo assim, será que no longo prazo o problema fiscal será resolvido mesmo? Afinal, se os brasileiros não tiverem saúde e nem qualificação para terem emprego e poderem ser contribuintes do INSS como o sistema será financiado? Ou será que o objetivo final é simplesmente acabar com qualquer proteção para a incapacidade laboral e a velhice? Será que a meta implícita da política econômica dos sábios de Chicago e de outras universidades americanas é que deixemos de ser trabalhadores e todos sejamos empreendedores?

    Empreendedor pode ser tanto o criador de uma start-up que se transforma em unicórnio quanto o indivíduo dono de sua própria bicicleta ou motocicleta e de seu celular que entrega comida trabalhando sábados, domingos e feriados, sem vínculo empregatício e sem proteção social nenhuma. Desburocratização, desregulamentação, incentivo à abertura de empresas, todas são ideias dos sábios que estudam nos Estados Unidos, mas deixam sempre para depois o cuidado com o povo, ou para usar uma expressão mais moderna, o capital humano. E sem cuidado com o povo, permaneceremos eternamente uma economia de terceiro mundo, de entregadores de quentinhas, de doceiras, de fazedoras de bolo, de taxistas, de auxiliares de serviços gerais, em suma de pessoas que exercem atividades que agregam pouco valor.

    Prezados leitores, os Estados Unidos no século XIX, por meio de ferozes debates entre protecionistas e defensores do livre comércio desafiaram a Inglaterra e tomaram seu lugar como potência mundial. Atualmente, eles obviamente têm interesse em que as coisas permaneçam como estão, e para isso eles propagam as teorias econômicas que beneficiam, se não todos os americanos, ao menos aqueles que detêm o poder político e intelectual de formar opiniões. Não estou aqui a propor que comecemos a lançar impropérios inúteis contra o governo americano como Hugo Chavez fez da tribuna da ONU, mas que ao menos antes de aplicarmos as receitas que nos ensinam, tenhamos um olhar crítico e consciência de que não foram feitas para resolver nossos problemas. Enfim, não custa sonhar com uma nova direita e uma nova esquerda que discutam mas cheguem a um meio termo que não seja simplesmente rendição de um lado ao outro. Enquanto isso, nós que vendemos nossa força de trabalho no mercado teremos que contar com a ajuda de nós mesmos para conseguirmos continuar a trabalhar e poder na velhice desfrutar de uma renda mínima de sobrevivência.

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